“Para relatar os primeiros dias da trag�dia, precisei superar a dor de ver uma cidade perplexa diante da destrui��o, mergulhada no caos e assombrada pelo descaso. Logo nas primeiras horas, quando cheguei a Brumadinho, percebi que, al�m de apurar e relatar os fatos, eu seria o porta-voz dos atingidos. Quando a Barragem de Fund�o arrasou Mariana, eu ainda era um estudante de jornalismo. Havia acabado de entrar no meu primeiro est�gio e, ao ver tamanha destrui��o, fiquei chocado como qualquer brasileiro. Lembro-me que soube da not�cia durante um trabalho no laborat�rio de r�dio. O operador da mesa interrompeu nossa grava��o �s pressas com as primeiras informa��es do desastre.

No mesmo dia, fui � Faculdade Asa, que se tornaria n�o s� a sede do comit� de crise do estado, mas tamb�m a minha 'casa' em Brumadinho. Quando cheguei, uma grande quantidade de jornalistas j� se posicionava. A informa��o era de que somente as pol�cias Militar e Civil falariam, al�m dos bombeiros. Aguardamos ao menos duas horas ali, sentados. Por volta das 19h, a espera foi justificada: o governador Romeu Zema falaria, ao lado dos assessores. O rec�m-eleito chegou de helic�ptero e, cerca de uma hora depois, fez um curto pronunciamento. N�o pudemos perguntar, mas uma frase do governador nos chamou a aten��o: 'Muito provavelmente, vamos resgatar somente corpos'. A manchete estava ali. Ao lado dele, os assessores dos �rg�os de seguran�a detalhavam como seriam as buscas.
Fui dormir por volta das 3h, de madrugada. Tinha consci�ncia de que, poucas horas depois, teria um enorme trabalho pela frente, mas ainda n�o conseguia dimension�-lo. O s�bado come�ou com o meu primeiro contato com a lama. Foi na comunidade rural do Tejuco, onde acompanhei o resgate dos primeiros corpos: duas pessoas engolidas pela lama da Vale localizadas ao fundo da casa de um fazendeiro. Travei ao ver os rostos desfigurados. Alguns minutos depois, entrevistei o jovem Lincoln Rocha, fazendeiro de 19 anos. A casa dele ficou completamente destru�da. O garoto escapou, ao lado da madrasta e do pai, por minutos. “O nosso sustento vinha da fazenda. Cri�vamos boi, porco, galinha e tamb�m pesc�vamos. Eu peguei um porquinho que estava no meio da lama e resgatei. O mesmo com umas galinhas. Mas a maioria j� era”, contou. Ao seu lado, o pai, que n�o quis gravar, me deu detalhes do tsunami. “Eu pensei que era um trem. Mas percebi o ch�o tremendo. A� corremos pro ponto alto”, disse.

Conversei tamb�m com horticultores e fazendeiros que perderam tudo. “Aqui sa�a era caminh�o cheio. Agora est� desse jeito a�”, lamentava Paulo S�rgio da Silva, o Paulinho, que vendia verduras para sacol�es da Grande BH. Ali, ao lado dele, chorei pela primeira vez trabalhando. N�o permiti que meu entrevistado percebesse minha emo��o; se ele n�o estava chorando, eu n�o tinha direito de chorar. As mensagens que n�o paravam de chegar no celular me chamavam ao trabalho.
O que parecia ser emo��o suficiente n�o acabou naquele momento. Percebi uma movimenta��o diferente na zona quente, onde os bombeiros trabalhavam, no Tejuco. Helic�pteros voavam baixo para que os militares embarcassem e deixassem o campo de trabalho. Um grupo desembarcou em um ponto alto, logo ao meu lado. A mensagem deles era que havia perigo de rompimento de uma nova barragem, desta vez de �gua. P�nico total. Lembro-me de uma mulher, de mais ou menos 30 anos, correndo aos prantos e se escorando em um familiar para subir um barranco e se salvar do que parecia a morte. O colega Mateus Parreiras, instalado no C�rrego do Feij�o, confirmou a informa��o. Recebi a ordem de sair imediatamente. William, o motorista que estava comigo e o rep�rter fotogr�fico Ed�sio Ferreira, manobrou o carro do jornal para um ponto mais alto. Minutos depois, a situa��o se acalmou e bombeiros retornaram ao trabalho. Segundo eles, tudo estava normal. Ainda assim, a preocupa��o permanecia estampada na cara de todos.
Ap�s o susto, seguimos por uma estrada de ch�o at� o campo de minera��o da Vale. De l�, consegui ver com maiores detalhes o tamanho da mancha de lama. Gravei na mem�ria a barragem que se rompeu. Subimos at� um ponto alto para v�-la e fazer fotos que sairiam na edi��o do dia seguinte. Almocei e retornei � �rea das coletivas. Conversei com colegas sobre a desorganiza��o de algumas entrevistas coletivas. Dezenas de profissionais dividiam um pequeno peda�o gramado. Cada um tentava a melhor posi��o para seu microfone. Depois do �ltimo boletim, me desloquei at� a pousada, onde redigi as �ltimas reportagens para a edi��o impressa.

