
Com previs�o de queda nas notas, caber� �s cotas, mais do que nunca, o papel regulador, de possibilitar acesso �s universidades do maior p�blico do Enem: os alunos da escola gratuita. “O Enem j� era jogo de cartas marcadas. Se n�o tivesse cotas, seria um desastre completo, pois privilegiaria o estudante que tem maior n�vel socioecon�mico e condi��o de pagar uma escola particular”, afirma o professor em�rito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Jos� Francisco Soares, integrante do Conselho Nacional de Educa��o (CNE).
S�o quase 5,8 milh�es de inscri��es confirmadas para a edi��o 2020 da maior avalia��o do pa�s. Em Minas Gerais, 577.227 estudantes s�o esperados nos locais de prova. Soares, p�s-doutor em educa��o, chama a aten��o para outra desigualdade que est� crescendo em um nicho em que ela n�o era t�o grande: a diferen�a entre os pr�prios alunos do sistema p�blico. “Do ponto de vista do direito, temos uma nova exclus�o. Este ano (no Enem), haver� dois alunos da escola p�blica”, afirma.
O racioc�nio considera a diferen�a entre estudantes da rede gratuita que frequentam escolas que lidaram um pouco melhor com a situa��o, ao lado dos que est�o no cursinho e, com isso, conseguiram um jeito de ter acesso ao aprendizado, em contraposi��o �queles que n�o tiveram essas oportunidades. A outra disparidade, essa velha conhecida, tende a se acentuar: “Os estudantes da rede p�blica n�o est�o tendo o mesmo acesso que os da particular. E a diferen�a entre essas duas redes vai aumentar muito”, prev� o educador.
O fato de a prova do Enem ser elaborada com um ano de anteced�ncia impede mudan�as de �ltima hora. E, mesmo que fossem poss�veis, seriam ainda mais desastrosas, avalia a diretora geral do Coleguium Rede de Ensino, Daniele Passagli. “N�o acreditamos na possibilidade de um Enem mais simplificado em decorr�ncia dessa discrep�ncia (entre ensino pago e gratuito), uma vez que uma decis�o que poderia favorecer o ensino p�blico n�o foi efetivada”, diz. “Ao seguir com uma avalia��o nacional em janeiro, retirou-se a possibilidade de tentar equilibrar o que foi oferecido para os alunos. Havia a possibilidade de a prova ser aplicada em maio, o que daria a probabilidade aos alunos do ensino p�blico de tentarem algum resgate de conte�do no pr�ximo ano. Nesse sentido, uma prova mais simples poder� acarretar notas de corte mais altas e n�o est� em linha com o que fora apresentado at� o momento (a estrutura do Enem).”
''O Enem j� era jogo de cartas marcadas. Se n�o tivesse cotas, seria um desastre completo, pois privilegiaria o estudante que tem maior n�vel socioecon�mico e condi��o de pagar uma escola particular''
Jos� Francisco Soares, professor em�rito da UFMG e integrante do Conselho Nacional de Educa��o
� o que pensa tamb�m o diretor de Ensino do Grupo Bernoulli, Rommel Domingos. “� um exame para 7 milh�es de estudantes. Quando esse formato foi elaborado, em 2009, pensaram numa calibragem. A prova � uma r�gua capaz de avaliar uma escola que est� no interior do Amazonas, mas tamb�m as melhores das capitais do Sudeste”, diz. Segundo ele, o n�vel de dificuldade das quest�es � a base dessa r�gua. “Numa prova de matem�tica com 45 quest�es, por exemplo, h� sempre umas 20 f�ceis e 20 medianas. Apenas cinco s�o dif�ceis realmente. O desempenho e as m�dias v�o cair no geral, mas a escala de dificuldade n�o muda, para n�o perder essa capacidade de medir (p�blicos diferentes).”
Domingos acredita numa mudan�a das notas de corte para entrada nas federais, mas n�o para os cursos mais concorridos, que exigem nota m�nima acima de 750 numa institui��o como a Universidade Federal de Minas Gerais. “Nesses, a tend�ncia da nota de corte � se manter, porque os candidatos s�o alunos que estudam de qualquer jeito. Muitos deles est�o preferindo, inclusive, o ensino remoto, pois n�o t�m o desgaste com deslocamento e o tempo”, conta.
Para o diretor do Bernoulli, al�m da diferen�a de redes de ensino, a pandemia acentuou ainda caracter�sticas dos estudantes. “Na quest�o tecnol�gica, � normal que quem tem acesso amplo tem preju�zo menor, mas o problema recai tamb�m sobre alunos mais motivados ou menos, independentemente se estudam na rede p�blica ou privada. � algo que ocorre tamb�m dentro da sala de aula. A pandemia afeta mais os menos motivados, pois os outros, que querem correr atr�s, conseguem manter ritmo. Parte dos alunos que dependiam do incentivo do professor se tornou �rf�, uma vez que a pandemia imp�e o isolamento social. De todo modo, essa diferen�a social no Brasil � lament�vel e � uma caracter�stica que tende a ser aumentada.”

