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Estado de Minas

Andarilhos percorrem a rodovia Fern�o Dias em vida � margem do asfalto

S�tima reportagem da s�rie que corta Minas de norte a sul de bike revela hist�rias de quem largou tudo para se entregar a uma rotina sem destino � beira da Rodovia Fern�o Dias


postado em 19/11/2016 06:00 / atualizado em 19/11/2016 07:58

Luís Cláudio de Melo, ou simplesmente Polaco Carroceiro, vive há 12 anos perambulando pelas estradas do país e fez da BR-381 uma espécie de casa(foto: Túlio Santos/EM/D.A Press)
Lu�s Cl�udio de Melo, ou simplesmente Polaco Carroceiro, vive h� 12 anos perambulando pelas estradas do pa�s e fez da BR-381 uma esp�cie de casa (foto: T�lio Santos/EM/D.A Press)

Visto pelo mapa ou por livros de geografia, um dos principais eixos de transporte do pa�s, ligando as capitais de duas das maiores economias brasileiras, � sin�nimo de tr�fego r�pido e pesado – de ve�culos e dinheiro – pelas pistas que se estendem por 586 quil�metros entre Belo Horizonte e S�o Paulo. Percebida com mais tempo e menos correria, nas pedaladas cadenciadas sobre uma bicicleta, nota-se que a Rodovia Fern�o Dias, ou BR-381, abriga um outro tipo de movimento, vida mais lenta, com uma riqueza peculiar, na maior parte das vezes ignorada por quem faz do trecho apenas caminho at� o destino. Atra�dos pela boa estrutura e pelo grande n�mero de pontos de apoio, andarilhos an�nimos percorrem h� anos os acostamentos da rodovia, muitos deles refazendo os trajetos infinitas  vezes. Com um quarto da popula��o mineira acomodada em cidades de sua �rea de influ�ncia, a estrada � tamb�m casa e ponto de trabalho para uma legi�o que leva a vida �s margens do asfalto e da sociedade.

Um deles, e dos mais experientes, � Lu�s Cl�udio de Melo, de 52 anos, mais conhecido como Polaco Carroceiro. Alcan�ado perto do trevo de S�o Gon�alo do Sapuca�, rumava para S�o Paulo puxando seu carrinho de madeira, esp�cie reduzida de carro�a de tra��o humana. Carrega colch�o, cobertas, poucos utens�lios, alguma roupa. Ao descrever sua rotina, revela uma vida que lembra o mito grego de S�sifo –  personagem condenado a rolar eternamente at� o topo de uma montanha a mesma pedra, que, atingindo certo limite, rolava de volta, inutilizando o trabalho inicial. “Eu mesmo j� fiz 12 vezes a viagem ida e volta: 12 dias saindo de S�o Paulo, no Ja�an�, e chegando no Centro de Beag�, na rodovi�ria”, revela, sem precisar exatamente o motivo da infind�vel viagem.

Dinheiro, consegue catando latinhas – saindo de Beag�, juntou R$ 45 at� Perd�es. Nos 120 quil�metros anteriores, havia conseguido outros R$ 18. Usa o que recebe s� para lugares onde n�o ganha marmita. Mas isso � raro, revela: “A Fern�o Dias � a m�e dos trecheiros; aqui ningu�m nega nada”, define Polaco. “Tem gente que s� faz esse trecho por isso. Tem o Cabelo, que anda com uma foice na bicicleta, tem a Beatriz, que � meio grande e s� vai de carona, se oferecendo pros caminhoneiros...”, enumera. Com a experi�ncia de quem vive no trecho, conta que s�o sete ou oito os mais frequentes, os “mestres da 381”.

Rodando por Goi�s, Distrito Federal, S�o Paulo, Rio de Janeiro e toda a Regi�o Sul, s� n�o andou mais no Nordeste porque n�o encontrou acostamento quando esteve na Bahia. “O resto que eu queria conhecer, eu conhe�o”. O melhor mesmo, considera, � a BR-381. A placa do seu “ve�culo”, FGY **40, Polaco achou em S�o Paulo. “Encontrei assim, n�o sei a cidade, t� jogando no bicho direto”, segreda. Natural de Itarar�, na divisa com o Paran�, o homem vive como n�made h� 12 anos, desde que se separou e caiu na estrada. Bebia muito e brigava com a mulher, at� que a deixou com a filha, hoje com uns 18 anos. Largou tamb�m emprego com carteira assinada e perdeu direito � aposentadoria. Conta ter deixado a bebida h� seis anos.

Conhecendo cada metro da estrada, Polaco calculava a dist�ncia at� o pr�ximo posto, onde planejava tomar banho e fazer a barba. Com um macac�o com faixas fluorescentes, presente que ganhou de trabalhadores na rodovia, refere-se � Fern�o Dias como quem fala de uma cidade onde se sente em casa. Despede-se seguindo para S�o Paulo, e j� planejando a volta: “L� pra novembro, este ano ainda, volto de novo pra Belo Horizonte”.