Minha apreens�o aumentou na madrugada de s�bado para domingo. Fui dormir por volta das 2h. Acordei tr�s horas depois com o telefone do quarto da pousada. Involuntariamente, em raz�o do cansa�o e da ansiedade que haviam tomado conta do meu corpo, bati o aparelho e o desliguei. Instantes depois, pensei: 'quem ligaria para este telefone no meio da madrugada?'. Logo depois, escutei o som das sirenes: risco iminente de rompimento de outra barragem. Acordei um colega, o rep�rter Renan Damasceno, e decidimos ligar para a recep��o. A atendente aumentou nossa preocupa��o e nos disse que outra represa, a de �gua, havia rompido.
Sa�mos do quarto �s pressas. Coloquei-me no lugar dos atingidos ao vivenciar, pela primeira vez, uma situa��o de risco real. Renan foi na dire��o das comunidades rurais, enquanto eu me instalei na Faculdade Asa para esperar informa��es das autoridades. Trabalhamos, naquele dia, de 6h �s 23h. Em mensagens trocadas com familiares, amigos e com a minha namorada, tentava esconder o meu esgotamento.

Deixei Brumadinho na noite de ter�a-feira, 29 de janeiro. Nunca me senti t�o desgastado. Mas sa� da cidade com a sensa��o de dever cumprido, de que narrei boas hist�rias e relatei os fatos da maneira mais equilibrada poss�vel. Mais que o aprendizado, adquiri ensinamentos humanos em Brumadinho. Vi, de perto, os efeitos e as consequ�ncias de uma cat�strofe. Testemunhei o que o descaso de uma grande empresa como a Vale e do poder p�blico � capaz de causar. Eu, um jovem de classe m�dia que nunca teve do que se queixar desde que nasceu, assisti o quanto a vida vale pouco diante de tanta irresponsabilidade e omiss�o. Acho que compreendi como lidar com a trag�dia de quem s� tem a tristeza como certeza no futuro. Falo daqueles parentes que n�o deixavam, por motivo nenhum, a fachada da sede do comit� de crise em busca de informa��es dos seus entes queridos perdidos em meio � lama.
Aquela semana se tornou a mais longa da minha vida. Na quarta-feira, encarei um novo baque e mais um desafio pela frente. Por volta das 17h, pouco antes de sair rumo � reda��o, recebi a not�cia de que meu av� havia morrido. Carpinteiro, Jo�o Justino Filho tinha 86 anos. Enfrentou complica��es, inclusive de mem�ria e consci�ncia, antes de nos deixar. No primeiro momento, a not�cia n�o me abalou. Eu ainda parecia anestesiado �s mar�s desfavor�veis que a vida sempre imp�e a qualquer um de n�s. Durante o vel�rio do meu av�, parentes e amigos perguntavam sobre a cobertura do rompimento da barragem da Vale e me parabenizavam. “Eu te vi na TV”, diziam entusiasmados, como se fosse um Pulitzer. Passado um m�s, penso naqueles dias como uma confirma��o de que escolhi a profiss�o certa. Darei o meu melhor para contar hist�rias. Por mais duras que elas sejam.