COVID-19: Menor cidade do Brasil controla 'at� os espirros' via WhatsApp
Com 776 habitantes, Serra da Saudade, no Centro-Oeste de Minas, aposta na 'fofoca do bem' contra a propaga��o do coronav�rus e das not�cias falsas
Serra da Saudade – Sem hospitais, pouca estrutura sanit�ria e or�amento modesto, Serra da Saudade, a menor cidade do Brasil, encravada entre as montanhas de Minas Gerais, surpreende com seu aprendizado sobre a morte trazida pelo novo coronav�rus e as transforma��es da vida ap�s a chegada da COVID-19.
Com liga��es estreitas num munic�pio onde quase todos se conhecem, o monitoramento da doen�a foi feito com ajuda de mensagens instant�neas por celular (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Num clima quase familiar, os 776 habitantes do munic�pio enfrentaram o v�rus com a firmeza de uma clausura para evitar as contamina��es, a troca on-line de informa��es sobre o avan�o da infec��o e os conterr�neos que apresentavam sintomas, al�m da cren�a imbat�vel na prote��o das vacinas.
Em quase dois anos de pandemia, os serrano-saudalenses d�o li��o ao Brasil do combate bem-sucedido � doen�a. A pequena cidade do Centro-Oeste de Minas, distante 259 quil�metros de Belo Horizonte, perdeu uma moradora devido a complica��es da doen�a, conta 84 casos confirmados de COVID-19, e duas pessoas hospitalizadas.
Todos os maiores de 12 anos (709 pessoas) se imunizaram com a primeira dose e 94% contam com o esquema vacinal completo, de acordo com a Secretaria Municipal da Sa�de. Dentro da margem de erro, apenas tr�s moradores rejeitaram a imuniza��o. Nem por isso o alarme para a COVID-19 foi desligado, como observou o Estado de Minas em visita � cidade.
Osmar Pinto Moreira n�o se conforma com a morte da mulher, Maria da Rocha Moreira (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Por meio de um �nico grupo no WhatsApp, que re�ne ao menos um representante de cada fam�lia, � feito o monitoramento da doen�a, relata a contadora da prefeitura, Maria Auxiliadora Menezes, respons�vel pela iniciativa de usar a ferramenta digital de forma coletiva.
“Criei o grupo logo quando os casos de COVID-19 chegaram �s cidades pr�ximas de Serra da Saudade, como Estrela do Indai� e Dores do Indai�. Adicionei, primeiro, os funcion�rios p�blicos de quem tinha o telefone e cadastrei todos como administradores. Da�, eles foram incluindo outras pessoas. Praticamente toda fam�lia tem um representante l�”, diz Auxiliadora.
No espa�o virtual, os participantes compartilham informa��es oficiais sobre a COVID-19, not�cias, al�m de praticar uma esp�cie de “fofoca do bem”. “A cidade � pequena, todo mundo d� not�cia de tudo. Espirrou, acabou, todos ficam sabendo! Agora na pandemia, literalmente! Ent�o, quando as pessoas viam vizinhos com sintomas gripais, logo comentavam no grupo e questionavam por que n�o estavam em isolamento. A mesma coisa quando eventualmente furavam a quarentena ou recebiam visitas de fora da cidade.”
WhatsApp criado por Maria Auxiliadora de Menezes conta com a participa��o de um representante por fam�lia da cidade (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Para refor�ar o monitoramento de visitantes, a prefeitura manteve barreiras sanit�rias nas entradas da cidade por mais de um ano. Os locais foram equipados com term�metros para aferi��o de temperatura e �lcool em gel. Ainda segundo Auxiliadora Menezes, o grupo de WhatsApp tamb�m foi uma maneira de proteger a popula��o das not�cias falsas sobre a pandemia e a vacina��o.
“Levou um tempo at� que ca�sse a ficha das pessoas de que a cidade n�o estava imune � doen�a por ser muito pequena. O grupo, nesse sentido, funcionou como canal oficial de informa��es sobre a avan�o da pandemia”, explica a servidora.
Vacinado com as tr�s doses da vacina contra a COVID-19, Osmar Pinto Moreira, de 71 anos, lamenta a decis�o dos poucos e conhecidos conterr�neos negacionistas de n�o se vacinarem. Ele � vi�vo de Maura Maria Rocha Moreira, que morreu em 28 de janeiro de 2021, em raz�o de complica��es decorrentes da doen�a respirat�ria.
