
“Outro crime.” Essa foi a manchete do Estado de Minas em 26 de janeiro, dia seguinte ao rompimento da barragem da Vale na Mina C�rrego do Feij�o, na primeira edi��o impressa com o resultado da mobiliza��o de dezenas de profissionais do jornal desde o in�cio da tarde do dia 25. Daquele dia at� hoje, a primeira p�gina teve 30 manchetes consecutivas sobre a maior trag�dia brasileira no s�culo 21, uma das maiores de todos os tempos do pa�s. At� a edi��o de ontem, o jornal reservou 160 p�ginas � cobertura do rompimento da barragem em Brumadinho e aos alertas de risco provocados por mineradoras, como em Itatiaiu�u, Bar�o de Cocais, Macacos e Outro Preto. Tamb�m deu voz a moradores de �reas pr�ximas a minas em outros munic�pios mineiros, como Congonhas e Ipatinga, onde o temor de outra trag�dia � constante. Na edi��o de hoje, mais 12 p�ginas, desta vez no caderno especial Vozes de Brumadinho, que segue os moldes do especial Vozes de Mariana, publicado um m�s depois da trag�dia da Samarco que arrasou Bento Rodrigues e outros vilarejos.
A cobertura na internet tamb�m � marcada por n�meros superlativos de reportagens – e de audi�ncia. Foram mais de 800 not�cias publicadas no em.com.br, que garantiram �ndices jamais alcan�ados no portal Uai. Para isso, tem sido necess�rio contar com o esfor�o e talento de jornalistas de diversas editorias; alguns mais experientes, outros rec�m-chegados na profiss�o: todos com a mesma dedica��o. Em primeira pessoa, alguns desses profissionais narram hoje a experi�ncia intensa que vivenciaram para transmitir aos leitores as diversas consequ�ncias do desastre criminoso causado pela Vale, que espalhou em Minas Gerais um rastro ainda incomensur�vel de lama, morte, medo e dor.
“Enlameado, ele me olhava”
Alexandre Guzanshe
Rep�rter fotogr�fico, 43 anos, 20 de profiss�o
“Eu estava com o rep�rter Mateus Parreiras na primeira equipe que saiu da reda��o para ir a Brumadinho. No caminho, eu s� pensava: ‘De novo, n�o...’ Ainda na estrada, a gente viu a passagem da lama. Descia com muita velocidade. Depois chegamos � �rea onde havia um pontilh�o. Dava para ter uma vis�o do alto. A cena era muito mais assustadora do que em Mariana. Vi as pessoas levando as m�os � cabe�a; algumas choravam. Vi um homem (Jefferson Passos, que perdeu a irm� na Pousada Nova Est�ncia) que havia salvo duas pessoas e estava com o corpo todo coberto de lama. Fiz a foto dele. Fiquei quatro dias direto em Brumadinho apenas com a roupa do corpo: acompanhei de perto o trabalho dos bombeiros, me impressionei com a dedica��o deles. Mas acho que a principal foto que eu trouxe da minha cobertura foi o retrato do Jefferson, todo enlameado, perplexo e assustado, olhando para mim.”
“� preciso ouvir n�o s� com ouvidos”
M�rcia Maria Cruz
Rep�rter, 42 anos, 22 de profiss�o
“Participar da cobertura do maior crime socioambiental do Brasil, em Mariana, em 2015, me permitiu entender o significado de rompimento de barragem: morte, devasta��o e vidas soterradas. Ao ser escalada para produzir o especial Vozes de Brumadinho, pensei estar preparada para o que encontraria. N�o estava! A lama camufla, h� que estar atenta para n�o turvar os sentidos. Era preciso ouvir, mas n�o s� com os ouvidos. As hist�rias encobertas por rejeitos de min�rio requerem de n�s ouvir com os olhos, com a pele, com a nossa humanidade. � preciso estar disposta a perder a seguran�a que o lugar de entrevistador nos garante. Estar � deriva � a �nica forma de ficar diante da dor e da coragem de nossos entrevistados: Elias, Jefferson, Adriana, Joel, Helena, Atenagos, Marivalda, Neli, Dari, Edson, Farah, Karla. A voz � deles, guiados pela mem�ria de quem amam, algo que a for�a da lama, que retorce vag�es, n�o alcan�a. Com o trabalho conclu�do, dois sentimentos me tomam: o dever �tico de dar resson�ncia a essas vozes e o desejo de n�o ter tido que contar essas hist�rias. Rompimento de barragem deveria ser express�o em desuso, banida de nosso vocabul�rio.“

“N�o vi ru�nas, apenas lama”
Gladyston Rodrigues
Rep�rter fotogr�fico, 49 anos, h� 30 no EM
“Sa�mos de helic�ptero do Bairro Olhos D’�gua e passamos por Casa Branca at� chegar � �rea atingida tr�s horas depois do rompimento da barragem. Sobrevoamos a mina e fizemos o caminho da lama. Fotografei os vag�es de trem descarrilados, a caminhonete parcialmente coberta, a destrui��o na �rea da mina. Quando passamos pelo C�rrego do Feij�o, vimos as marcas da lama nas estradas e nas �rvores arrancadas. No Parque da Cachoeira, mais destrui��o: escombros, apenas telhados de casas. Depois, ao chegar no encontro do c�rrego com o Rio Paraopeba, registrei a diferen�a da tonalidade da �gua clara com a lama. Usei a lente grande angular. Quando o helic�ptero fez o caminho inverso, troquei pela tele (objetiva) para fazer muitos detalhes. Tamb�m participei da cobertura do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana. Notei uma diferen�a: n�o vi ru�nas, como em Bento Rodrigues. Desta vez tudo j� estava embaixo da lama.”
