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Estado de Minas S�RIE ESPECIAL

Eu sou favela: conhe�a Kika, l�der comunit�ria no Aglomerado da Serra

S�rie especial multim�dia tra�a perfil de l�deres comunit�rios de BH e destaca o desafio da luta constante contra a desigualdade e preconceito


02/09/2021 06:00 - atualizado 02/09/2021 06:57
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(foto: Arte de Hudson Franco sobre foto de Ramon Lisboa/EM/D.A Press)

Fa�a chuva ou sol, o dia mal despertou e as demandas j� come�am a aparecer. Nas esquinas, becos ou vielas, pedidos de socorro, de orienta��o ou mesmo uma singela troca de ideias se tornam comuns na dif�cil tarefa de ajudar a cuidar de uma grande fam�lia de 120 mil pessoas. Fragmentadas em oito vilas, com origens e costumes parecidos, mas com pontos de vista diferentes. Uma rotina que faz parte da l�der comunit�ria Cristiane Pereira, de 44 anos, a m�e de todos numa luta constante contra a desigualdade e o preconceito na Vila Santana do Cafezal, no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte.

Assim como Kika, como ela � conhecida dentro de sua comunidade, pessoas comuns, que nasceram e cresceram em favelas de BH se tornam protagonistas e se doam ao m�ximo para que todos tenham oportunidades iguais e sejam atendidos em suas necessidades. A hist�ria de Kika e de outros representantes dos interesses reais de comunidades carentes da capital mineira fazem parte da s�rie multim�dia especial de reportagem “Eu sou favela”, que o Estado de Minas inicia nesta quinta-feira (2/9). 



Segundo levantamento da Central �nica das Favelas (Cufa), mais de 550 mil pessoas vivem em 223 vilas e favelas de Belo Horizonte. Em seu �ltimo Censo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE) j� apontava, em 2010, quase 300 mil belo-horizontinos vivendo nos chamados aglomerados subnormais, com renda-m�dia mensal de R$ 600 por fam�lia.

O rendimento � 38,7 menor que a m�dia encontrada em bairros nobres da regi�o Centro-Sul, como Belvedere, S�o Bento e Comiteco, nos quais a renda m�dia das fam�lias � de 11,7 sal�rios m�nimos, como aponta um estudo mais recente, intitulado Mapa da Desigualdade 2021, feito pela ONG Nossa BH. Essa realidade pode se deteriorar mais em virtude das consequ�ncias diretas da pandemia do coronav�rus, que prejudicou, sobretudo, a faixa mais pobre da sociedade.

Cultura de transforma��o

Dentro das favelas, a��es contra a desigualdade s�o trabalhadas por meio de ajudas humanit�rias e movimentos culturais de inclus�o social, que buscam talentos e geram oportunidades no mercado de trabalho. Envolvida com atividades como essas desde a inf�ncia, Kika tem como maior desafio consolidar a mudan�a de paradigmas em rela��o �s pessoas que vivem nos aglomerados. “Somos uma grande pot�ncia na m�sica e na arte. Queremos deixar as p�ginas policiais e aparecer apenas nas culturais. Na favela, 99% das coisas s�o boas”, afirma.
O Aglomerado da Serra reúne oito vilas e abriga mais de 120 mil pessoas
O Aglomerado da Serra re�ne oito vilas e abriga mais de 120 mil pessoas (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
 
H� tr�s anos, ela e sua equipe fizeram o Circuito Serra da Quebrada, com inten��o de mapear grupos dedicados � arte e estimular novas cria��es. O esfor�o de todos tamb�m contribuiu na funda��o, em 2017, do Observat�rio do Funk, entidade respons�vel pela legaliza��o do maior baile funk em favela em Minas Gerais, com a participa��o de mais de 3 mil pessoas antes da pandemia.

