
A rela��o de Belo Horizonte com o seu patrim�nio h�drico continua com os olhos voltados ao s�culo 19. � o que acredita o ge�grafo e professor Alessandro Borsagli. “No que diz respeito � quest�o h�drica, a cidade ficou presa nos modelos higienistas, em que a �gua tem de passar com maior velocidade, escoar pela cidade mais rapidamente, em avenidas sanit�rias. A Europa j� abandonou este modelo e trabalha hoje pela reabilita��o, quando n�o renaturaliza��o, dos rios, como � o caso da Alemanha”, afirma Borsagli, autor da tese de mestrado Do conv�vio � ruptura: a cartografia na an�lise hist�rico-fluvial de Belo Horizonte (1894-1977) e de obras como Rios invis�veis da metr�pole mineira e Horizontes fluviais, este �ltimo em parceria com Rodrigo Guedes Braz Ferreira. Em entrevista ao Estado de Minas, o ge�grafo alerta para a necessidade do tratamento total do esgoto e faz um alerta: “A cidade j� est� sufocada e os cursos d´ï¿½gua clamam por reabilita��o.”
Qual � o diagn�stico para a situa��o dos rios, ribeir�es e c�rregos de Belo Horizonte?
Temos sob os p�s em BH uma imensa caixa d'�gua. Segundo a Sudecap, s�o cerca de 700 quil�metros de cursos d'�gua, dos quais 200 quil�metros foram canalizados. Mas, se quer ser moderna, � hora de reabilitar os rios: descanalizar o curso d'�gua, devolver as suas v�rzeas, nelas criando parques ciliares. Esse � um conceito j� adotado pelas cidades mais desenvolvidas do mundo. Na d�cada de 60 para 70, a Europa come�ou a trabalhar a reabilita��o de seus rios. E Belo Horizonte, que nasce inspirada no modelo importado da Europa, mant�m a sua vis�o do s�culo 19. A cidade est� em obras de canaliza��o h� quase 100 anos, ininterruptos. Tem uma press�o, lobby empresarial para a manuten��o dessa pol�tica. Mudar o conceito e a forma de interagir com as �guas � fundamental. Com a recupera��o das v�rzeas e parques ciliares, a ideia � que durante o per�odo de estiagem esses espa�os sejam apropriados pela popula��o. E durante as chuvas, as v�rzeas sejam ocupadas pelos rios. Mas para isso, � preciso o tratamento total do esgoto. Sem tratamento do esgoto, os transbordamentos levar�o sujeira e doen�as �s v�rzeas.
Na pr�tica, como proceder para esta reabilita��o?
Na pr�tica, como proceder para esta reabilita��o?
A realidade � essa: tem de ser reabilita��o – n�o a renaturaliza��o, pois esta � invi�vel economicamente, j� que suporia voltar cursos para leitos naturais, derrubando vales inteiros sob a Prudente de Morais, em Lourdes, para ficar nesses. Primeiramente, proibir todo e qualquer tipo de canaliza��o, proibir qualquer nova interven��o na rede hidrogr�fica. A cidade j� est� sufocada e os cursos d'�gua clamam por reabilita��o. � preciso fazer planejamento que abranja as bacias hidrogr�ficas, nas cabeceiras, que podem abrigar �reas com maior permeabilidade que v�o contribuir para diminui��o do escoamento superficial da �gua e tamb�m para a penetra��o da �gua no solo. N�o adianta resolver o problema pontualmente, por exemplo do C�rrego do Leit�o, onde ele transborda. Isso tudo tem de ser conectado com a reabilita��o do fundo de vale, onde passa o curso d'�gua e criar parques ciliares em �reas de v�rzea.
Por onde come�ar a reabilita��o?
Por reabilita��o entende-se retirar a cobertura do rio e devolvendo para ele as suas v�rzeas. Mas, para isso, precisa o tratamento total do esgoto. Lidar com a reabilita��o dos rios, significa, tamb�m e principalmente o tratamento de esgotos, o que permitir� que transbordem nas v�rzeas sem riscos � sa�de p�blica. O Arrudas e o On�a, que s�o as duas drenagens principais de Belo Horizonte, t�m potencial de parques ciliares maravilhosos. O que tem de ser feito a partir de ambos � disseminar a trama verde e a trama azul (parques ciliares s�o ligados �s �guas). Defendo, portanto, que se comece por ambos, n�o s� por serem as principais drenagens de Belo Horizonte, mas pela disponibilidade de �reas laterais. O Ribeir�o do On�a � o mais f�cil. Entre a barragem da Pampulha e a Cristiano Machado eles est� no leito natural. O potencial de parque ciliar � imenso e se conectaria com o Baixo On�a, para o qual inclusive j� h� projeto para parque ciliar. Tamb�m o Arrudas tem �rea para a reabilita��o. Nesse caso, seria preciso o estreitamento das vias naturais, descanalizar o curso d' �gua e devolver as suas v�rzeas.

