Caratinga, Governador Valadares, Iapu, Resplendor, Ubaporanga e Vargem Alegre – Restavam apenas dois dias para que as cidades sem um Plano Municipal de Saneamento B�sico (PMSB) ficassem sem acesso a recursos de saneamento quando, em 29 de dezembro de 2017, no apagar das luzes do ano, o presidente Michel Temer salvou a falta de planejamento e compromisso dessas prefeituras, esticando o prazo em mais dois anos.
Com o decreto editado por Temer (9.254/2017), � a terceira vez, desde 2010, que o governo federal estica o prazo para que as administra��es municipais estabele�am um plano para cuidar do lixo e do esgoto que produzem, contrariando os limites previstos pela lei de diretrizes de saneamento b�sico. E seriam muitas prefeituras em Minas Gerais sem qualquer acesso a fundos de saneamento, j� que, dos 853 munic�pios, apenas 231 (27%) conclu�ram o PMSB, segundo listagem do Minist�rio das Cidades.
A medida serviu, por outro lado, como al�vio para prefeituras que sujeitam sua popula��o a esgotos a c�u aberto, lix�es e a uma farra na implanta��o de Esta��es de Tratamento de Esgoto (ETE) que custam milh�es mas simplesmente n�o funcionam.
Na bacia mais fragilizada pela polui��o em Minas Gerais – e uma das piores do Brasil –, a do Rio Doce, apenas 10 (9,8%) dos 102 munic�pios da �rea minera tratam o seu esgoto antes de lan��-lo nos mananciais. A elasticidade do prazo deu mais tempo a prefeituras, que levaram oito anos para editar o plano e n�o o fizeram, como tamb�m ao Comit� da Bacia Hidrogr�fica do Rio Doce (CBH-Doce), que havia se comprometido a ajudar as administra��es municipais a produzir o PMSB com recursos referentes ao uso das �guas do Rio Doce.
Para se ter uma ideia, a maior cidade da bacia federal, Governador Valadares, com 264 mil habitantes, coleta quase 94% de seu esgoto, mas despeja 100% do que � captado diretamente em mananciais d’�gua, ou seja, tudo isso acaba no Rio Doce. Desde 2013, est� prevista a constru��o de duas ETEs no munic�pio, mas tais estruturas ainda n�o foram feitas.
Tamb�m se beneficiou a Funda��o Renova, entidade criada para gerenciar e executar a recupera��o dos danos do rompimento da Barragem do Fund�o, em 2015, ap�s um acordo entre a Samarco, que operava a estrutura, a Vale e a BHP Biliton, controladoras da mineradora, a Uni�o e os governos de Minas Gerais e do Esp�rito Santo. Entre as diretrizes de planejamento da Renova consta a “A��o 31: Coleta e Tratamento de Esgoto”, que previa R$ 500 milh�es para a “elabora��o de planos de saneamento b�sico, projetos de sistema de esgotamento sanit�rio, implementa��o de obras de coleta e tratamento de esgoto, erradica��o de lix�es e implanta��o de aterros sanit�rios regionais”, segundo tal planejamento.
Em paralelo � benesse em forma de prazos, segue o sofrimento de quem fica exposto a esgoto e lixo. Em Caratinga, onde apesar de 82,79% dos esgotos serem captados, todo o res�duo produzido pela popula��o de 74 mil habitantes acaba nos c�rregos e cursos d’�gua, que invariavelmente ingressam no Rio Caratinga, um dos afluentes do Rio Doce.
Os reflexos disso s�o sentidos pouco depois do territ�rio municipal. Apenas cinco quil�metros depois do limite com a vizinha Ubaporanga, o pesadamente polu�do Rio Caratinga tem suas �guas sugadas por uma bomba flutuante que abastece a Esta��o de Tratamento de �gua (ETA). Essa mesma �gua precisa ser intensamente tratada para chegar minimamente consum�vel �s torneiras e aos copos dos moradores de Ubaporanga. As mesmas �guas irrigam extensos campos de hortali�as e matam a sede dos rebanhos de gado.
