As chamas que consumiram o Museu Nacional no Rio de Janeiro, que abrigava o cr�nio fossilizado de Luzia, deixaram evidente o risco que corre o acervo de f�sseis que ajudaram a reescrever a hist�ria humana nas Am�ricas. Luzia chegou a ser considerado o mais antigo habitante do continente, com cerca de 11,5 mil anos. Sua descoberta mudou os conceitos das migra��es pr�-hist�ricas que povoaram a regi�o. Contudo, justamente em Lagoa Santa, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte, onde ocorreu a descoberta, cr�nios e esqueletos de homens e mulheres integrantes do mesmo povo n�o podem ser observados pela popula��o, devido ao fechamento para visita��o dos museus da Lapinha (Castelinho) e Peter Lund. O �ltimo, que recebeu o nome do naturalista dinamarqu�s que colocou a regi�o na rota da paleontologia e da arqueologia mundiais, fechou as portas ontem. A provid�ncia foi tomada ap�s a constata��o de que tinha extintores de inc�ndio vencidos, que precisaram ser removidos, o que sinaliza para o mesmo risco que destruiu o Museu Nacional. O primeiro ainda n�o tem plano de preven��o de inc�ndio adequado, e s� poder� funcionar quando cumprir essa exig�ncia.
De acordo com o coordenador de unidade de conserva��o que abriga as unidades, Rinaldo Jos� de Souza, o Museu Peter Lund, criado em 2012 no Parque Estadual do Sumidouro, precisou recolher todos os extintores e envi�-los para uma empresa que faz a manuten��o nos equipamentos. Por esse motivo, as instala��es foram fechadas � visita��o. “N�o podemos receber as pessoas aqui at� que os extintores tenham sido recarregados. At� l�, o museu ficar� interditado. Identificamos que os equipamentos estavam vencidos havia uma semana”, afirmou.
O museu tem uma cole��o modesta, embora importante, com fragmentos de animais da megafauna e tamb�m de homens de Lagoa Santa, o povo de Luzia. A maior parte desse acervo foi trazida em comodato do Museu de Hist�ria Natural de Copenhague, na Dinamarca, para onde foram os itens coletados por Peter Lund, em meados do s�culo 19.
J� o Museu Arqueol�gico da Lapinha (Castelinho) era de propriedade particular e foi incorporado ao estado em junho deste ano, mas ainda n�o p�de ser aberto, por falta de plano de preven��o contra fogo. O motivo principal � a falta de um sistema adequado de preven��o de inc�ndio e evacua��o. Mas h� tamb�m um impasse com o acervo, que pertence � fam�lia da historiadora Erika Suzanna B�nyai. “Ainda n�o se decidiu se o acervo poder� ser apresentado, se � de propriedade particular ou se pertence ao estado ou � Uni�o”, disse o coordenador.
Diferentemente do Museu Peter Lund, o Castelinho tem um acervo riqu�ssimo. S�o 1.570 conjuntos que v�o desde artefatos ind�genas �s estrelas da cole��o, que s�o os tr�s cr�nios fossilizados de homens de Lagoa Santa, todos com mais de 9 mil anos. “A hist�ria de Luzia n�o acabou. Ela est� representada nesses f�sseis do seu povo, mas que s� poder�o ser admirados novamente quando o museu reabrir”, disse a curadora do acervo, Erika Suzanna B�nyai.
De acordo com ela, os tr�s cr�nios s�o atualmente alvo de estudos de pesquisadores europeus e podem ajudar a tornar mais claro como o povo que ocupou Lagoa Santa na �poca dos tigres-dentes-de-sabre e pregui�as-gigantes cruzou o Oceano Pac�fico e chegou at� Minas Gerais. “Antes da Luzia, n�o t�nhamos arqueologia no Brasil. Ela era a nossa estrela maior. A um custo terr�vel, que foi o inc�ndio do museu, espero que sirva para que se valorize e se cuide melhor do nosso patrim�nio”, disse �rika B�nyai, enquanto se abra�a a um busto de Luzia que faz parte do acervo, uma concep��o art�stica inspirada na reconstitui��o facial feita no cr�nio nos anos 2000. O artista pl�stico Arcanjo Ranieri doou o busto para a Prefeitura de Lagoa Santa.