DIST�NCIA
Daniele Passagli, do Coleguium, aposta que essa dist�ncia ainda ser� enorme por muitos anos, uma vez que a rede particular se movimentou a partir de recursos que s�o menos acess�veis para a rede p�blica. “Os alunos da rede privada quase em sua totalidade t�m acesso a internet, computador, smartphone e ambiente mais favor�vel em casa. Al�m disso, percebe-se em algumas �reas um descaso com a educa��o p�blica”, diz.“Caminhamos para um aumento da desigualdade social e um retrocesso em algumas pequenas conquistas que o ensino p�blico tinha alcan�ado”, ressalta. Um retrocesso que, mais uma vez, ser� evidenciado no Enem, avalia Daniele. “As m�dias da nota do exame est�o relacionadas com o n�vel das quest�es selecionadas para o instrumento. Mas entendemos que a defasagem de conte�dos para o ensino p�blico poder� interferir diretamente nesse resultado.”
Por isso as cotas ser�o importantes para minimizar esse abismo, aponta Jos� Francisco Soares. “O aluno do setor p�blico gasta mais tempo para entrar na universidade. Termina o 3º ano e vai fazer cursinho. E outra quest�o que dever� ser avaliada para n�o prejudicar ainda mais esses meninos � uma forma de eles serem aprovados (no ensino m�dio)”, diz.
O professor da UFMG ressalta que s�o desigualdades que o sistema de cotas suaviza, mas n�o faz com que desapare�am. “H� um n�mero grande de estudantes que est�o sendo prejudicados e n�o sabemos quem s�o. A educa��o tem que aprender a trazer a pauta das desigualdades para o centro do debate. �ndices de avalia��o mostram que na m�dia estamos bem, mas n�o podemos nos contentar com a m�dia, porque o nosso ruim � muito ruim.”
''A pandemia afeta mais os estudantes menos motivados, pois os que querem correr atr�s conseguem manter ritmo. Parte dos que dependiam do incentivo do professor se tornou �rf� com o isolamento social''
Rommel Domingos, diretor de Ensino do Grupo Bernoulli
Preju�zo marcado no
boletim do ensino b�sico
Os reflexos das diferen�as acentuadas pela pandemia s�o esperados tamb�m nos resultados do pr�ximo �ndice de Desenvolvimento da Educa��o B�sica (Ideb), com um baque ainda maior nas performances de escrita, leitura e matem�tica. Para o professor da UFMG e integrante do Conselho Nacional de Educa��o Jos� Francisco Soares, � preciso maximizar o n�vel: aumentar a capacidade de leitura do aluno que l� muito mal e n�o se contentar com as m�dias. “O nosso mal � muito baixo. Ano que vem, ser� necess�rio pegar os estudantes de onde pararam e dar a todos, primeiro, leitura e matem�tica, e inchar essas duas dimens�es. Essa desigualdade tem que estar colocada de forma l�mpida para todos.”
O Movimento Todos pela Educa��o tamb�m acredita numa lacuna maior ainda na aprendizagem � for�a dessas disparidades entre ensino p�blico e privado. “O ensino remoto n�o substitui o presencial – aulas a dist�ncia vieram para ficar e a mudan�a era necess�ria, mas s� isso n�o d� conta. O papel do professor nunca foi t�o importante”, alerta a coordenadora de projetos do movimento Todos pela Educa��o, Thaiane Pereira.
O Ideb � uma iniciativa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais An�sio Teixeira (Inep), vinculado ao Minist�rio da Educa��o (MEC), para medir o desempenho do sistema educacional brasileiro a partir da combina��o entre a profici�ncia obtida pelos estudantes no Sistema de Avalia��o da Educa��o B�sica (Saeb) e a taxa de aprova��o, indicador que tem influ�ncia na progress�o dos estudantes entre etapas/anos na educa��o b�sica. Ele tem uma escala que vai de 0 a 10 e � feito a cada dois anos. Em cada edi��o, um objetivo � estabelecido.
Os �ltimos resultados, divulgados em 2018 referentes a 2017, mostram que, em Minas, o Ideb do ensino m�dio cresceu 0,2 ponto, saindo de 3,7 em 2015 para 3,9 em 2017 – mas a meta era 4,7. Nos anos iniciais do n�vel fundamental, as metas foram alcan�adas, mas o mesmo n�o ocorreu nos anos finais. No estado, ela ainda caiu 0,1 ponto, recuando de 4,8 em 2015 para 4,7, em 2017.
PALAVRA DE ESPECIALISTA
Thaiane Pereira
coordenadora de projetos do movimento Todos pela Educa��o
Desafios de tamanho e complexidade diferentes
“As redes privadas de ensino ficaram muito comprometidas no per�odo inicial da pandemia, mas responderam mais r�pido. � preciso considerar que a quest�o da escala no sistema particular � muito menor, al�m da diferen�a nos recursos dispon�veis. As desigualdades se acentuaram tanto no primeiro momento quanto agora, em que n�o h� previs�o de volta �s aulas presenciais. Para as p�blicas, o desafio tamb�m � maior. Quando se segmenta por n�vel socioecon�mico, alunos com repert�rio menor e com pior condi��o socioecon�mica tendem a ter piores resultados. Vira uma bola de neve. Est� havendo algum esfor�o em n�vel nacional para responder a essas dificuldades. Em Minas, a ideia (de ensino proposta pelo estado) foi muito boa, mas n�o � suficiente. Haver� um legado, mas as desigualdades ficar�o mais evidentes e v�o aumentar. Isso n�o pode ser negligenciado de forma alguma.”