A socialite mineira tr�s anos antes do assassinato, ocorrido �s v�speras do r�veillon de 1976/77 (foto: O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas - 20/6/1973)
Uma linda mulher – corajosa, acima de tudo –, uma vida de glamour nas altas rodas, um fim tr�gico. H� muitas formas de se contar a hist�ria da mineira �ngela Maria Fernandes Diniz, mais conhecida como �ngela Diniz, morta aos 32 anos, �s v�speras do r�veillon de 1976/77, na Praia dos Ossos, em B�zios (RJ).
No gatilho que disparou os quatro tiros fatais estava o dedo do empres�rio paulista Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street, ent�o com 42. V�tima de um crime de repercuss�o nacional, tema de livros, debates, programas de televis�o e muitas reportagens, a chamada Pantera de Minas tem agora sua trajet�ria contada em uma plataforma que joga os sons do s�culo 21 sobre um enredo que traz � tona temas mais atuais que nunca: uma s�ries de podcasts com estreia no pr�ximo dia 12.
Em oito epis�dios e com pesquisa detalhada, incluindo arquivos do Estado de Minas, o podcast Praia dos Ossos � fruto do trabalho da norte-americana Flora Thomson-Deveaux, residente no Rio de Janeiro (RJ), e da carioca Branca Vianna, com produ��o da R�dio Novelo.
Para lembrar a vida de �ngela Diniz, h� depoimentos de pessoas que a conheceram bem de perto, a exemplo da jornalista Anna Marina, editora do caderno Feminino do EM, e de amigas de inf�ncia, entre elas �ngela Teixeira de Mello e a cientista pol�tica Val�ria Penna.
Mesmo que �ngela Diniz tenha ficado sob os holofotes de uma vida social intensa – e, depois da morte, tendo a intimidade exposta �s luzes da Justi�a, da imprensa e da curiosidade p�blica – ainda h� muito para se conhecer sobre ela.
Com a palavra, as duas pesquisadoras: “Falta contar a hist�ria dela: quem era, do que gostava, quem eram seus amigos, o que queria da vida. �ngela era uma mulher diferente para a �poca, muito corajosa, decidida”, analisa Branca.
Flora destaca outro aspecto: “A quest�o n�o � s� o que falta ser contado; � importante olhar para a maneira como essa hist�ria foi contada, e como isso acabou influenciando o desenrolar do caso”. Para resumir, “era uma mulher � frente do seu tempo, e do nosso tempo tamb�m”, define Branca.
MIST�RIO
Os casos de feminic�dio (assassinato da v�tima motivado pelo fato de ela ser mulher, crime s� tipificado no pa�s em 2015, portanto muitas d�cadas ap�s a trag�dia em B�zios) n�o param de crescer no Brasil.
Podemos falar que �ngela pagou o pre�o de viver numa sociedade muito machista. “Muitas outras mulheres foram e s�o assassinadas todos os dias, sem terem feito nada de errado. Elas morrem s� porque s�o mulheres”, destaca Branca.
Mais de quatro d�cadas ap�s o assassinato de �ngela Diniz, pairam sombras de mist�rio sobre o caso. Um dos enigmas se refere � jovem alem� Gabriele, que se encontrou com o casal na Praia dos Ossos e depois desapareceu sem deixar vest�gios. A resposta sobre a investiga��o das pesquisadoras sobre essa personagem est� nos podcasts. Mas, por enquanto, n�o tem spoiler.
QUEM FOI
�ngela Diniz nasceu em 10 de novembro de 1944 em Curvelo, na Regi�o Central de Minas. �ntima das colunas sociais desde crian�a, casou-se aos 18 anos com Milton Villas Boas, construtor e filho de um ministro do Supremo Tribunal Federal.
Na ocasi�o, os jornais mineiros chamaram o evento, realizado em janeiro, de “o enlace mais focalizado de 1963”. O casal teve tr�s filhos e se desquitou depois de nove anos – o div�rcio s� foi institu�do no Brasil em 1977.