Sobre as provid�ncias em rela��o ao acervo de Lagoa Santa, o secret�rio de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustent�vel, Germano Vieira, que responde pela pasta � qual est� vinculado o Parque do Sumidouro, afirmou ontem que a Semad est� alerta para atualizar as regras de seguran�a em suas unidades. Ele citou como exemplo a troca programada de extintores e a avalia��o da sinaliza��o de emerg�ncia, al�m da revis�o dos planos de preven��o e combate a inc�ndios.
As muitas hist�rias de um tesouro
Quando a jovem morreu, h� quase 12 mil anos, aos p�s da Caverna da Lapa Vermelha, em Lagoa Santa, sua falta foi sentida pelo seu grupo de ca�adores-coletores e ningu�m mais. Nem mesmo a redescoberta de seu f�ssil, em uma escava��o arqueol�gica franco-brasileira de 1975, trouxe grandes repercuss�es. Mas, essa que se tornaria uma importante personagem da hist�ria mundial renasceu em 1998, quando cientistas conseguiram datar sua morte, tornando-a o mais antigo ser humano das Am�ricas � �poca.
A descoberta mostrava que uma onda migrat�ria vinda da regi�o da Austr�lia chegou �s Am�ricas antes dos asi�ticos que cruzaram o Estreito de Bhering, na R�ssia. Foi uma revolu��o na ci�ncia. A aten��o foi tanta que o f�ssil dessa mulher, que morreu com cerca de 20 anos, ganhou at� nome, sendo batizada como Luzia, numa refer�ncia nacional ao f�ssil humano mais antigo do mundo, Lucy, uma et�ope de 3,5 milh�es de anos.

A Lapa Vermelha abriga v�rios p�ssaros em seus orif�cios lascados, como maritacas e urubus. As trilhas at� o local s�o bem demarcadas, por�m pouco frequentadas, j� que o espa�o fica dentro de uma �rea de preserva��o. Contudo, atividades miner�rias na regi�o preocupam o espele�logo. “Ser� que vamos permitir que atividades de alto impacto nos tirem tamb�m aquela que foi sua casa, um local onde sua cultura se expressava por desenhos e onde ela morreu? Fica essa preocupa��o”, disse Luciano Faria.
"Antes da Luzia, n�o t�nhamos arqueologia no Brasil. Ela era a nossa estrela maior. A um custo terr�vel, que foi o inc�ndio do museu, espero que sirva para que se valorize e se cuide melhor do nosso patrim�nio"
�rika B�nyai, curadora do acervo do Museu Arqueol�gico da Lapinha, com uma reconstitui��o das fei��es da mulher de 12 mil anos que estava no acervo do museu incendiado no Rio
'Pai' de Luzia: '� uma mancha para o Brasil'
Rio de Janeiro – “Estou extremamente abalado”, afirmou ontem o arque�logo e antrop�logo Walter Neves, considerado o pai de Luzia – o f�ssil humano mais antigo j� encontrado nas Am�ricas, com cerca de 12 mil anos, e que pode ter sido perdido no inc�ndio do Museu Nacional, no Rio. A reconstitui��o de suas fei��es, que ficava em exposi��o, foi destru�da pelas chamas, mas at� ontem ainda n�o havia uma posi��o oficial sobre o cr�nio original. “Essa era uma trag�dia anunciada; o poder p�blico abandonou completamente o museu h� d�cadas”, afirmou. O antrop�logo classificou o inc�ndio como uma “trag�dia para a humanidade”. “E n�s teremos de prestar contas disso para a humanidade. Ser� sempre uma mancha enorme para o Brasil no mundo inteiro.”
Coordenador do Laborat�rio de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Bioci�ncias da Universidade de S�o Paulo (USP), Neves n�o foi o respons�vel pelo resgate do esqueleto, na d�cada de 1970, na regi�o de Lagoa Santa, na Grande BH. Mas, gra�as a seus estudos foi poss�vel reformular a teoria de ocupa��o humana nas Am�ricas durante a pr�-hist�ria.