Val�o da vergonha
Um dos casos mais gritantes de esgoto a c�u aberto na Bacia Hidrogr�fica do Rio Doce � o de Vargem Alegre, a 40 quil�metros de Caratinga. Apesar do nome, que remete a um alagadi�o ribeirinho de astral tal que torna as pessoas mais felizes, o pequeno munic�pio de 6.500 pessoas � cortado por um antigo curso d’�gua que se tornou um fosso de esgoto cinzento e ganhou o apelido de “val�o”. Esse duto de res�duos f�tidos e insalubres percorre canais estreitos entre barracos de tijolos sem reboco, recebendo adi��es ao longo do seu caminho de mais esgoto dom�stico vindo de sequ�ncias de encanamentos que pendem das habita��es para dentro do curso.
Debaixo das pontes � que o grosso do esgoto satura as �guas j� escuras e sem vida. De manilhas e tubula��es grossas escondidas da vis�o de motoristas e de pedestres pelas estruturas vi�rias, manilhas e encanamentos derramam ininterruptamente uma �gua de colora��o negra que, ao se misturar no l�quido cinzento, vai formando l�nguas escuras, que deixam o val�o com um aspecto mais sombrio.
Um canal aberto e t�o abandonado pelo poder p�blico incentiva os pr�prios moradores a jogar ali mesmo o lixo dom�stico que produzem, parte dele em sacos, um outro tanto atirado livremente, como embalagens de lanches que s�o descartadas ap�s seu consumo, cotonetes que acabaram de ser usados, roupas sujas que n�o valem mais a limpeza e at� papel higi�nico posto fora pelas janelas.
V�rias barreiras improvisadas para tentar conter as cheias desse rio podre seguem o curso estreito e cercado de casas e muros residenciais. S�o barreiras de sacos de areia e defesas de t�buas e estacas de madeira contendo aterros. Com a neta de 1 ano no colo, a dona de casa Adelaide Costa Marques, de 55 anos, e o funcion�rio p�blico Rui Batista Marques, de 58, averiguam com os vizinhos o n�vel do esgoto para ver se as suas casas est�o amea�adas com as chuvas.
“A �gua vai l� dentro da casa dessa minha neta, pelo quintal. Imagina, minha filha tem essa (crian�a) e outra, de 7 anos. Como � que voc� consegue criar os meninos num lugar que s� traz doen�as. Os meninos vivem com diarreia, marcas na pele, n�o podem nem usar o quintal, porque depois que o esgoto desce e vai embora a terra ainda fica podre”, disse Adelaide.
De dentro dos quintais, aproveitando as fendas nos cercamentos de ripas de bambu, galinhas e pintinhos circulam pelas margens de esgoto e lixo para se alimentar dos vermes que descem levados pelo curso de esgoto. C�es vadios tamb�m ingressam sem medo naquelas �guas p�tridas. Mas n�o � apenas a sa�de dos animais que podem se tornar alimentos contaminados que preocupa. A falta de lazer da popula��o obriga a meninada a se aventurar dentro das tubula��es do esgoto que corre a c�u aberto, expondo de forma cr�tica a sua sa�de e ainda se arriscando a serem arrebatados e a se afogar num dia de chuva sob uma poss�vel tromba d’�gua.
“Esse esgoto a c�u aberto traz tudo quanto h� de problemas aqui para n�s (que vivemos perto). Um mau cheiro danado que na hora da comida, miseric�rdia! Tenho at� vergonha de trazer gente de fora para visitar minha casa. Mas o mais perigoso mesmo � a meninada que entra para dentro daquele buraco (manilha de esgoto por onde o val�o passa sob uma das pontes do bairro) e some l� dentro”, diz Rui Batista.
O fluxo de esgoto inst�vel e inund�vel j� provocou inclusive acidentes de autom�veis. “Teve um carro que estava passando pela rua e perdeu a vis�o porque o esgoto estava encobrindo tudo. Fui parar l� dentro da vala. Quase que o motorista se afoga dentro do aguaceiro de fezes”, lembra Rui Batista. De acordo com o casal, o saneamento do Val�o j� figurou nas promessas de todos os �ltimos prefeitos do munic�pio, todas, at� hoje, morrendo nos discursos de campanha.