
Curvelo – A jornada at� a Lapa de Quatro Bocas, rec�m-declarada patrim�nio municipal pela Prefeitura de Curvelo, � ainda hoje uma aventura digna das fa�anhas pioneiras de 1835 do naturalista Peter Lund e de seu companheiro de expedi��es Peter Brandt. N�o se chega sequer perto da gruta onde Lund esteve, h� 186 anos, sem vencer estradas rurais prejudicadas pelas chuvas, muitas vezes bloqueadas pelo gado justo nas passagens mais exigentes e banhadas pelas curvas do Ribeir�o Maquin�, um curso d'�gua trai�oeiro, que com as tempestades de cabeceira pode ganhar volume de rio e precisa ser transposto pelo seu leito veloz. A paisagem remete ainda a um misto dos desenhos e pinturas de Brandt, no s�culo 19, e das descri��es dos textos de Guimar�es Rosa, no s�culo 20, com pequenas povoa��es nos rinc�es mais improv�veis e casebres perdidos em grot�es.
S�o quatro acessos por onde a �gua de chuvas atravessa – da� o nome de Lapa de Quatro Bocas. “Uma delas, a quarta e a menor, s� encontramos na terceira campanha depois de termos visitado a gruta, em mar�o deste ano. T�nhamos uma no��o, pela din�mica topogr�fica e pelo escoamento da �gua, de onde estaria, mas exploramos bem as tr�s primeiras bocas antes, at� para estabelecer sua interliga��o”, conta o qu�mico e doutor em hist�ria da ci�ncia Luciano Emerich Faria, que pertence ao Opili�o – Grupo de Estudos Espeleol�gicos (OGrEE) que redescreveu a caverna de Lund ap�s comparativo com os mapas deixados pelo dinamarqu�s e por Brandt.
A lapa est� inserida em um alto de colinas de rochas negras recobertas por vegeta��o densa, como uma mata de galeria de �rvores frondosas entremeadas por plantas e espinhos de todos os portes. No caminho h� uma trilha �ngreme, mal delineada e camuflada, quase invis�vel a olhos destreinados. Cada passo no solo coberto de folhas faz minar �gua barrenta de um tapete tornado cada vez mais escorregadio com chuvas insistentes.
Mas, mesmo por entre galhos e folhagens mais fechadas, a abertura principal da Lapa de Quatro Bocas come�a a aparecer, como se fosse um t�nel desabado em frente a uma �rvore de grande porte, de tronco t�o grosso que demandaria quatro homens para abra��-lo, e com n�o menos do que 20 metros de altura – robustez suficiente para se supor que l� j� estava quando os exploradores Lund e Brandt apearam de suas mulas na regi�o.
Algumas ra�zes descem pelo teto dessa entrada da caverna e acompanham o rastro de rio tempor�rio que a chuva faz desaguar dentro da caverna. Nesse terreno molhado, pegadas de pequenos mam�feros indicam um ambiente de ref�gio para a vida selvagem e tamb�m um poss�vel ponto para a tocaia das on�as que vivem na regi�o.
Essa inser��o essencial no ecossistema � considerada t�o importante para a Prefeitura de Curvelo quanto o valor hist�rico da gruta. “Nossas grutas n�o sofreram interven��es para propiciar o turismo, s�o biomas muito espec�ficos e sens�veis, por isso todo uso deve ser muito bem planejado e atender a uma s�rie de protocolos e legisla��es, os quais estamos estudando junto ao Centro Nacional de Pesquisa e Conserva��o de Cavernas – �rg�o nacional de manejo e prote��o de cavernas ligado ao ICMBio”, informa a administra��o municipal.

Nuvens de morcegos, equil�brio natural
A biodiversidade que se somou � import�ncia hist�rica para o tombamento da Lapa de Quatro Bocas se expressa tamb�m no interior das galerias e sal�es baixos, onde insetos e aracn�deos constroem ninhos e tocas. Aprofundando-se nos corredores tortuosos escavados pela eros�o da �gua ap�s milhares de anos, encontram-se os moradores mais presentes: bandos de morcegos que voam de todos os lados, se prendendo a estalactites que pendem do teto e de l� mergulhando em todas as dire��es. S�o tantos que �s vezes d�o a impress�o de que a caverna esteja por vezes imersa em uma nuvem. A cada passo se sente o trombar das asas e at� dos corpos dos animais, que n�o s�o perigosos se o visitante souber evitar movimentos que possam prend�-los.
