
A sa�da desses “�ltimos” sobreviventes rumo a casas de verdade, chamadas de resid�ncias terap�uticas, representa um marco na hist�ria da retirada de hospitais dos pacientes psiqui�tricos da Regi�o Metropolitana de BH. A mudan�a come�ou h� 15 anos, desde que a capital mineira encampou a luta antimanicomial, iniciada pelo italiano Franco Basaglia na d�cada de 1970, na Europa. “Pode vir, Marcelo*...”, chama o psic�logo Leonardo Augusto, oferecendo uma barra de chocolate para que o homem alto e forte, mas com comportamento infantil, enfim, aceite entrar na Van, junto dos outros. O transporte os levar� at� o novo endere�o, com camas individuais e vitrais nas janelas, no Bairro Esplanada.
Aos poucos, desde 2001, a Secretaria Municipal de Sa�de vem bancando, tamb�m com recursos do Minist�rio da Sa�de, a retirada desses pacientes psiqui�tricos da Pinel, Psicominas, Cl�nica Nossa Senhora de Lourdes e, por �ltimo, a maior delas, a Cl�nica Serra Verde, que encerrou as atividades em 2012, com a transfer�ncia de 149 pessoas para um anexo no Bairro Padre Eust�quio, em conv�nio com o Hospital Sofia Feldman. “Quando chegou aqui, Rosa vivia sem roupas e se arrastava pelo anexo, como se fosse uma cobra. Ela n�o suportava contato f�sico. N�o se mudam 30 anos em tr�s, mas hoje ela nos permite estar na companhia dela, escolhe as pr�prias roupas e adora perfumes e cremes cheirosos”, explica Izabela, sinalizando para o fato de que Rosa acaba de jogar um papel no lixo. “Na cl�nica, os pacientes comiam lixo”, completa.
EM acompanha dia hist�rico da luta antimanicomial em BH
� medida em que se adaptavam � realidade mais humanizada do Hospital Sofia Feldman, os pacientes foram sendo transferidos para as resid�ncias terap�uticas, com capacidade para at� 10 pessoas morando em uma mesma casa, sob a orienta��o de dois cuidadores por turno, dois estagi�rios e dois supervisores com curso superior. “Eles eram esquecidos pelas fam�lias l� dentro da cl�nica. Ficavam misturados homens e mulheres, sem roupas, igual a bichos. Na semana passada teve o enterro de um deles, o Jos�, que morreu de c�ncer no c�rebro, s� com o enfermeiro e o assistente social, que choraram bastante. A fam�lia nem ficou sabendo”, conta a cozinheira Marli Moreira, que trabalhou na Serra Verde e ajudou na transi��o do Sofia Feldman. Ao ver seus pacientes indo embora na Van, Marli chora, relembrando dos gostos de cada um: Marcelo � f� de chocolate e tem mania de comer guimbas de cigarro; Glauro come de tudo, inclusive lixo; Gl�ria prefere gelatina e Rosa detesta moranga.Ao todo, h� hoje 179 moradores egressos do antigo sistema psiqui�trico, vivendo hoje dignamente em 33 resid�ncias localizadas em BH, incluindo os cinco casos mais graves que vieram da Serra Verde e foram retirados para a �ltima casa alugada pela prefeitura com este fim. Passado o primeiro momento de tens�o, ontem, em que os pacientes ficaram agitados com a mudan�a, sem saber ao certo para onde estavam indo. Um deles se recusa a vestir roupa, que segundo ele, machuca a pele. Segue de cueca mesmo, com o resto do corpo todo marcado por ferimentos. “Este � o fim do hospital./A nossa luta � antimanicomial!”, grita uma turma de militantes, em coro, na porta do Sofia Feldman, com cartazes escritos a m�o. Eles se tornam euf�ricos no momento em que o port�o � simbolicamente fechado, para sempre.
Coordenadora da equipe de desinstitucionaliza��o da Secretaria Municipal de Sa�de, Fl�via Torres, acompanha pessoalmente todo o processo, desde o anexo at� a chegada � resid�ncia. Conhece os ex-pacientes, agora moradores, pelo nome. E vice-versa. “N�o tenho d�vida de que nada melhor do que a liberdade para tratar o sujeito. Muitos empoderamentos s� avan�am depois que ocorre a alta hospitalar do paciente. A conviv�ncia social cobra que ele use uma roupa. A cidade trata, a rua trata”, defende Fl�via Torres, coordenadora da equipe de desinstitucionaliza��o da Secretaria Municipal de Sa�de. Ela conta o caso da primeira vez em que foram almo�ar no restaurante no Padre Eust�quio, em que os cinco se portaram bem � mesa. “Na cl�nica, h� relatos de que eram obrigados a disputar a comida e por isso se acostumaram a comer com as m�os”.
Antes de ir embora da nova casa, a coordenadora � chamada nominalmente por Gl�ria*, j� deitada na cama, embaixo de um cobertor. Ela pede um copo de �gua, que acaba recusando quando a mo�a se aproxima atendendo ao pedido. Gl�ria queria apenas um gesto de carinho. Na sala de estar, ocorre outro encontro, agora com Rosa, que est� mais serena, deitada no sof�. Nos bra�os, traz o ursinho tricotado por Izabela, que trouxe o mimo para lhe deixar de lembran�a. “Tamb�m comprei um presente para a Gl�ria, que � apaixonada por bonecas, mas esqueci no carro. Deve ser desculpa para voltar, n�? Foram tr�s anos e meio de conviv�ncia”, suspira.
No alpendre da casa do Esplanada, perto do port�o, Marcelo est� sentado nos degraus da escada. Ao contr�rio da maioria dos outros, ele ainda fala algumas palavras, n�o perdeu toda a capacidade da linguagem. Quem fizer sil�ncio vai perceber que, inclusive, Marcelo est� cantarolando. � um bom sinal. Ao passar perto dele para ir embora, ele balbucia algumas palavras. Pede um cigarro (ele � aquele caso acostumado a comer guimbas, desde que o vizinho jogava para ele no quintal de casa). Usa uma blusa com o slogan do jacarezinho, de segunda m�o, e uma bermuda jeans. � acudido por uma das funcion�rias da prefeitura, que est� de plant�o. Sente-se � vontade na sua casa. Finalmente.
