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Estado de Minas

Rep�rter do EM participa de ritual e conta os efeitos do santo-daime

Rep�rter relata as alucina��es, as rea��es fisiol�gicas e as sensa��es tardias relacionadas ao consumo da ayahuasca em ritual. Para os fi�is, uma experi�ncia que traz revela��es divinas


postado em 28/06/2015 06:00 / atualizado em 28/06/2015 07:34

(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)
(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)

“S�o 21h36. Eu e o fot�grafo Alexandre Guzanshe estamos acompanhando o Trabalho de S�o Jo�o, um dos mais importantes da doutrina do santo-daime, iniciado �s 18h de um s�bado, 20 de junho, na Fraternidade Kayman, no Bairro Ipiranga, Regi�o Nordeste de BH. A data � reservada exclusivamente a rituais ligados ao ch�. Come�o a notar os efeitos da ayahuasca no meu organismo ap�s beber a segunda dose. Ia guardar o microfone – usado para captar o �udio da cerim�nia – quando percebo que minha m�o est� 'mole'. Pego o bloco de anota��es para escrever as sensa��es, pois tenho receio de n�o conseguir me lembrar de nada. Fico um tempo paralisado, tentando recordar a grafia da palavra microfone.


No trabalho, como � chamada a cerim�nia do santo-daime, homens ficam de um lado da igreja e mulheres, do outro. Ao centro, observo uma mesa com a Cruz de Caravaca, o Cruzeiro. Os adeptos da religi�o usam roupa branca, com palet� e gravata, denominada farda. As mulheres trajam saia comprida e uma coroa. A cerim�nia come�a com todos rezando um ter�o. Na sequ�ncia, bebem a primeira dose de daime. Eu tamb�m.

O gosto � bem amargo e a colora��o, marrom-escuro. O aspecto � denso. Muitos saem da fila fazendo careta. Como j� sabia disso, levei balas de hortel� no bolso, que chupei imediatamente ap�s tomar o ch�. Ao escrever este texto, cinco dias depois da experi�ncia, volto a fazer careta s� de recordar o sabor.

O bailado come�a. Durante a cerim�nia seguem o hin�rio 'O Cruzeiro', do Mestre Irineu, fundador da religi�o. S�o 130 hinos que todos cantam enquanto dan�am, em um compasso repetitivo – dois para esquerda; dois para a direita. Alguns tocam um chocalho e em parte do hin�rio m�sicos com viol�o, baixo, guitarra e zabumba fazem o acompanhamento, posicionados no centro da roda.

Logo ap�s servirem a segunda dose, eu olho para o Guzanshe. Pergunto se ele est� bem. 'Minha vista est� enfuma�ada; quando fecho os olhos vejo pontos vermelhos', ele conta. Meu colega tamb�m sente que a press�o arterial est� baixa. Para evitar um desmaio, senta, inspira e expira pausadamente. Logo ap�s a primeira dose do ch�, duas mulheres caem no ch�o, desmaiadas. Foram acudidas, levantaram e voltaram a bailar at� o fim: �s 5h30 do outro dia.

Veja o v�deo da cerim�nia



PURIFICA��O Canso de bailar e fico sentado nas cadeiras dispostas no fundo do sal�o. Os fi�is mais fervorosos n�o gostam da atitude. Entendem que sair da roda pode quebrar a corrente de energia. J� s�o mais de 22h e, ao ouvir o barulho das pessoas vomitando no jardim, do lado de fora do sal�o, fa�o o mesmo. No l�xico daimista, vomitar n�o � passar mal. Faz parte do processo de limpeza.

A profus�o de cores e luzes do sal�o, as bandeirinhas no teto, os altares multicoloridos, a m�sica e o movimento do bailado me deixam atordoado. Come�o a enxergar texturas nas cores. Em alguns momentos, tenho a sensa��o de que a minha blusa de l� preta est� soltando fragmentos, como se fossem pixels.

Saio do sal�o e me deito no banco de cimento, embaixo de uma mangueira. Ao olhar o tronco da �rvore, me vem a imagem de que aquilo � a pata de um dinossauro. Meu pensamento vai longe, em uma persegui��o de dinossauros ao estilo de Steven Spielberg. Consigo desviar o olhar da �rvore e, ao encarar o ch�o de cimento pintado, me recordo da casa de uma tia, no interior, local presente nos bons momentos da inf�ncia em que sempre me senti muito confort�vel. L�, o piso era semelhante.

O criador do LSD, Albert Hofmann, escreveu no livro LSD – minha crian�a problema que viu na droga uma possibilidade de recuperar o encantamento que vivenciou na inf�ncia. 'Foram experi�ncias que moldaram os principais esbo�os de minha vis�o do mundo e me convenceram da exist�ncia de uma realidade milagrosa, poderosa, insond�vel, que estava oculta da vis�o cotidiana', relata, na introdu��o da obra. Refletindo sobre a 'mira��o' – como os daimistas preferem chamar as alucina��es – de um local da minha inf�ncia que sempre me agradou, fa�o uma rela��o entre as duas subst�ncias psicoativas: a ayahuasca e o LSD.

