
Ponte Nova e Rio Doce – Se as regras estipuladas pelo Instituto Mineiro de Gest�o das �guas (Igam) para o uso dos rios de Minas Gerais fossem aplicadas ao curso do pr�prio Rio Doce, cujo controle � feito em n�vel federal pela Ag�ncia Nacional de �guas (ANA), em pelo menos um ponto do manancial a situa��o seria de alerta, �ltimo est�gio antes da restri��o de uso. A conclus�o est� no Acompanhamento da Estiagem na Regi�o Sudeste do Brasil, documento produzido mensalmente pelo Servi�o Geol�gico do Brasil (CPRM), e mostra que a m�dia das vaz�es de junho na Esta��o Cenibra do Rio Doce, entre Ipatinga e Naque, no Vale do Rio Doce, ficou abaixo da Q7,10 desse ponto, caracterizada como o menor valor observado em sete dias consecutivos nos �ltimos 10 anos. Por�m, como o Rio Doce � um curso d’�gua federal, pois corta Minas e Esp�rito Santo, n�o existe a necessidade de se restringir o uso caso as vaz�es fiquem abaixo de 70% do valor da Q7,10, como ocorre nos mananciais monitorados pelo Igam.
No relat�rio de junho do CPRM constam informa��es de 40 esta��es indicadoras, sendo tr�s no Rio Doce: uma entre Ipatinga e Naque, no Vale do Rio Doce, outra em Governador Valadares, na mesma regi�o, e a �ltima em Colatina, j� no Esp�rito Santo. Nos terminais de Valadares e Colatina, o monitoramento apontou vaz�es m�dias de junho deste ano entre 100% e 200% da Q7,10 de seus respectivos pontos, o suficiente para enquadr�-los no estado de aten��o, caso fossem seguidas tamb�m no rio federal as normas estaduais. Para o professor do Departamento de Engenharia Hidr�ulica e Recursos H�dricos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Nilo Nascimento, a situa��o registrada pelo CPRM na calha do Rio Doce sugere que � necess�rio uma gest�o para a situa��o de crise que pode ser semelhante ao que j� � adotado pelo Igam. “Estamos chegando ao meio do per�odo seco e as coisas tendem a se agravar, j� que n�o temos chuvas at� outubro”, afirma.
O professor Carlos Barreira Martinez, que coordena o Centro de Pesquisas em Engenharia Hidr�ulica e Recursos H�dricos da UFMG, lembra que � necess�rio estabelecer uma pol�tica de outorgas que privilegie o uso da �gua beneficiando todos os usu�rios, visando diminuir o impacto ambiental. “O grande problema � que os corpos t�cnicos, muitas vezes competentes, enfrentam inger�ncias pol�ticas que n�o contribuem para resolver os problemas devidamente de forma t�cnica e observamos todos os impactos”, analisa.
MERGULHO SEM VOLTA O par�metro de compara��o da quantidade de �gua dispon�vel no ponto onde se forma o Rio Doce, no munic�pio de mesmo nome, na Zona da Mata mineira, � motivo de tristeza para a dona de casa Maria Quinta de Souza Guedes, de 64 anos. H� 16 anos, no local onde os rios Piranga, o primeiro do estado a entrar em alerta pela baixa vaz�o, e do Carmo se encontram, formando o curso d’�gua que j� n�o tem mais for�a para chegar ao mar do Esp�rito Santo, ela perdeu um dos cinco filhos. Ele era acostumado a mergulhar em um ponto onde hoje a �gua bate na altura da canela. “Ele mergulhava e ficava muito tempo debaixo d’�gua. At� que nesse dia achei muito estranho, pois ele n�o subia. De repente, apareceu com um ferimento na cabe�a, porque deve ter batido em alguma ponta, e j� n�o estava mais vivo”, diz dona Maria. Esse � o marco que faz com ela afirme categoricamente: “Hoje n�o temos mais quase nada de �gua perto do que eu j� vi nesse lugar”, diz.
Com a pequena Ingrid, de 2 anos, nos bra�os, ela teme que a neta n�o veja mais o mesmo volume de �gua que j� correu naquele ponto, ligando o alerta da crise h�drica na porta de casa. O relato de dona Maria, que mora em uma propriedade bem perto de onde come�a a correr o Rio Doce, deixa claro que a situa��o enfrentada pelo manancial em sua foz, no Esp�rito Santo, n�o � um fato completamente diferente do que ocorre onde ele se forma. “Com pouca �gua no rio fica dif�cil at� para furar cisterna. Tenho uma em casa, mas n�o estou usando, porque pode queimar a bomba gra�as ao barro acumulado no lugar da �gua. S� enche um pouco quando chove e o rio aumenta”, diz dona Maria.
