Maquiagem de dados e interesse comercial: as rela��es por tr�s dos indiciamentos da Pol�cia Federal pela trag�dia de Brumadinho
Veja detalhes da investiga��o que apontou altera��o de dados pela consultoria T�v S�d para atestar seguran�a em barragem e garantir contrato com a Vale
postado em 21/09/2019 06:00 / atualizado em 21/09/2019 07:53
Os delegados Renato Arruda e Luiz Augusto Nogueira (D): apura��o indicou press�o e dados alterados (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press - 27/4/19)
O logotipo e selo de certifica��o da consultoria, o oct�gono azul, reconhecido como s�mbolo de compet�ncia t�cnica independente e imparcial de uma empresa de 153 anos de experi�ncia: com essas credenciais, a alem� T�v S�d entrou de cabe�a no mercado brasileiro e em um lucrativo ramo: o de certifica��o de barragens. Mas, segundo investiga��es, uma das principais certificadoras do mundo ignorou normas, alterou relat�rios e distorceu informa��es repassadas a �rg�os p�blicos de fiscaliza��o e investiga��o para abocanhar essa fatia de mercado junto de uma das gigantes da minera��o. A primeira resposta a essas pr�ticas veio ontem, quando a Pol�cia Federal anunciou o indiciamento de sete funcion�rios da Vale e outros seis da pr�pria T�v S�dpor falsidade ideol�gica e falsifica��o de documentos previstos na Lei de Crimes Ambientais, por causa do rompimento da barragem da Mina C�rrego do Feij�o, em Brumadinho, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte.
De acordo com o delegado da Pol�cia Federal (PF) Luiz Augusto Pessoa Nogueira, os crimes foram cometidos tr�s vezes, uma em junho e duas em setembro de 2018, quando as empresas assinaram documentos que atestavam a estabilidade da barragem. Os indiciados ainda ser�o investigados por crimes ambientais e contra a vida. “A trag�dia poderia ser evitada. Primeiro, porque a barragem deu sinais. Os estudos realizados apresentavam seguran�a abaixo do que era recomendado pelos pain�is de especialistas que a pr�pria Vale adotou”, disse o delegado respons�vel pelo caso. Segundo ele, apesar de estudos apontarem que o fator m�nimo de seguran�a aceito por boas pr�ticas internacionais era de 1,3, a barragem da Mina do C�rrego do Feij�o apresentava 1,09.
“Na minha vis�o, houve press�o por parte dos funcion�rios da Vale para conseguir os laudos (de estabilidade). A empresa queria dizer que tinha 100% das barragens est�veis. Queria apresentar para a sociedade e para o mercado que se tratava de uma empresa segura”, completou. Chamou a aten��o o fato de que o valor do b�nus pagos a esses funcion�rios da mineradora ser calculado proporcionalmente ao n�vel de seguran�a das barragens. Ou seja, quanto maior o n�vel de seguran�a, maior o b�nus.
Do lado da Vale, os funcion�rios s�o o gerente-executivo de Geotecnia Corporativa, Alexandre de Paula Campanha, as integrantes da Ger�ncia de Geotecnia Marilene Christina Lopes de Oliveira Ara�jo e Andrea Leal Loureiro Dornas, a integrante do setor de Gest�o de Riscos Geot�cnicos Cristina Heloise da Silva Malheiros, o especialista em liquefa��o Washington Pirete da Silva, o assessor t�cnico do Setor de Gest�o de Riscos Geot�cnicos Felipe Figueiredo Rocha e o ge�logo C�sar Augusto Paulino Grandchamp.
Da T�v S�d est�o na mira da Justi�a os engenheiros Makoto Namba e Marl�sio Cec�lio de Oliveira, o consultor Ars�nio Negro J�nior, a especialista em geotecnia e liquefa��o Ana Paula Toledo Ruiz e o executivo da empresa na Alemanha Chris-Peter Mayer. Nenhum diretor da Vale foi responsabilizado nessa etapa do inqu�rito. A mineradora se manifestou afirmando que continuar� colaborando com as investiga��es.
O relat�rio da PF n�o pediu pris�es, mas entrou com pedido de medida cautelar contra os indiciados. O objetivo � que sejam impedidos de prestar consultorias ou fazer novos trabalhos na �rea de barragens. O inqu�rito ser� encaminhado ao Minist�rio P�blico, que vai avaliar as provas produzidas. A partir da�, o MP decide se faz ou n�o a den�ncia. Em caso de condena��o, cada um dos envolvidos pode ter pena entre 9 a 18 anos. N�o h� prazo para que isso ocorra.