O modelo postulado por Neves sustenta que o continente americano foi colonizado por duas levas distintas de Homo sapiens, vindas da �sia. A primeira onda migrat�ria teria ocorrido h� pelo menos 14 mil anos e era composta de indiv�duos parecidos com Luzia, com tra�os semelhantes aos dos atuais negros africanos e abor�gines australianos. Este grupo, no entanto, n�o teria deixado descendentes. Uma segunda leva migrat�ria teria chegado h� 12 mil anos e seus membros apresentavam um tipo f�sico caracter�stico dos asi�ticos, dos quais s�o descendentes os �ndios atuais.
"Teremos de prestar contas disso para a Humanidade. Ser� sempre uma mancha enorme para o Brasil no mundo inteiro"
Walter Neves, coordenador do Laborat�rio de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Bioci�ncias da USP, respons�vel por estudos que, a partir de Luzia, reformularam a teoria da ocupa��o das am�ricas
Foi Neves quem batizou o f�ssil de Luzia – numa alus�o a Lucy, um f�ssil de australopitecos de 3,2 milh�es de anos descoberto no Deserto de Afar, na Eti�pia, considerado um dos mais antigos homin�deos de que se tem not�cia. Ele se encontra hoje no Museu Nacional, em Adis Abeba. O f�ssil, no entanto, � guardado em condi��es de seguran�a e apenas uma r�plica fica em exposi��o.
“Para mim, a maior trag�dia, de longe, � a perda das cole��es”, diz Neves. “Em muitos pa�ses, por incr�vel que pare�a at� na Eti�pia, cole��es �nicas, como a Luzia, s�o consideradas quest�o de Estado: elas s�o mantidas em situa��o ideal de preserva��o e, para estud�-las, � preciso pedir permiss�o diretamente ao presidente da Rep�blica.”
Neves frisou, no entanto, que seria “estreito”, da parte dele, salientar somente a perda de Luzia. “A quest�o das cole��es � muito cruel, porque ou voc� tem ou n�o vai ter nunca mais”, disse Neves, referindo-se especificamente �s cole��es eg�pcias e gregas, as maiores da Am�rica Latina, trazidas em parte por Dom Jo�o VI, em 1808. “� um material que nunca mais vamos ter. Mesmo que a gente v� escavar nesses pa�ses, as leis nacionais n�o permitem que as pe�as saiam. Ent�o, nesse caso, nunca mais vamos ter condi��es de fazer pesquisas sobre Egito e Gr�cia com base em cole��es de museus no Brasil.”
Rel�quia de Lagoa Santa pode ter se salvado dentro de cofre
Pesquisadores do Museu Nacional ainda nutriam ontem a esperan�a de que parte do acervo, justamente algumas das pe�as mais raras e valiosas, possa ter sido salva do fogo dentro de cofres e arm�rios de a�o especiais. Entre essas est� o cr�nio de Luzia, o f�ssil humano mais antigo encontrado no Brasil, com cerca de 12 mil anos. Eles reconhecem que o trabalho n�o ser� f�cil, pois o interior do pr�dio ainda est� muito quente e os dois andares superiores desabaram sobre o t�rreo, formando uma grossa camada de cinzas, carv�o, ferros retorcidos e tijolos. “As pessoas foram de manh� tentar achar a Luzia, mas parece que ela estava em uma caixa e tem muito escombro. A gente n�o sabe se ela resistiu. Tem que haver a per�cia, para liberar o pr�dio e os pesquisadores entrarem de fato e retirar os escombros”, disse a vice-diretora do museu, Cristiana Serejo. Segundo ela, alguns departamentos guardavam pe�as mais valiosas dentro de cofres, que podem ter resistido �s altas temperaturas. O pesquisador Helder de Paula Silva, um dos respons�veis pela cole��o de paleontologia, confirmou a informa��o. “O cr�nio de Luzia estava em uma regi�o que foi bem atacada pelo fogo, dif�cil de ser acessada, e n�o conseguimos localiz�-lo”, contou H�lder.