"Tem de ser reabilita��o - n�o a renaturaliza��o, que � invi�vel economicamente: suporia voltar cursos para leitos naturais, derrubando vales inteiros sob a Prudente de Morais e em Lourdes"
Alessandro Borsagli, autor de livros como Horizontes fluviais, ge�grafo defende a proibi��o de novas canaliza��es em Belo Horizonte e aconselha: "Se a cidade quer ser moderna, � hora de reabilitar os rios'
Pensando no problema de Belo Horizonte hoje, seria suficiente a reabilita��o do On�a e do Arrudas?
O problema de transbordamento frequente n�o se resume �s bacias do Arrudas e do On�a. O problema est� presente em todas as bacias, em decorr�ncia das canaliza��es e a excessiva impermeabiliza��o do solo. A reabilita��o deve come�ar pelos dois principais cursos d'�gua e depois se estender para os seus afluentes. S�o cerca de 250 c�rregos e ribeir�es em Belo Horizonte, entre os quais os principais s�o o Arrudas e o On�a, ambos afluentes da margem oeste do Rio das Velhas, este por seu turno, afluente do S�o Francisco. A cidade � privilegiada em termos de cursos d'�gua. Tanto que uma das principais motiva��es para a escolha da localidade para a transfer�ncia da antiga capital (Ouro Preto) foi a abund�ncia h�drica do Arraial do Curral del-Rei. Mas n�s enquanto sociedade nos distanciamos desses elementos ao longo da evolu��o urbana e nos esquecemos da import�ncia da quest�o h�drica para um equil�brio ecossist�mico da capital.
Ao olhar para a constru��o e evolu��o de Belo Horizonte, qual concep��o prevaleceu no tratamento dos rios?
At� mesmo pelas motiva��es hist�ricas para a sua funda��o, de ruptura com o passado colonial, Belo Horizonte j� nasceu obcecada pela modernidade, obcecada em ser vanguarda. Por um lado a cidade, em sua hist�ria, foi marco e vanguarda em v�rias �reas do modernismo – e nesse sentido o reconhecimento da Pampulha como Patrim�nio Cultural da Humanidade foi uma conquista para a sua identidade. Por outro lado, no que diz respeito � quest�o h�drica, a cidade ficou parada no s�culo 19, aos modelos higienistas, em que a �gua tem de passar com maior velocidade, escoar pela cidade mais rapidamente. BH, em sua funda��o, foi vendida como exemplo de modernidade para o pa�s, e, em nome da modernidade, enterrou os rios, dentro de uma vis�o de �poca diferente daquela que temos hoje. Come�aram com a ideia de canalizar os rios, pois alegavam que endemias que ocorriam nas cidades industriais eram causadas pelo esgoto nos cursos d’�gua e canalizando, as �guas passariam com maior velocidade pela cidade. S� que n�o resolveu, pois descobriram que teriam tamb�m de tratar esgotos e retir�-los do meio urbano. E em Belo Horizonte, embora a quest�o da constru��o de emiss�rios e do tratamento de esgotos tenham sido debatidos sempre, a primeira Esta��o de Tratamentos de Esgoto (ETE) do Arrudas s� foi feita em 2002. Ou seja, foram mais de 100 anos sem ter uma esta��o de tratamento na capital. As canaliza��es se iniciaram em 1923 sem parar at� hoje, uma t�cnica que � muito lucrativa para alguns setores, dentro de uma pol�tica que manteve as mesmas concep��es em resposta a uma press�o, um lobby empresarial, interessado nela.
Al�m do lobby de empreiteiras pela manuten��o da pol�tica das canaliza��es, o que explica a falta de apoio popular para a mudan�a desse relacionamento com a rede h�drica da cidade?
