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Estado de Minas

S�rgio Abranches: 'Brumadinho, uma Guernica mineral'


postado em 09/02/2019 06:00 / atualizado em 09/02/2019 08:02

(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Brumadinho � um espanto. Uma Guernica mineral. Um desalento. Porque n�o � um s�. Antes veio Mariana. Matou um rio, 19 humanos, fraturou a cultura ribeirinha do povo krenak das margens do Rio Doce, destruiu o modo de vida dos pescadores. Soterrou patrim�nio natural, cultural, modos de vida e de sobreviv�ncia. Antes ainda que as feridas profundas de Mariana se fechassem e sem repara��o � altura das perdas e danos, veio o desastre da Mina C�rrego do Feij�o. Que vergonha e que indigna��o!

Mariana e Brumadinho n�o est�o s�s. Nem s�o apenas quatro, como os cavaleiros do Apocalipse. S�o quatrocentas. Ou mais. Uma delas, dependurada sobre a joia art�stica que � Congonhas, em Minas Gerais, amea�a com 100 milh�es de metros c�bicos de rejeitos, de lama fatal, um extraordin�rio patrim�nio art�stico-cultural e a vida inestim�vel de milhares de pessoas. Ali, a Bas�lica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos coroa o mais espetacular complexo arquitet�nico e estatu�rio do Brasil. N�o � exagero. O conjunto paisag�stico e art�stico representado pelo santu�rio n�o tem paralelo no pa�s.

Abaixo da bas�lica, sob o olhar dos 12 profetas esculpidos pelo g�nio Aleijadinho, coreograficamente distribu�dos pelo adro, derrama-se a via-sacra, tamb�m do artista, em capelas nas quais as cenas talhadas em madeira em tamanho natural encantam e enternecem. Al�m da beleza das esculturas, os profetas do adro da igreja e as cenas da Paix�o de Cristo nas capelas revelam uma cenografia deliberada e expressiva. � o principal legado escult�rico de Aleijadinho, tombado e abandonado. A filha de um maestro amigo meu, ao v�-las aos 8 anos de idade, exclamou: “Est�o vivas, papai!”. E est�o, mas por quanto tempo?

Esse santu�rio art�stico, que contou com os g�nios de Aleijadinho e outros grandes artistas do Brasil colonial, como o insuper�vel Mestre Ata�de, Francisco de Lima Cerqueira e Jo�o Nepomuceno Correia e Castro, est� emoldurado por um cen�rio natural espetacular e cercado por sobrados que n�o se fazem mais. Sobre esse precioso bem coletivo est� uma barragem como essas que se romperam, por�m ainda maior. A Casa de Pedra cont�m 100 milh�es de metros c�bicos de rejeitos, de lama t�xica, prontos para soterrar o legado de Aleijadinho, eliminando-o do mundo e da mem�ria. Em Mariana, foram 50 milh�es; em Brumadinho, 12 milh�es.

Brumadinho pode ter matado mais de duas centenas de seres humanos. Liquidou neg�cios e cria��es. Est� matando o Rio Paraopeba. O Paraopeba � um rio sertanejo como eu e, enlameado, caminha para minhas paragens curvelanas. Pode enlamear parte do grande sert�o e das veredas de Guimar�es Rosa, tirando-lhes at� o sentido metaf�sico. O Doce, rio serrano, tem uma de suas nascentes ao lado, Barbacena, cidade de meu pai, de meu irm�o e de minha inf�ncia. Conhe�o as v�timas, cresci com elas. E como d�i.

Em S�o Joaquim das Bicas, os patax�s da aldeia H�-h�-h�e foram evacuados. Est�o amea�ados por Brumadinho do mesmo destino dos krenak do Rio Doce. Hoje, nas margens do rio morto, os velhos krenak contam para os jovens sobre os animais e a vida ribeirinha perdidos na lama, para que mantenham suas refer�ncias, agora meras abstra��es. O canal Futura tem uma s�rie de document�rios pungentes sobre o drama dos krenak do Doce morto.

Essas trag�dias n�o foram incidentais. Elas tiveram causas e autores humanos. O autor principal chama-se Vale. Uma empresa que se apresenta como verde, mas esse verde � camuflagem de predador. Como disse Drummond, o vale � doce, a Vale, amarga. O autor coadjuvante chama-se Estado. Ambos, empresa e Estado, t�m uma caracter�stica gen�tica comum: suas a��es dependem das escolhas de seus gestores, a diretoria, num caso, o governo, no outro. Escreveram essa trag�dia a v�rias m�os, a empresa, suas subsidi�rias, as consultoras, os governos estadual e federal, com m�s decis�es, colocando a taxa de lucro acima do valor das vidas humanas e do patrim�nio cultural, ambiental e paisag�stico.

H� um outro autor pol�tico. O Congresso, que se rendeu ao lobby das mineradoras e seus dinheiros de campanha, afrouxou a fiscaliza��o e engavetou as provid�ncias legais apresentadas ap�s Mariana. O ex-deputado (deixou a C�mara demitido pelos eleitores) Leonardo Quint�o (MDB-MG), relator do projeto que criava novas regras para a minera��o, reescreveu-o � imagem e semelhan�a dos desejos do lobby mineral. Agora vai para o novo governo, manter-se ativo no Gabinete Civil. Brasil surreal, onde tudo muda para ficar na mesma. Exemplos de irresponsabilidade pol�tica e corporativa. Deputados deveriam estar a cuidar do bem p�blico e n�o dos v�cios privados. As mineradoras deveriam estar a corrigir seus v�cios e buscando novos modos, para minimizar os riscos que imp�em � sociedade, � qual nada retornam, se n�o magros royalties e buracos, quando n�o cad�veres e desola��o.