A iniciativa partiu de Kika, depois de um triste epis�dio no Aglomerado da Serra. Em julho de 2017, o adolescente Gabriel Soares Mendes, de 14 anos, foi assassinado durante troca de tiros durante uma interven��o de policiais militares num baile funk na comunidade. A partir da�, foram necess�rias muitas negocia��es com a Pol�cia Militar e o poder p�blico para que o evento fosse realizado sem complica��es.
“Nosso dever como lideran�a � mostrar para outras pessoas a pot�ncia que n�s somos, o que podemos agregar. A favela � ligada � criminalidade. Todos acham que s� existe o crime. N�o � isso. A pessoa est� fora da comunidade e n�o entende o que ocorre dentro. Nosso papel � mostrar que ela n�o � o que muitos pensam. A gente consegue seguir normal, igual outras pessoas conseguem em outros lugares”, afirma Kika.

Ela est� em todas as pontas. Todo mundo a respeita. Ela resolve os problemas com dois telefonemas. Por isso, consegue tirar os alvar�s com maturidade e experi�ncia

Kadu dos Anjos, artista e gestor do Centro Cultural L� da Favelinha



A morte de Gabriel aproximou a l�der comunit�ria de outras pessoas que ajudaram a difundir os movimentos culturais. “N�s nos conhecemos logo depois da trag�dia. No mesmo dia, fizemos uma apresenta��o de funk num lugar elitista e houve muito preconceito. A gente iria mostrar nosso trabalho para a elite, mas fomos bombardeados, pisoteados”, relembra Kadu dos Anjos, artista e gestor do Centro Cultural L� da Favelinha. “Fiz um v�deo e ele viralizou. Logo, marcaram uma conversa na C�mara dos Vereadores para discutir o assunto sobre os bailes. Conheci a Kika e come�amos a trabalhar juntos”, conta.

Na Serra, a Kika passa a ideia de uma m�e que protege sua comunidade, que � o papel que as mulheres negras e faveladas do Brasil desemprenham"

Ma�ra Neiva, advogada popular e professora da UEMG


Logo ap�s a morte de Gabriel Soares, Kika come�ou a trabalhar para tornar o baile funk um evento legal perante as autoridades. “A pol�cia nunca deixava a gente tirar o alvar� para os bailes funks. A�, faz�amos na tora. Mas a Kika teve a capacidade de dialogar. Ela est� em todas as pontas. Todo mundo a respeita. Ela resolve os problemas com dois telefonemas. Por isso, ela consegue tirar os alvar�s com maturidade e experi�ncia. Mora na comunidade h� muitos anos”, relembra Kadu.

A advogada popular e professora da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), Maria Neiva Gomes, � outra pessoa que se juntou � l�der nos trabalhos di�rios em busca de superar as desigualdades. Ela se aproximou de Kika justamente por ser apreciadora do estilo funk e desenvolver pesquisas sobre o tema.

Kika distribui cestas de verduras para moradores da comunidade
Kika distribui cestas de verduras para moradores da comunidade (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)


“Eu a vi pela primeira vez numa roda de samba, no Centro. T�nhamos uma amiga em comum na UFMG. Falei que pesquisava sobre o funk e que tinha experi�ncia em advocacia popular. Come�amos numa rela��o de ativismo social, que depois se transformou em amizade”, diz Ma�ra Neiva.

Segundo ela, Kika hoje atingiu um status fundamental para o andamento das a��es na comunidade: “Ela tem a caracter�stica das mulheres negras e perif�ricas. � uma virtude que � constru�da por meio de uma viv�ncia cultural. Na Serra, a Kika passa a ideia de uma m�e que protege sua comunidade, que � o papel que as mulheres negras e faveladas do Brasil desemprenham”.

Voca��o desde a inf�ncia

Falar de Kika n�o � s� dar �nfase � arte e ao funk. A hist�ria dela como agente social come�ou na transi��o da inf�ncia para a adolesc�ncia. Quando tinha 12 anos, come�ou a se envolver em ajudas humanit�rias no pr�prio Aglomerado da Serra, ao socorrer v�timas que ficaram desabrigadas em virtude das fortes chuvas.