A morte dela n�o consta nos boletins epidemiol�gicos do estado como notifica��o em Serra da Saudade, pois foi registrada em Bom Despacho, a 109 quil�metros do munic�pio. � para onde os pacientes graves, especialmente, aqueles que demandam interna��es em centro de terapia intensiva, s�o encaminhados.
“Perdi minha companheira de 50 anos”, diz seu Osmar inconformado, diante do t�mulo da mulher, enterrada no cemit�rio muni- cipal. “A gente nunca acha que vai acontecer com a gente, mas essa doen�a � maligna. As pessoas n�o deveriam facilitar, porque ela mata mesmo. Se tivesse vacina quando minha mulher ficou doente, talvez ela estivesse viva”, emociona-se o ex-trabalhador rural, que vive sozinho. Pai de seis filhos e av� de seis netos, ele tem a companhia eventual de familiares.
A maneira como dona Maura foi infectada pelo v�rus ainda � um mist�rio para seu Osmar. “Ela ia s� ao supermercado, n�? Nunca foi de sair. Da� ela pegou e n�o resistiu, pois era cheia de problemas de sa�de.”
'Sangue de Jesus'
O artes�o Luiz Amaro Ricardo, embora com comorbidades, � um dos poucos moradores que rejeitam a vacina (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
O negacionismo, por�m, est� longe de representar amea�a �s recomenda��es da ci�ncia. O Centro de Sa�de de Serra da Saudade registra tr�s moradores que se recusam a receber a vacina contra o coronav�rus, a despeito dos esfor�os de persuas�o dos profissionais da sa�de municipal. De acordo com a enfermeira Ana Laura Andrade, s�o dois idosos e uma crian�a, cujos pais n�o permitiram que recebesse a inje��o. “Ligamos in�meras vezes, fomos � casa deles para tentar aplicar, falamos com eles semanalmente, mas n�o teve jeito. N�o tomaram nenhuma dose.”
A reportagem do EM encontrou algumas pessoas que recusam a vacina. Uma deles � o aposentado e artes�o Luiz Amaro Ricardo, de 53, que inclusive faz parte de um grupo de alto risco: ele � cadeirante, hipertenso e diab�tico.
Com simpatia, ele recebe a equipe do EM como bom anfitri�o mineiro. “Podem entrar, fiquem � vontade”, convida. Amaro Ricardo � membro da Igreja Evang�lica Congrega��o Crist� do Brasil. Questionado sobre o motivo da resist�ncia � imuniza��o, ele logo se defende. “Olha, isso n�o tem nada a ver com a minha igreja, ningu�m l� fala nada contra a vacina. Inclusive, os irm�os todos tomaram. S� eu mesmo que n�o quis. J� tive trombose, o que me fez perder as duas pernas. N�o quero mais medicamentos do que eu j� tomo. J� levei agulhadas o bastante na vida. Agora, chega”, desabafou.
O medo de adoecer n�o parece estar entre as preocupa��es dele. “Quem protege � o sangue de Jesus. � s� Deus mesmo para nos guardar.” O outro morador resistente � campanha � o l�der da igreja dele, conhecido como Amaral. Ele n�o quis falar com a reportagem. A fam�lia que optou por n�o vacinar a crian�a n�o estava em casa.
Aldeia mineira
Dormir com portas destrancadas e janelas abertas � um dos privil�gios dos moradores de Serra da Saudade, no Centro-Oeste de Minas Gerais, onde o controle da pandemia levou a n�mero muito baixo de contaminados e a um �bito provocado pela doen�a respirat�ria. O �nico posto policial do munic�pio n�o registra homic�dios e outros crimes graves h� quase cinco d�cadas.
Tudo se conta nos dedos em Serra da Saudade: s�o dois bairros, 14 ruas, sete bares, quatro pra�as, duas mercearias, tr�s igrejas e um centro de sa�de (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Tudo se conta nos dedos no munic�pio e os habitantes podem manter o prazer de se cumprimentar pelos nomes pr�prios. S�o dois bairros, 14 ruas, sete bares, quatro pra�as, duas mercearias, tr�s igrejas, um centro de sa�de, uma ag�ncia dos correios, um posto policial, uma academia, 55 funcion�rios p�blicos efetivos e 776 habitantes acomodados em 353 casas. Ao todo, s�o 268 fam�lias, segundo os dados da prefeitura municipal, facilmente recitados pela maioria dos habitantes.