MONITORAMENTO Segundo a Ag�ncia Nacional de �guas (ANA), a bacia hidrogr�fica do Rio Doce � uma das bacias nas quais a ANA tem atuado com a��es de monitoramento, financiamento de esta��es de tratamento de esgotos, apoio institucional ao funcionamento do Comit� da Bacia e de sua ag�ncia de bacia, o Instituto Bioatl�ntica (IBIO). “As vaz�es predominantes neste ano est�o muito pr�ximas das verificadas no ano passado e s�o tamb�m muito pr�ximas das vaz�es m�nimas dos nossos registros hist�ricos. N�o se pode atribuir as baixas vaz�es apenas � degrada��o da bacia hidrogr�fica. Passamos por um bi�nio em que os registros de chuvas e de vaz�es mostram-se bastante inferiores �s m�dias hist�ricas”, diz o especialista em recursos h�dricos da ANA, Ney Murtha.
Falta �gua, sobra esgoto
Al�m de tamb�m sofrer com a falta de �gua que se espalha por toda a Bacia Hidrogr�fica do Rio Doce, o ponto em que o curso d’�gua se forma recebe o esgoto carregado pelos seus dois formadores: o Rio Piranga e o Rio do Carmo. O Piranga, cuja bacia drena a �rea de 77 munic�pios, recebe res�duos generalizados, que chegam a assustar pelo tamanho da agress�o ao meio ambiente. Em Ponte Nova, �ltimo centro urbano antes da forma��o do Rio Doce, as manilhas despejam o esgoto dos 57 mil moradores 24 horas por dia sem tratamento adequado.
Em abril do ano passado, em s�rie de reportagens sobre a situa��o das nascentes dos rios mineiros, o Estado de Minas mostrou que o Rio Doce j� nascia com 5.172% de coliformes termotolerantes acima do limite permitido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). A degrada��o ambiental do Piranga tamb�m contribui para a perda do volume que chega ao Doce, gra�as ao assoreamento. No lugar de uma vegeta��o capaz de proteger o manancial, � poss�vel ver lixo, e os muros de casas, que s�o constru�das quase no leito, em Ponte Nova. A variedade de canos e manilhas � grande, todos expelindo um l�quido de apar�ncia viscosa. O esgoto deixa a �gua com a cor verde e piora ainda mais a qualidade em um momento de escassez, pois se mistura em uma quantidade menor do recurso h�drico, o que dificulta a depura��o, segundo o bi�logo e especialista em recursos h�dricos, Rafael Resck.
“O retrato geral do Rio Doce pode ser analisado na regi�o onde ele come�a a correr. N�o podemos querer que um rio que sofre tantos problemas desde o seu in�cio chegue naturalmente � sua foz. � muito esgoto urbano e industrial despejado, capta��es desconhecidas dos �rg�os p�blicos e minera��o ao longo de toda a bacia”, afirma o especialista.
Segundo o diretor do Departamento Municipal de �gua, Esgoto e Saneamento de Ponte Nova, Guilherme Resende Tavares, o munic�pio j� concluiu o seu plano municipal de saneamento e est� elaborando o projeto da Esta��o de Tratamento de Esgoto (ETE) do munic�pio. Ele estima que em dois anos j� seja poss�vel tratar pelo menos parte do esgoto. A capacidade ser� de 192 litros por segundo, o que excede a demanda da cidade. O presidente do Comit� da Bacia Hidrogr�fica do Rio Piranga (CBH/Piranga), Carlos Eduardo Silva, diz que das 77 cidades da bacia, 56 foram escolhidas para elabora��o dos planos de saneamento e 30 j� tiveram seus planos conclu�dos.
IRRIGA��O Segundo o secret�rio-executivo do Comit� de Integra��o da Bacia Hidrogr�fica do Rio Doce (CBH/Doce), Luiz Cl�udio Figueiredo, os investimentos em saneamento somam R$ 21 milh�es, fruto da cobran�a pelo uso da �gua na bacia. Dos 228 munic�pios em toda a �rea de Minas e Esp�rito Santo, 156 est�o inclu�dos para elabora��o dos planos e todos devem concluir os estudos at� o fim do ano. Al�m disso, Figueiredo cita o investimento de R$ 2 milh�es para a aquisi��o de 240 irrig�metros, equipamentos desenvolvidos pela Universidade Federal de Vi�osa (UFV) para otimizar o processo de irriga��o ao longo da bacia.
Por fim, o edital de um programa de recupera��o de nascentes e �reas de prote��o permanente est� sendo elaborado, cujo objetivo � escolher uma empresa para desenvolver as a��es necess�rias para melhorar a recarga do sistema h�drico nesses locais. “Essas a��es s�o referentes ao quadri�nio de 2012 a 2015. Nesse segundo semestre come�ar�o as discuss�es para a aplica��o de recursos nos pr�ximos quatro anos e certamente a quest�o da escassez ser� a principal norteadora”, afirma o secret�rio.
DEGRADA��O DA CABECEIRA � FOZ Publicada ontem e hoje pelo Estado de Minas, a s�rie Amarga Agonia mostrou que o Rio Doce deixou de correr na foz original e de desaguar no Atl�ntico pela primeira vez na hist�ria. As reportagens relataram ainda a devasta��o estimulada pela impunidade no entorno da bacia e que nascentes e cursos que alimentam o manancial dependem de conserva��o.