Um homem fardado, com cabelo estilo black power, respons�vel por fiscalizar o comportamento e acudir as pessoas que est�o vomitando, vem conversar comigo. Interrompe minhas mira��es. Fala da import�ncia de ficar dentro do sal�o, para sentir a energia. Conta em forma de par�bolas hist�rias de supera��o e for�a. Eu retorno ao sal�o, mas sigo atarantado com as luzes e cores.

MAIS UMA DOSE  Por volta de meia-noite, um intervalo. Durante a pausa – uma hora –, fico sentado pr�ximo a uma fogueira e aos poucos as mira��es v�o cessando. No retorno, � servida a terceira dose do Daime. Mas n�o me arrisco a beber mais. Pierry (Pai Jo�o de Aruanda) conclama que todos tomem pelo menos um pouco, pois, segundo ele, � importante para manter a for�a.

Sigo no processo de 'limpeza', mas agora por outra via, e no vaso sanit�rio. Ao voltar ao sal�o, sinto um al�vio grande e passo bom per�odo da segunda parte da cerim�nia dormindo sentado. O trabalho termina �s 5h30. J� em casa, acordo por volta de 11h e vivencio uma sensa��o de paz e tranquilidade, totalmente distinta de uma ressaca.

Ap�s a experi�ncia, eu sigo ateu, mas com um profundo respeito – um pouco de inveja, confesso – pelo sentimento de f� das pessoas. O ambiente na Fraternidade Kayman � de amizade e respeito, todos se tratam bem e os discursos s�o sempre de amor e toler�ncia. 'N�s somos todos iguais. N�s somos todos filhos de um �nico Deus. N�o tem como pensar diferente', ensina Pierry.”

(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)
(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)

 

‘O gosto � bem amargo e a colora��o, marrom-escuro. O aspecto � denso. Muitos saem da fila fazendo careta. Como j� sabia disso, levei balas de hortel� no bolso, que chupei imediatamente ap�s tomar o ch�’

 

 

Qu�mica  da f�

Os fi�is ao santo-daime repudiam aqueles que classificam a ayahuasca como uma droga ou alucin�geno. No livro Mergulho na luz – Psicografia em expans�o de consci�ncia com o Santo Daime (Infinitum Editora), o autor, J�lio da Mata, atribui a orienta��o ao esp�rito Bom Mo�o e explica: “A ayahuasca � uma subst�ncia psicoativa que expande a percep��o humana, produzindo um estado alterado de consci�ncia. As experi�ncias com ela s�o de car�ter m�stico, pessoal e real para o vision�rio. Pela defini��o t�cnica de alucin�geno, a ayahuasca n�o poderia ser considerada uma subst�ncia alucin�gena, por n�o produzir os efeitos adversos descritos na defini��o de alucin�geno”.

Resolu��o do Conselho Nacional de Pol�ticas sobre Drogas (Conad), �rg�o vinculado ao Minist�rio da Justi�a, de 2006, permitiu o uso do ch� para fins religiosos. Em 2010, a resolu��o foi revista, esclarecendo quest�es sobre a proibi��o da comercializa��o da bebida. O princ�pio ativo da beberagem � a dimetiltriptamina (DMT) presente na folha rainha (Psychotria viridis), uma dos ingredientes do daime.

O farmacologista Rodrigo Guabiraba explica que o DMT � um an�logo da serotonina, neurotransmissor ligado �s sensa��es de bem-estar e recompensa nos mam�feros. “O DMT � eliminado do corpo pela monoamina oxidase (MAO), subst�ncia presente em v�rios tecidos do corpo, e, claro, no sistema nervoso central”, explica o farmacologista, p�s-doutor em imunofarmacologia pela Universidade de Glasgow, na Esc�cia, e pesquisador do Institut National de la Recherche Agronomique (Inra), na Fran�a.

Guabiraba detalha, por�m, que o cip� jagube (Banisteriopsis caapi), que tamb�m entra na receita do ch�, tem em sua composi��o alcaloides que inibem a MAO e favorecem a atividade do DMT no organismo. Foi o qu�mico e psiquiatra h�ngaro Stphen Sz�ra, na d�cada de 1950, que come�ou a estudar o DMT e suas propriedades psicoativas e alucinog�nicas, pois trabalhava na mesma �poca com o LSD, destaca Guabiraba.

EFEITOS COLATERAIS
O farmacologista aponta que estudos recentes n�o mostram grandes efeitos de depend�ncia ligados ao DMT. “Pode ser observada depress�o p�s-uso, como no LSD. Mas o abuso, sem d�vida, pode levar � depress�o permanente e dist�rbios diversos em indiv�duos suscet�veis, como esquizofr�nicos, mas n�o necessariamente depend�ncia”, detalha Guabiraba. “O problema do daime, al�m do poss�vel abuso, � o uso sem vigil�ncia e fora do ritual”, complementa.

Em vez de alucin�geno, os adeptos do santo-daime preferem a express�o ente�geno – subst�ncia que leva � inspira��o ou a alguma revela��o. “O daime cont�m compostos que causam alucina��es, ligadas ou n�o ao bem-estar, em que a intensidade da experi�ncia pode estar ligada � fisiologia do indiv�duo e � forma e � composi��o do ch�. Por�m, o ritual tem um papel fundamental, pois predisp�e o indiv�duo a ter sensa��es que, provavelmente, n�o seriam sentidas se a bebida fosse tomada em campo neutro – por isso, o conceito de ente�geno”, afirma Guabiraba.


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