Trecho de romance

Em dire��o contr�ria, o andarilho Daniel Dias Ferreira, de 38, mineiro de Montes Claros, rumava a p� de S�o Paulo para a capital mineira. Num fim de tarde de chuva fina, ele conta, no acostamento, na altura de Cambu�, Sul de Minas, que j� rodou de bicicleta, mas enjoou. Afirma ter viajado mais ou menos 15 vezes naquele trecho da Fern�o Dias. Al�m de Minas e S�o Paulo, j� passou pela Bahia, Paran� e Tocantins. “J� trabalhei muito; agora eu quero andar”, decreta. “Rola romance na estrada”, revela ele, que acabara de deixar uma “moreninha boa”, com quem contou ter passado dois dias pr�ximo a Extrema, na divisa com o estado vizinho. Entre goles da cacha�a que carrega num saco e oferece, lembra romances no Nordeste e no Tri�ngulo Mineiro. “Melhor lugar pra mulher onde passei � Uberl�ndia”, define. Com a garrafa acabando e a chuva apertando, volta � pista, sonhando um dia subir novamente a BR-116, que corta o pa�s de norte a sul. “A estrada � aventura, rapaz”.

Muita gente pensa o mesmo. � o que se percebe pr�ximo ao trevo que segue para Oliveira, no Centro-Oeste, em cruzamento com a BR-494, onde um posto de combust�vel movimentado atende caminhoneiros no hor�rio de almo�o. Do outro lado da pista, no km 618 sentido sul, duas mulheres aproveitam a sombra de eucaliptos sentadas sobre ra�zes que fazem de bancos. Conversam e por vezes acenam em dire��o a caminh�es que buzinam e seguem viagem. Alguns sorriem, como se fossem velhos conhecidos. O in�cio de tarde � movimentado para uma personagem de sand�lias, short jeans e camiseta branca com detalhe transparente. Mal sa�a de um carro de passeio prata e um caminh�o j� a aguardava uns 30 metros acima. Em meia hora, atende tr�s motoristas.

Há sete anos, M., de BH, viaja até 300 quilômetros por dia até seu ponto de trabalho(foto: Túlio Santos/EM/D.A Press)
H� sete anos, M., de BH, viaja at� 300 quil�metros por dia at� seu ponto de trabalho (foto: T�lio Santos/EM/D.A Press)

M., como prefere ser chamada a mulher de 34 anos, mora no Barreiro, em Belo Horizonte. Nos �ltimos sete anos, viaja de �nibus os quase 300 quil�metros ida e volta at� o ponto de trabalho, � beira da 381. Alguns locais, como aquele, s�o conhecidos por motoristas de todo o Brasil, conta. Como prova, embalagens de preservativo se espalham no ch�o, por todo lado. M. diz cobrar R$ 50 por programa e contabiliza, em dia razo�vel, “uns R$ 300”. “Varia muito, mas depois que a Dilma saiu, os caminhoneiros se animaram mais”, avalia, sobre a situa��o do pa�s p�s-impeachment. Segundo ela, na freguesia “tem de tudo: solteiro, casado”. A maioria chega em caminh�es. Uns poucos, em carros pequenos. Concordando com uma foto antes de se despedir, M. responde � amiga que a chamava de louca: “N�o tem problema miga, meu namorado sabe que eu fa�o programa”.

 

  Di�rios da bicicleta - Rebeli�es, celebridades e acolhida


Deixando Divin�polis, sigo para Carmo da Mata, �ltima parada antes da aguardada BR-381. Alcan�o Oliveira ainda cedo e, com quase 90 quil�metros rodados, pernoito em Perd�es, num pequeno hotel de beira de estrada. Entro em Carmo da Cachoeira, nos “descaminhos fora do controle do governo”, como informa a moradora Leonor Rizzi, pesquisadora da regi�o, que j� foi chamada de deserto desnudo, “do Rio Grande pra baixo, at� o Rio Sapuca�, sem lei, na lei do sert�o”. Alcan�o a terceira parada entrando em Campanha, que j� foi sede provis�ria de governo separatista do Sul de Minas. “Tinha bandeira, hino, e durou alguns dias. Mas entregaram o movimento, o Ex�rcito veio e acabou”, conta o fot�grafo Jos� Milton Junqueira. Entre os moradores ilustres, al�m de Vital Brazil e Padre Victor, est� Maria Martins, escultora mineira integrante dos c�rculos surrealistas europeus, amiga de Breton e mais que amiga de Duchamp. Euclides da Cunha passou temporada na cidade e uma vers�o sustenta que o escritor come�ou Os Sert�es ali. De volta ao trecho, S�o Gon�alo do Sapuca� e Pouso Alegre, onde colega ciclista me aguardava com boas conversas, um card�pio gourmet e – n�o menos importante –, uma preciosa m�quina de lavar. Explorando a cidade, num banco de pra�a tr�s senhores somavam quase 270 anos de amizade, descendentes de italianos e um liban�s. Feis Bchara conta que aportou no pa�s depois de 66 dias de navega��o. “Fico arrepiado at� hoje vendo o Cristo Redentor, com os bra�os abertos para aqueles que debandaram para os quatro cantos pelo furor das guerras”, se emociona. Antes de seguir para Pouso Alegre, a fam�lia foi junta at� Aparecida, pagando promessa � padroeira. “Acho que Minas corresponde com o nome, n�o s� na parte material, mas na parte espiritual tamb�m. Mina, ouro, tudo, a religiosidade que existe aqui se compara com a do L�bano”, avalia Feis. “No lend�rio Oriente iniciei minha caminhada, tornei-me no Ocidente peregrino da estrada”, conclui, despedindo-se com um �ltimo verso �rabe. Sigo na f� pela “M�e dos Trecheiros”, a BR-381, debaixo de chuva at� Camanducaia.


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