JUSTI�A O resultado do rompimento da barragem foi a morte de 249 pessoas, al�m das 21 que continuam desaparecidas. Como uma das consequ�ncias do desastre, a T�v S�d foi proibida pela Justi�a em maio de exercer a��es ligadas � seguran�a de barragens e teve suspenso contratos de mais de R$ 19 milh�es com a Vale. Assim como h� ind�cios de que a c�pula da mineradora soube dos problemas em Brumadinho, do lado da consultoria tudo indica que as informa��es tamb�m chegaram at� a dire��o da empresa, na Alemanha.
A T�v S�d foi pega pela Justi�a em a��o proposta pelo Minist�rio P�blico de Minas Gerais (MPMG) e pela for�a-tarefa que investiga o caso. Os promotores enquadraram os bra�os brasileiros da consultoria, a T�v S�d Bureau de Projetos e Consultoria Ltda e a T�v S�d SFDK Laborat�rio de An�lise de Produtos Eirele, numa a��o ainda incomum, com base na Lei Anticorrup��o – uma lei de natureza c�vel, que imputa ato de corrup��o �s empresas.
“A atua��o dela corrompeu o modelo de fiscaliza��o e investiga��o, dificultou aos �rg�os p�blicos saber a real situa��o para adotar medidas imediatas. Dissimulou a criticidade das estruturas, que era de conhecimento interno”, afirma o promotor de Justi�a de Brumadinho, William Garcia Pinto Coelho, integrante da for�a-tarefa.
Dois �rg�os pelo menos foram abastecidos com informa��es duvidosas. Em setembro do ano passado, a Vale entregou � Funda��o Estadual do Meio Ambiente (Feam) a declara��o de estabilidade assinada pela T�v S�d, empresa de renome internacional. Com isso, tirou do radar a necessidade de fiscaliza��o, pois, tendo a seguran�a atestada, o poder p�blico passou a se preocupar com as estruturas sem declara��o ou com aquelas n�o est�veis.
Risco debatido um ano antes do desastre
Em outubro de 2018, a equipe t�cnica do Minist�rio P�blico solicitou documentos complementares em rela��o � Barragem 1 da Mina C�rrego do Feij�o. Em 6 de novembro, a Vale apresentou n�o s� a mesma declara��o que havia sido enviada � Feam, como tamb�m um pedido de arquivamento do processo. Os ge�logos do MPMG recusaram. “Poderia ter sido diferente se n�o fosse sonegada ou dissimulada a informa��o. Ainda que n�o houvesse tempo h�bil para refor�ar a estrutura, ao menos as pessoas poderiam ter sido retiradas do local de risco”, ressalta o promotor de Brumadinho.
As investiga��es indicam que a situa��o cr�tica de seguran�a e estabilidade da barragem era conhecida e debatida por consultores t�cnicos, representantes da mineradora e, especialmente, por representantes da T�v S�d, mais de um ano antes do rompimento. “Apesar da exist�ncia e ci�ncia de elementos t�cnicos que apontavam anomalias e fator de seguran�a para liquefa��o alarmante da Barragem 1, os respons�veis pelo empreendimento optaram por manter as opera��es ativas, n�o realizaram medidas suficientes para estabiliza��o das estruturas e n�o adotaram provid�ncias para evitar mortes no caso de rompimento”, afirma a a��o proposta pelo MP contra a consultoria.
VALOR De fevereiro de 2017 a setembro de 2018, cinco contratos foram assinados entre a consultoria e a mineradora, segundo as apura��es. Os trabalhos inclu�am a aplica��o na gest�o de risco para estruturas de 13 barragens e diques, revis�o peri�dica de seguran�a e classifica��o de barragens, estudos de condi��o de liquefa��o da Barragem 1, implanta��o do sistema de monitoramento remoto com transmiss�o de dados via r�dio para barragens, alternativas e projeto conceitual da alternativa escolhida para fechamento da Barragem 1. O valor chegou a R$ 19.197.041,70.
Sobre as investiga��es da PF, a Vale informou, em nota, que vai avaliar o relat�rio policial detalhadamente “antes de qualquer manifesta��o de m�rito, ressaltando apenas que a empresa e seus executivos continuar�o contribuindo com as autoridades e responder�o �s acusa��es no momento e ambiente oportunos”. A T�v S�d n�o se manifestou. A defesa do engenheiro Makoto Namba e de outros funcion�rios da consultoria afirma que o relat�rio da PF “falha ao interpretar conceitos b�sicos sobre a engenharia de barragens e chega, portanto, a uma conclus�o equivocada”, o que pretende demonstrar caso seja oferecida den�ncia.