“Todos queriam cobrar respostas”
Larissa Ricci
Rep�rter, 25 anos, dois de profiss�o
“Minhas idas a Brumadinho come�aram na segunda-feira seguinte ao rompimento. Para mim, foi muito marcante estar no meio do barulho ensurdecedor dos helic�pteros que pousavam e decolavam a todo instante, presenciar aqueles sacos pretos sendo colocados no gramado da Igreja... Quem eram aquelas pessoas? Cheguei muito preocupada em como abordar os familiares das v�timas, mas logo entendi que n�o eram necess�rias perguntas. Todos queriam falar, falar sobre os que amam. Todos queriam cobrar respostas. Poucos dias depois do sepultamento da professora Sirlei de Brito, que morreu aos 48 anos, conversei com o marido dela, Edson Luiz Albanez. Parecia calmo, mas tinha um olhar vazio. Conversamos por mais de uma hora. ‘Precisamos de mais pessoas conscientes para enxergar a outra face da vida. N�o � s� dinheiro. Gastei milh�es em uma casa e sa� s� com a roupa do corpo’, desabafou, ao fim da entrevista.”
“A semana mais longa da minha vida”
Gabriel Ronan
Rep�rter, 23 anos, um de profiss�o
“Quando a Barragem do Fund�o arrasou Mariana, eu ainda era estudante de jornalismo. Havia acabado de entrar no meu primeiro est�gio e, ao ver tamanha destrui��o, fiquei chocado como qualquer brasileiro. Agora, n�o: era um profissional e Brumadinho foi a minha primeira grande cobertura. Meu primeiro contato com a lama foi no s�bado, um dia depois do rompimento da barragem. Foi na comunidade rural do Tejuco. Travei com o que vi: os rostos desfigurados dos primeiros corpos resgatados. Tamb�m conversei com pessoas que perderam tudo. Ao lado delas, chorei pela primeira vez durante o trabalho.
Achei que seria emo��o suficiente para o dia, mas ainda haveria mais. Percebi uma movimenta��o diferente na zona quente onde os bombeiros trabalhavam no Tejuco. Helic�pteros voavam baixo e um grupo de militares desembarcou em um ponto alto, logo ao meu lado, para avisar do perigo iminente de rompimento de uma nova barragem, desta vez de �gua. P�nico total. Lembro-me de uma mulher, de mais ou menos 30 anos, correndo aos prantos e se escorando em um familiar para subir um barranco. Chegou a ordem da reda��o para me afastar. William, o motorista que estava comigo e com o rep�rter fotogr�fico Ed�sio Ferreira, manobrou o carro do jornal para um ponto mais alto. Minutos depois, os bombeiros retornaram ao trabalho. Ainda assim, a preocupa��o permanecia estampada nas fei��es de todos.
Mais que o aprendizado em uma primeira grande cobertura, adquiri ensinamentos humanos em Brumadinho. Vi, de perto, o que � uma cat�strofe. Testemunhei o que o descaso de uma grande empresa como a Vale e do poder p�blico � capaz de causar. Eu, um jovem de classe m�dia que nunca teve do que se queixar desde que nasceu, compreendi como lidar com a trag�dia de quem s� tem a tristeza como certeza no futuro. Falo daqueles parentes que n�o deixavam, por motivo nenhum, a fachada da sede do comit� de crise em busca de informa��es dos seus entes queridos perdidos em meio � lama.
Fiquei quatro dias seguidos em Brumadinho. Perdi a conta dos textos que produzi e das situa��es chocantes que me foram contadas. Foi a semana mais longa da minha vida. Um m�s depois, penso naqueles dias como uma confirma��o de que escolhi a profiss�o certa. Darei o meu melhor para contar hist�rias. Por mais duras que elas sejam.”

“O som do helic�ptero
continua na cabe�a”
Renan Damasceno
Rep�rter, 32 anos, 12 de profiss�o
“Em cobertura de trag�dias, o som do helic�ptero costuma ressoar dentro da cabe�a, mesmo quando tudo est� em sil�ncio. Essa foi a sensa��o na primeira noite em Brumadinho depois do rompimento da barragem do C�rrego do Feij�o. Mesmo quando n�o havia ru�do, era dif�cil esquecer o barulho do motor e o desamparo das pessoas em busca de not�cias de parentes e amigos. Ouvi-los nas primeiras horas foi um duro choque de realidade. � quando cai a ficha que as centenas de corpos n�o s�o estat�sticas. S�o centenas de hist�rias brutalmente interrompidas.”
“Nunca tive contato com
tristeza t�o profunda”
Tiago Mattar,
Rep�rter, 26 anos, seis de profiss�o
“Foi a primeira vez que participei da cobertura de uma trag�dia. Desde os primeiros minutos em Brumadinho, ainda na tarde de sexta-feira, senti o impacto da trag�dia pelo sil�ncio ensurdecedor no Centro da cidade. Na pra�a principal, local de grande movimenta��o, segundo moradores, todas as lojas j� estavam de portas fechadas. Nos contatos iniciais com as pessoas aglomeradas em ponte sobre o Rio Paraopeba, n�o ouvi outro relato que n�o o de m�es, pais, filhos e amigos atr�s de not�cias. O impacto aumentou e me dei conta de que praticamente todos conheciam algum desaparecido. A demanda da cobertura era tamanha que n�o encontrava tempo para assimilar o tamanho daquela trag�dia. Ao mesmo tempo, as hist�rias de Jorge, Ed�lson, M�rcio, Maur�cio, Marcos e de tantos outros personagens com quem conversei na tarde daquela sexta-feira em Brumadinho martelavam na minha cabe�a. Guardei os rostos de cada um deles. No meu trabalho, nunca havia tido contato com uma tristeza t�o profunda. Vou guardar isso para sempre. Foi uma experi�ncia de vida.”