Segundo as pesquisadoras, “�ngela come�ou a construir a biografia de mulher independente que faria a alegria das colunas sociais – e contribuiria para endossar a imagem nada invej�vel da ‘desquitada’, ent�o sin�nimo de ‘mulher f�cil’“.
J� morando no Rio, �ngela Diniz ganhou do maior colunista social da �poca, Ibrahim Sued, o apelido de Pantera de Minas. Por alguns meses, os dois formaram um conhecido, e conturbado, casal na noite carioca.
�ngela j� estivera envolvida num homic�dio (chegou a confessar o crime que n�o cometeu para proteger um amante). A esse processo somaram-se dois outros, por suposto sequestro da pr�pria filha e por uso de entorpecentes (a pol�cia, numa batida, encontrara maconha em seu apartamento).
Em 1976, o caminho da mineira cruzou com o de Raul Fernando do Amaral Street, mais conhecido como Doca, 10 anos mais velho. A paix�o foi fulminante: �ngela se separou de Sued, enquanto Doca, marido da socialite paulista Adelita Scarpa, fez as malas.
Depois de poucos meses morando juntos no Rio, resolveram levar as coisas um passo adiante. Decidiram trocar o jet set por uma casa em B�zios – naquela �poca pouco mais que uma vila de pescadores – e viver longe dos holofotes e das colunas sociais que tinham regido suas vidas at� ent�o.
Mas a nova vida em B�zios n�o durou mais que poucos dias. Em 30 de dezembro de 1976, �ngela e Doca brigaram, e ele a matou com quatro tiros de uma arma da marca Beretta. Doca fugiu. Enquanto �ngela era velada e enterrada em Belo Horizonte, come�ava um circo midi�tico que duraria anos. E que culminaria com o assassino sendo ovacionado na porta do tribunal.
O empres�rio paulista que cometeu o crime a tiros: defesa alegou 'leg�tima defesa da honra' (foto: Arquivo Estado de Minas)
SAIBA MAIS
Crime e castigo Doca Street foi a julgamento em outubro de 1979, e condenado por excesso culposo de leg�tima defesa – isso supondo que �ngela teria agredido a honra masculina dele e que as quatro balas que a mataram seriam uma esp�cie de leg�tima defesa. Doca recebeu uma pena de 18 meses pelo crime e seis meses por ter fugido, pena suspensa porque ele j� havia cumprido sete meses na pris�o antes do julgamento. O resultado acabou sendo anulado como sendo manifestamente contr�rio � prova dos autos. Ele foi levado a julgamento novamente em novembro de 1981 e condenado a uma pena de 15 anos. Depois de cumprir cinco anos entre regime fechado e semiaberto no Rio de Janeiro, Doca Street voltou para S�o Paulo, onde ainda vive.
ENTREVISTA
Flora Thomson-Deveaux e Branca Vianna, autoras da s�rie de podcasts Praia dos Ossos
“Ela estaria � frente do nosso tempo”
O que falta saber sobre a hist�ria de �ngela Diniz, uma mulher que teve uma vida social t�o exposta e foi v�tima de um crime de repercuss�o nacional? Branca - Falta contar a hist�ria dela: quem ela era, do que gostava, quem eram seus amigos, o que ela queria da vida. �ngela era uma mulher diferente para a �poca, muito corajosa, decidida. Foi uma boa surpresa descobrir sua personalidade ao longo desses dois anos. E foi isso que tentamos retratar ao longo dos oito epis�dios da Praia dos Ossos. Flora - Al�m disso, a quest�o n�o � s� o que falta ser contado; � importante olhar para a maneira como essa hist�ria foi contada, e como isso acabou influenciando o desenrolar do caso.