Logo, come�ou a se sensibilizar com outros problemas, entre eles a fome, a pobreza e a mis�ria. E, desde aquela �poca, tornou-se corriqueiro um morador da favela pedir orienta��es a ela para solucionar problemas do dia a dia, como ruas esburacadas, rusgas entre vizinhos ou para obter licen�as para lojas.

Kika começou a se envolver em trabalhos para ajudar moradores aos 12 anos
Kika come�ou a se envolver em trabalhos para ajudar moradores aos 12 anos (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press )


“Somos chamados desde o pedido de uma cesta b�sica, mas tem as quest�es da comunidade, como uma laje caindo, a quadra que precisa ser arrumada, a rua que precisa de asfalto, o esgoto do vizinho. Eles n�o t�m esse di�logo e precisam da gente para resolver o problema. M�e que abandonou o filho, briga de vizinho, alvar� para loja, licen�a para barracas”, comenta Kika.

Desde ent�o, a belo-horizontina se v� feliz ao ver seus vizinhos vivendo com harmonia e sem passar por dificuldades: “O mais desafiador � quando chegam para a gente com uma demanda e voc� n�o tem como resolver. Mas voc� sempre consegue. E o que d� mais satisfa��o � quando voc� consegue resolver um problema que jamais esperava que conseguiria. S�o v�rios no dia a dia. Cada problema � maior que o outro. Quando vai conseguindo passar e resolver, beleza. Mas h� frustra��o quando voc� n�o consegue resolver. Eu nem consigo dormir ou comer. Carregamos os problemas junto com a gente. Para alguns, � f�cil. Mas n�o �”, desabafa.

Exemplo dentro de casa 

Com a mesma aten��o que d� � comunidade, Kika tamb�m cuida diariamente de seu lar. Ela teve sua primeira filha aos 18 anos e, desde ent�o, n�o parou de trabalhar para ajud�-los. A primog�nita dos herdeiros � Paula, de 26. Em seguida, veio Larissa, de 25, e Matheus, de 21. A l�der comunit�ria adotou outros tr�s: Manu, de 11, Kathleen, de 6, e o pequeno Gustavo, de 2.

Sem forma��o acad�mica, ela lutou muito para cri�-los da melhor forma. Trabalhou como faxineira, empregada dom�stica e como cuidadora de crian�as. Criada pela av� junto com outros primos, aos poucos foi aprendendo a exercer o papel protagonista na comunidade. Mesmo sem a faculdade, Kika tentou se qualificar para exercer a fun��o ao longo dos anos. Ela j� fez curso de promotora popular do Minist�rio P�blico e sempre diz ter buscado outras qualifica��es para saber como funciona a rela��o entre periferia e poder p�blico.

Os desafios da pandemia

(foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)

Uma de suas metas atualmente � encaixar novamente os moradores da favela em novos trabalhos, j� que muitos postos se fecharam na pandemia. “Algumas pessoas passam por necessidades, mas sempre tiveram trabalho. Com o emprego, ela conseguia suprir algumas e, com isso, faltavam poucas coisas. Mas, com a pandemia, as pessoas perderam o emprego. Logo, faltaram mais coisas. Estamos tentando reajust�-los no mercado. O mais importante nem sempre � dar. Quando temos, doamos, como no in�cio da pandemia. Hoje, fazemos o poss�vel para conseguir encaix�-los no mercado de trabalho para eles pescarem o pr�prio peixe”. 

Apesar de sua representatividade no aglomerado, Kika j� pensa em passar o bast�o para outro cidad�o que tem o dom de cuidar dos outros. “M�e � para sempre. Esse perfil a gente n�o perde. Mas tenho muita vontade de passar adiante. As pessoas que v�m com a gente precisam aprender isso. Eu aprendi de outras que hoje est�o descansando. Tem hora que temos de descansar. Demanda muito tempo. Esse caminho ser� at� chegar outro. N�o podemos ficar a vida toda na mesma fun��o”.


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