“Uma de nossas teorias � a de que a Lapa de Quatro Bocas seja uma batcave, ou seja, uma caverna que agrega v�rias col�nias de morcegos e por isso seja fundamental para o equil�brio ecol�gico da regi�o. Os morcegos frug�voros t�m papel de dispers�o de sementes, os inset�voros controlam as popula��es de insetos muitas vezes nocivos ao homem e � agricultura, e at� os hemat�fagos, assim como os demais, fertilizam o meio ambiente por meio do guano (fezes extremamente ricas em nutrientes para o solo)”, afirma Luciano Faria. De acordo com o cientista e espele�logo, essa caracteriza��o necessitaria de estudos de bi�logos e de outros profissionais, algo que pode ser feito no futuro, sob o benef�cio da preserva��o.
Os corredores que interligam as quatro bocas da cavidade se aprofundam por um total de 550 metros, muitos deles tendo de ser percorridos por exploradores agachados ou mesmo por rastejamento em passagens de pouco mais de 40 cent�metros de di�metro. Muitos desses trechos n�o podem ser visitados sob chuva, devido ao perigo de que o c�rrego tempor�rio que muitas vezes corre na gruta bloqueie a passagem de retorno de algum dos sal�es ou mesmo afogue visitantes. Mais um motivo para o controle das atividades dentro da lapa descrita por Peter Lund e que foi reencontrada e preservada.
Curvelo quer blindar sua pr�pria Rota Lund
Todas as cavernas descritas por Peter Lund em Curvelo est�o nos planos do programa de preserva��o que a prefeitura local desenvolve. “A inten��o � que as cavernas de Lund sejam tombadas como conjunto paisag�stico do munic�pio, para no futuro, incluir Curvelo no circuito das cavernas de Lund, j� que temos uma grande incid�ncia dessas grutas em nosso territ�rio. Essa � uma forma de preservar nossa hist�ria e patrim�nio. Trazer isso para a educa��o das comunidades � uma forma de incentivar a valoriza��o das pessoas daqui”, afirma Adriana Batista de Almeida, chefe do Departamento de Cultura e Patrim�nio do munic�pio.
Segundo Adriana, atualmente Curvelo tem 24 bens tombados e 100 inventariados para a prote��o cultural. Com o tombamento, o munic�pio pode pleitear verbas proporcionais de ICMS Cultural para desenvolver trabalhos de prote��o e educativos sobre as estruturas que est�o protegidas, como as grutas.
Para o grupo Opili�o, o tombamento seria particularmente especial para uma das grutas descritas por Peter Lund e cuja localiza��o era desconhecida desde 1835. � a chamada Lapa do Capim Branco, que fica dentro de uma fazenda de mesmo nome. “Foi a primeira caverna que descobrimos, em 2012. Fizemos medi��es e mapeamentos que bateram com os mapas feitos por Lund, e com isso pudemos assegurar que se tratava da sexta cavidade onde Lund e Brandt estiveram”, afirma o cientista e espele�logo Luciano Faria. A chefe do Departamento de Cultura e Patrim�nio de Curvelo confirma que a Lapa do Capim Branco � uma das que ser�o tombadas.
A gruta, em si, n�o tem muitos atrativos. � pequena e foi revirada por extratores de salitre, um mineral muito valorizado no s�culo 19 para a produ��o de p�lvora. “Mas foi justamente no rastro dos salitreiros que Lund fez v�rias descobertas de f�sseis da megafauna, como as pregui�as gigantes e tigres dentes de sabre, pois as pessoas que revolviam o solo e as paredes das grutas atr�s de salitre desenterravam esses f�sseis e os descartavam. Lund, ent�o os recuperava, estudava e remontava. Encontramos, inclusive, fragmentos cer�micos de uma gamela de salitreiros na Lapa do Capim Branco”, conta Faria, revelando vest�gios que ainda podem ser a ponta de v�rias descobertas cient�ficas.