Seria pouco dizer que era algu�m � frente do seu tempo? Branca - Seria exato dizer que ela era uma pessoa � frente do seu tempo. Acho que ela estaria � frente do nosso tempo tamb�m.
Com os olhos de 2020, o que podemos falar sobre a trajet�ria de �ngela Diniz? Branca - Podemos falar que a �ngela Diniz pagou o pre�o de viver numa sociedade muito machista. Assim como ela, muitas outras mulheres foram e s�o assassinadas todos os dias, sem terem feito nada de errado. Morrem s� porque s�o mulheres.
O crime que completa 44 anos em 30 de dezembro ocorreu numa �poca em que muitas mulheres foram assassinadas, no Brasil, pelos companheiros, maridos ou namorados. Essa viol�ncia continua acontecendo. Pelas pesquisas e depoimentos para os podcasts, � poss�vel ter pistas para tal motiva��o? Branca - Nossa sociedade patriarcal ainda n�o enfrentou a viol�ncia de g�nero. � inaceit�vel que mulheres morram por quererem se separar, por n�o quererem namorar algu�m, ou s� porque os homens acham que s�o donos delas e podem dispor das suas vidas.
A morte da chamada “Pantera de Minas” significou um grito, ainda n�o ouvido por muitos, contra o machismo? Branca - A morte dela, n�o. Foi uma trag�dia, como muitas outras, resultado do mundo machista em que ainda vivemos hoje. � uma trag�dia pessoal, naturalmente, mas tamb�m uma trag�dia social, sist�mica, estrutural. O problema da viol�ncia contra as mulheres n�o ser� resolvido caso a caso. Flora - A rea��o � morte dela, na �poca, foi bastante peculiar. � algo que exploramos no primeiro epis�dio de Praia dos Ossos, que estreia em 12 de setembro.
Voc�s imaginam como seria o julgamento de Doca Street hoje, quando caiu por terra a tese de “leg�tima defesa da honra”? Branca - Dificilmente o advogado dele conseguiria empregar a mesma defesa hoje em dia. Os casos de feminic�dio continuam a crescer, mas hoje t�m tipifica��o no c�digo penal e ningu�m mais alega ter matado por amor, ou ao menos n�o se aceita mais essa alega��o.
A hist�ria ainda guarda mist�rios, como o desaparecimento, sem pistas, da jovem alem� Gabriele. Voc�s abordam esse aspecto? Branca - Abordamos, e resolvemos o mist�rio. Mas n�o podemos dar spoiler. Flora - Sem dar spoiler, queria meter a minha colher de pesquisadora nessa: quase sempre erraram a ortografia do nome dela na imprensa brasileira, a ponto de canonizar o erro. Era Gabriele Dyer, n�o Gabrielle Dayer.
Como foram as pesquisas para este trabalho? A fam�lia dela colaborou? Flora - A pesquisa foi demorada e imprevis�vel. Fizemos dezenas de entrevistas presenciais com pessoas relacionadas ao caso no Rio, Belo Horizonte, S�o Paulo – mas antes disso, mergulhei durante meses na cobertura do caso, nos autos, e nos livros que foram escritos a respeito. Na nossa passagem por Minas, passei v�rios dias praticamente acampando entre a Biblioteca Estadual e o acervo do Estado de Minas. Procuramos a fam�lia dela, mas a maior parte da apura��o se debru�ou na m�dia, propriamente dita: n�o s� a hist�ria da �ngela, mas como ela foi contada.
Se estivesse viva, �ngela Diniz teria 76 anos. Nesses tempos de tanta exposi��o em redes sociais, voc�s acreditam que ela estaria mais reclusa ou tenderia a ser adepta dessa frenesi virtual? Branca - Dif�cil dizer. Ela nunca foi reclusa. As pessoas mudam com a idade, mas eu imagino a �ngela ainda saindo, se divertindo, com muitos amigos e sempre pr�xima da fam�lia, especialmente dos filhos. Ela era muito ligada a eles.