Desde a funda��o da capital, tivemos um pacto pol�tico e social n�o explicitado para a canaliza��o e fechamento dos rios, com apoio das m�dias, das elites intelectuais, empresariais, da popula��o mais participativa e dos governos. Quando pesquisei para a obra Rios Invis�veis, a maioria das pessoas pedia em cartas ao jornal Estado de Minas e Di�rio da Tarde para que fossem fechados. Culturalmente, o Brasil nunca valorizou a sua rede h�drica. Quando no s�culo 17 Portugal retomou Olinda dos holandeses, destruiu a marretadas toda a rede de esgoto feita pelos holandeses. N�s sempre enxergamos as �guas como elemento que carrega impurezas, detritos do meio urbano. Por isso nas cidades coloniais as casas s�o constru�das no fundo de vale, para que as �guas carreguem a sujeira. As costas de Ouro Preto d�o para o fundo de vale. E Belo Horizonte, apesar de toda a busca da modernidade, trouxe como sociedade essa raiz cultural. Tanto que desde as primeiras d�cadas havia preocupa��o dos governos e da popula��o de embelezar Belo Horizonte, com �rvores e parques, as propagandas muito difundidas a apontavam como cidade verde. O verde se tornou patrim�nio coletivo, ainda que a arboriza��o fosse controlada pela geometria das vias. Mas com as �guas a rela��o foi muito diferente. A cidade entrou em rota de colis�o com os seus cursos d’�gua, porque passaram a ser vistos como entrave no desenvolvimento regular da cidade. Atrapalhavam a evolu��o do tecido urbano, a comunica��o vi�ria, e nos per�odos chuvosos havia transbordamentos que levavam sujeira para as ruas, j� que, com o despejo in natura dos esgotos, a popula��o come�ou a sofrer com problemas decorrentes do contato com �guas polu�das. Tudo isso foi fator para marginaliza��o das �guas. Tanto que a popula��o sempre protestou contra o corte das �rvores, mas ao mesmo tempo aplaudia a cobertura dos cursos d’�gua. Inclusive pediam.
Qual foi o momento na hist�ria de Belo Horizonte em que essa pol�tica de canaliza��o de rios e constru��o de avenidas sanit�rias se afirmou de modo definitivo?
A comiss�o de constru��o da capital, em 1894, optou pelo projeto que continha um tra�ado geom�trico, recusando a proposta do engenheiro Saturnino de Brito, que baseava o tra�ado no sistema natural de escoamento das �guas. Importava conceitualmente as ideias higienistas da Fran�a e da Europa, o racionalismo t�cnico, o positivismo. Tinha pleno conhecimento da rede hidrogr�fica do s�tio delimitado para receber a nova capital, com per�metro delimitado entre a Serra do Curral e a Serra da Contagem, onde est� o IAPI. Mas quando voc� pega a planta da malha geom�trica da nova capital, voc� pode observar que s� o Arrudas est� inserido como elemento de refer�ncia da paisagem, o que j� configura ruptura, porque significa que, na pr�tica, n�o foram considerados como elementos de refer�ncia na paisagem os demais cursos d’�gua. E s� dentro da Contorno havia tr�s cursos d´ï¿½gua principais – o C�rrego da Serra, do Leit�o e do Acaba Mundo – que, com seus afluentes, somam ao todo 14 cursos d'�gua dentro do per�metro da nova capital. Havia pressa em concluir as obras da nova capital, recursos limitados, levando a n�o ser feita a esta��o de esgoto que estava prevista. A comiss�o construtora lavou as m�os em rela��o � esta��o de tratamento de esgoto e em rela��o ao que fazer com os outros cursos d'�gua, legando a quest�o para as administra��es futuras. No in�cio, houve pequena preocupa��o com o esgoto. T�cnicos emitiram alertas preocupados com a situa��o sanit�ria do Arrudas. Mas foi sendo esquecido. O munic�pio concluiu no in�cio da d�cada de 30 o emiss�rio de esgotos do Arrudas, esgotos eram conduzidos para ele, e este deveria levar at� a esta��o de tratamento que nunca existiu. Os esgotos eram despejados diretamente no rio. A primeira esta��o de tratamento s� chegou em 2002. Em rela��o �s canaliza��es, as administra��es posteriores decidiram como faz�-la. O C�rrego da Serra foi o primeiro canalizado em canal fechado na d�cada de 20. A Comiss�o Construtora n�o canalizou nenhum c�rrego. Fez pequenas retifica��es na Lagoinha e na Pra�a da Esta��o.