� reportagem do Estado de Minas, Maur�cio de Oliveira Silva, de 23 anos, contou que a cidade tem ruas praticamente vazias a qualquer hora do dia ou da noite. “Aqui nunca foi muito movimentado, mas, depois da pandemia, as pessoas praticamente entraram em clausura.” Acostumado a se divertir nas festas t�picas da localidade, como a Festa do Pe�o e a Festa do Ros�rio, canceladas desde o in�cio da epidemia, ele assume um tom entediado.
“N�o tem muito o que fazer por aqui, n�? J� n�o tinha. Agora, temos que sair da cidade com mais frequ�ncia para encontrar alguma op��o de lazer. Mesmo assim, tomando muito cuidado e sem abusar”, afirma Maur�cio Oliveira. O isolamento levado a s�rio e o monitoramento da doen�a e de quem se infectava mostrou seus reflexos no com�rcio local, que tamb�m deixou a zona de conforto para reduzir os impactos da necess�ria quarentena para conter a contamina��o pelo coronav�rus.
Ponto mais popular entre os grisalhos da cidade, o chamado Bar do Vaca ficou pouco mais de seis meses fechado por for�a de decreto municipal, que suspendeu as atividades dos sete bares de Serra da Saudade. Reaberto recentemente, o estabelecimento comandado por Raimundo Fernando Silva, de 62, oferece bons tragos, partidas de sinuca e tradicionais tira-gostos.
“Voltei, mas agora estou devendo at� os cabelos da cabe�a, n�?”, brinca o empreendedor. “O bar complementa minha renda. S� com a aposentadoria n�o d� para viver", reclamou, enquanto cortava bambu na forma de espetinhos de madeira que usa para assar carne de churrasco. Durante o per�odo de fechamento do bar, ele adotou sistema de delivery em Serra da Saudade.
Na maior mercearia de Serra da Saudade (a cidade tem apenas duas), o faturamento caiu pela metade desde o in�cio da pandemia (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
“Eles (os clientes) se sentavam na pra�a, ao ar livre, e eu levava as bebidas e o tira-gosto para eles. De tudo, eu n�o fiquei parado”, relembra. Na �nica loja de roupas, o fluxo de consumidores tamb�m causou preju�zo. A vendedora Patr�cia Soares diz que o faturamento caiu 50% nos �ltimos dois anos. “Ainda n�o vejo muitos sinais de recupera��o.”
Na maior mercearia de Serra da Saudade, a propriet�ria, Lenice Aparecida Ricardo, descreve situa��o semelhante. “Apesar de continuarmos funcionando normalmente na pandemia, o movimento caiu pela metade. Est� melhorando, mas vai bem devagar”, afirma.
Or�amento abalado
O caixa municipal n�o poderia deixar de sentir o baque. Para este ano, a C�mara Municipal de Serra da Saudade aprovou or�amento no valor de R$ 18,72 milh�es. A redu��o, segundo a prefeitura, foi de 12% nos �ltimos dois anos. A principal fonte de receita do munic�pio � o repasse da cota do Imposto sobre Circula��o de Mercadorias e Presta��o de Servi�os (ICMS), tributo recolhido pelo estado, seguido da parcela a que tem direito do Fundo de Participa��o dos Munic�pios (FPM), compartilhado com base no n�mero de habitantes e distribu�do pela Uni�o.
Ap�s a pandemia, a arrecada��o tamb�m diminuiu, destaca a contadora do munic�pio, Maria Auxiliadora Menezes. “Com isso, o valor repassado diminuiu. Por sorte, houve um maior aporte federal para a sa�de nos �ltimos dois anos para o combate � COVID-19. Em 2020 e 2021, recebemos R$ 300 mil extras.” � sa�de municipal, �rea a que se dedica a enfermeira Ana Laura Andrade, o or�amento de 2022 reservou verba de R$ 4.043.000,90.
Respons�vel pela cria��o do grupo de WhatsApp que re�ne moradores de todas as fam�lias de Serra da Saudade, Auxiliadora Menezes observa que, no auge da pandemia, decis�o fundamental foi evitar ao m�ximo atrair gente de fora da cidade.
“T�nhamos medo de que as pessoas viessem para c� se isolar do movimento das cidades mai- ores. Isso seria uma trag�dia para n�s. N�o temos estrutura nenhuma para lidar com superlota��o”, justifica.