
(Por B� Sant'Anna) Somente depois que a lama come�ou a secar dentro de mim, tateei o solo fr�gil por onde caminhar e avaliar os destro�os que ficaram expostos e ocultos.
Ai de mim, mineiro por natureza. Daqui do Porto parto em cacos, restos, formas disformes e questionamentos sujos, turvados por pensamentos d�bios de compaix�o e raiva, ang�stia e dor, hematita a ser arrancada do peito.
A pedra do caminho de Drummond era de min�rio de ferro.
Pobres de n�s que n�o sabemos ouvir o saber dos artistas. Em 1994, o escultor Leo Santana j� nos contava em sua exposi��o nos c�rregos de Macacos - S�o Sebasti�o das �guas Claras o que estava por vir. Mas a arte � s� um saber menor: o que importa � a raz�o, os c�lculos dos engenheiros, a precis�o dos economistas, a ci�ncia dos matem�ticos, a propor��o dos investidores. O escultor que magicamente sentou Drummond no banco de Copacabana n�o pode ser mais preciso que a aritm�tica do Homem que Calculava.
Tenho compaix�o de quem fez a planta da mina de Brumadinho, colocando os escrit�rios e o refeit�rio embaixo da barragem de rejeitos. Porque n�o existem argumentos capazes de livr�-lo de seu travesseiro e do escuro da noite. Quando a luz se apaga, ele experimenta o oco da vida, onde est�o os filhos e pais e m�es, enterrados vivos sem travesseiros.
Ah, mas a barragem n�o foi feita para arrebentar. N�o. E nenhuma t�bua foi feita para cair na cabe�a de nenhum pedreiro. Ele � obrigado a usar capacete, n�o porque sabemos que existe um tipo de t�bua voadora. Mesmo sem ser engenheiro, n�o preciso de argumentos para defender o que fatalmente � �bvio.
Queria abra�ar os bombeiros, lavar suas roupas, achar os seus olhos e dizer que me importo.
N�o quero pensar que quem n�o saiu �s ruas depois da trag�dia de Mariana, de algum modo, jogou um tiquinho de lama em todos os filhos e pais e m�es que n�o v�o voltar para suas casas. N�o quero pensar que at� os parentes daqueles vitimados, que n�o sa�ram �s ruas, tamb�m podem por um momento sentir essa ang�stia. At� os funcion�rios da mineradora que n�o gritaram antes, eles tamb�m, podem ter tido essa ang�stia em seu derradeiro grito.
Tenho compaix�o de cada funcion�rio da mineradora, de todos os investidores que tem a��es desta empresa, do presidente da companhia, das suas certezas que foram enterradas ao lado de dezenas de corpos e das suas d�vidas lavadas pela lama. Dos diretores, dos gerentes, de quem sabe alguma coisa, de quem n�o sabe nada. Tenho compaix�o dos que postam qualquer coisa a respeito dessa trag�dia sobre si e sobre sua atua��o no instagram, com a melhor das inten��es. Tenho compaix�o de mim, que escrevo esse texto pensando se devo delet�-lo ou public�-lo.
Eu sei a cor da �gua turva de min�rio. Lavamos ferro. Levamos ferro. Os duzentos milh�es de brasileiros s�o c�mplices ocultos de uma trag�dia vis�vel. E todos devemos nos envergonhar.
Estou com vergonha. Talvez eu pudesse ter gritado mais do que gritei, ter feito mais inimizades do que fiz com minhas opini�es ditas obtusas, rasas e equivocadas. Talvez eu devesse ter sa�do mais �s ruas, chorado mais, pedido mais, perdido mais. Mas � sempre assim: o medo da perda � particular.
Se a verdadeira arte e os artistas, de fato, tivessem seus saberes equiparados com outros saberes, talvez n�o tiv�ssemos sociedade. Quem sabe, saciedade.
Da minha parte, pe�o desculpas pelo que n�o fiz. Eu, como tantos outros, juro que achei que estava tentando, em minha preocupante ignor�ncia.
Triste, Poeta. A poesia se arrebentou e as pedras cantaram, como tamb�m previu Dominguinhos e Fausto Nilo. As pedras agora n�o est�o s� no meio do caminho. Est�o por cima de todos, todos todos, todos todos todos todos todos, todos n�s.
Me sei sempre soterrado por palavras.
� bem mais dif�cil o que sinto agora.
B� Sant'Anna � escritor, tradutor, doutorando em Ci�ncias da Linguagem pela Universidade do Porto