Falou-se muito, e nem sempre com precis�o, sobre risco. No primeiro dia do curso que costumava oferecer sobre risco pol�tico, explicava a meus alunos alguns conceitos b�sicos, igualdades e diferen�as. Come�ava por dizer que a no��o de risco � a mesma, na engenharia, no ambiente, na economia e na pol�tica. Os dados e os par�metros � que se alteram. Usava o quadrinho abaixo para ilustrar essa igualdade e distinguir o que faz parte da matriz de riscos e o que n�o faz.


Risco
� simples. O conceito b�sico de risco – ele pode ser sofisticado e ficar mais complexo a partir da� – nasce da interse��o entre a probabilidade de ocorr�ncia de um evento e a severidade do dano que pode causar. O quadrante inferior esquerdo – baixa probabilidade e baixo dano – n�o requer muita aten��o. O quadrante superior esquerdo – alta probabilidade e baixo dano – requer provid�ncias regulares. O quadrante superior direito – alta probabilidade e dano severo – n�o faz parte da matriz de risco. Primeiro, antes de uma situa��o chegar ali, uma empresa respons�vel j� teria tomado provid�ncias preventivas, para evitar sua progress�o at� essa condi��o quase irremedi�vel. Caso o tivesse feito, n�o estaria enfrentando um risco, que sup�e incerteza, mas um quadro a exigir provid�ncias imediatas e radicais. O quadrante inferior direito � o que caracteriza o verdadeiro risco – baixa probabilidade e dano severo — que imp�e vigil�ncia permanente.

Se imaginamos que cada evento pode ser situado em pontos distintos dentro de cada quadrado, indicando varia��es na probabilidade de ocorr�ncia e severidade do dano, teremos uma escala cont�nua que ir� da probabilidade muito baixa at� muito alta e dano de baixa severidade at� dano de severidade m�xima. As barragens de alteamento a montante, como as de Mariana e Brumadinho, jamais estariam na categoria de baixo risco. A probabilidade de rompimento vai aumentando a cada al�amento, que reduz a resist�ncia estrutural original. Portando, nos dois casos, exigiam monitoramento 24/24, isto �, 24 horas por dia, de segunda a domingo, de 1º de janeiro a 31 de dezembro, com sensores e instrumenta��o adequados e em permanente manuten��o, al�m de verifica��es de campo di�rias.

O laudo no qual se ampara a Vale para se dar ao direito, que n�o tem, de dizer que foi pega de surpresa pelo rompimento de Brumadinho � um exemplo de como a atividade tem regula��o inadequada. Uma barragem de rejeitos fluidos � din�mica. O fato de estar est�vel em setembro de 2018, nada diz sobre sua estabilidade em janeiro de 2019. Mesmo que estivesse desativada – a empresa precisa provar que n�o aumentou o volume de rejeito desde de 2014 porque em Mariana houve informa��o inver�dica sobre isso –, a chuva, a acomoda��o progressiva do rejeito ainda liquefeito e sua consolida��o progressiva alteram os par�metros determinantes da estabilidade. S� o monitoramento 24/24 e a inspe��o di�ria podem determinar a estabilidade a cada momento. Barragens n�o rompem de supet�o, avisam. Se n�o souberam identificar esses avisos, al�m de negligentes eram incompetentes.

Mais ainda, a trajet�ria de um poss�vel rompimento deveria ser objeto de simula��es, para impedir constru��es a montante, e, at� mesmo, a implanta��o da barragem. Para toda a �rea de impacto definida pelos trajetos poss�veis da lama, planos de conting�ncia deveriam prever a evacua��o, medidas de conten��o e prote��o. H� �reas em que a remo��o � poss�vel e outras, em que ela n�o �. S�o investimentos que as empresas evitam, para preservar sua margem de lucros e controlar custos. Como resultado, aumentam os custos p�blicos. A velha socializa��o das perdas e privatiza��o dos lucros. Com o progresso rumo a novos materiais de baixo impacto ambiental e clim�tico, o pre�o dos produtos que v�o ficando obsoletos cai e as empresas resistem ainda mais a fazer investimentos de precau��o. � ainda pior, porque tentam compensar a perda de valor do produto com a amplia��o do volume de venda, aumentando a press�o sobre as barragens, reduzindo as medidas de cautela. Por isso os v�cios privados jamais se tornam virtudes p�blicas. Nessas atividades de risco, n�o se pode abrir m�o da regula��o estatal nem terceirizar a palavra final. Por isso o sucateamento e a politiza��o das ag�ncias reguladoras, na �ltima d�cada e meia, foram t�o lesivos ao interesse p�blico.

N�o h� outro caminho para a atividade mineral no Brasil se n�o a proibi��o do beneficiamento a �mido. Mesmo as barragens de alteamento a jusante, mais seguras, s�o muito danosas ao ambiente. Al�m do risco, nunca pequeno, o beneficiamento a �mido causa danos ambientais severos, mesmo em opera��o normal. Al�m da devasta��o que a atividade em si produz, como no Pico do Cau�, t�o dolorosamente documentado por Carlos Drummond de Andrade, o consumo de �gua � absurdo. S� deveriam permanecer em atividade as minas que comportassem beneficiamento a seco.

Isso � o que faria uma sociedade madura, civilizada, que valoriza a vida humana acima de tudo e preza seu patrim�nio cultural, art�stico e natural. Uma sociedade que n�o confunde desenvolvimento a qualquer custo com progresso. Um povo que quer transitar para uma vida pessoal e coletiva de mais qualidade, que busca a felicidade, n�o apenas o prazer fugaz e a alegria passageira.

* Mineiro de Curvelo, o soci�logo e escritor S�rgio Abranches � especialista em ecopol�tica


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