Territ�rio de buscas em Brumadinho: depois de quase oito meses de trabalhos, bombeiros ainda est�o � procura de 21 pessoas que desapareceram ap�s rompimento (foto: Ed�sio Ferreira/EM/D.A Press - 27/4/19)
�ndice 'adaptado' por conveni�ncia
E-mails com as iniciais de oito funcion�rios da T�v S�d mostram, segundo as investiga��es da for�a-tarefa encarregada de apurar a trag�dia de Brumadinho, a din�mica para alcan�ar a declara��o de estabilidade da Barragem 1 da Mina C�rrego do Feij�o. Como tentativas de aumentar o fator de seguran�a da represa de rejeitos n�o surtiram efeito desejado, a solu��o encontrada pela consultoria para dissimular o fator cr�tico de seguran�a foi simplesmente desconsiderar o valor m�nimo de 1,3 e passar a considerar, de forma in�dita e contr�ria � pr�pria recomenda��o da Vale, o valor m�nimo de 1,05, apontam as investiga��es.
“Ainda no m�s de maio, uma sequ�ncia de e-mails circulada entre representantes da T�v S�d com o assunto 'Declara��o de Estabilidade – Barragem 1 – C�rrego do Feij�o' � reveladora e compromete profundamente a credibilidade da declara��o da empresa. Evidenciam (as mensagens) que a T�v S�d tinha o conhecimento da impossibilidade t�cnica de declarar a seguran�a da barragem e, mesmo assim, foi tomada a decis�o empresarial ('corporativa') de emitir a declara��o”, afirma a for�a-tarefa. “Ao que tudo indica, a il�cita certifica��o tinha como objetivo o estreitamento das rela��es comerciais com a Vale, de forma a garantir melhor posicionamento no mercado e ampliar o crescente portf�lio contratual com a poderosa mineradora”, acrescenta.
Respons�veis pelo caso n�o t�m d�vida de que a possibilidade de rompimento por liquefa��o era admitida pela T�v S�d e que argumentos t�cnicos nas revis�es e auditorias serviram apenas para dar apar�ncia de regularidade para a Barragem 1. Em e-mail para o diretor e consultor Ars�nio Negro J�nior, o engenheiro da consultoria Makoto Namba diz que “a rigor, n�o podemos assinar a Declara��o da Condi��o de Estabilidade da barragem, que tem como consequ�ncia a paralisa��o imediata de todas as atividades da Mina C�rrego do Feij�o”. “Mas, como sempre, a Vale ir� jogar contra a parede e perguntar: e se n�o passar, ir�o assinar ou n�o? Para isso, teremos que ter a resposta da Corpora��o, com base nas nossas posi��es t�cnicas. N�o para amanh�, mas precisamos discutir internamente, com urg�ncia”, concluiu Makoto.
NA ALEMANHA Os e-mails que circularam entre funcion�rios da T�v S�d n�o se restringiram ao Brasil. Logo depois da trag�dia em Brumadinho, os executivos da consultoria para assuntos das Am�ricas, John Tesoro e Fabian Schober, e o diretor de Desenvolvimento e Neg�cios na Alemanha, Chris-Peter Mayer – um dos indiciados pela PF – foram alertados pelo ent�o presidente da empresa no Brasil, Marcelo Pacheco. Ele explicava que a Barragem 1 tinha se rompido e que havia outras tr�s menores – B6, B4 e B4A – com riscos mais baixos.
Em seguida, Marcelo Pacheco escreve a Makoto Namba e Vin�cius Wedekin: “Recomendo que voc�s comecem a ler os relat�rios e buscar poss�veis diverg�ncias que podem ser apontadas durante as investiga��es”. Em resposta, ele � informado de que a T�v S�d emitiu as declara��es de estabilidade tamb�m para as tr�s estruturas menores, com obriga��o de revis�o peri�dica. Ao que � acrescido, por Makoto Namba: “Mas n�o se preocupe. Todas essas tr�s barragens foram afetadas pelo rompimento da Barragem 1”.
Para os promotores, os e-mails refor�am o aprofundamento da ades�o da empresa T�v S�d, em diversos n�veis hier�rquicos, � maquiagem de dados t�cnicos; a postura da mineradora de pressionar contratadas; e refor�am a motiva��o mercadol�gica e financeira “para aderir ao conluio il�cito que culminou na atividade que dificultou as atividades de investiga��o e fiscaliza��o dos �rg�os do estado de Minas Gerais”. O MP conseguiu judicialmente a interrup��o das atividades da consultoria na �rea de barragens no pa�s e tenta aplicar � empresa multa de R$ 60 milh�es.
A T�v S�d informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que n�o tem comentado as apura��es e que est� conduzindo uma “aprofundada investiga��o interna sobre o caso”. Tamb�m procurada, a Vale manteve a posi��o quanto a contribuir com as autoridades e responder �s acusa��es em momento e ambiente oportunos.