Que frio � este? Como moradores de BH encaram maio mais gelado da hist�ria
Frio desafia popula��o de rua, trabalhadores, moradores de bairros mais altos. Receitas para suportar a temperatura v�o de quilos de agasalhos at� fogueira
Andr� Soares da Silva enfrentou sensa��o t�rmica ainda mais baixa enquanto limpava fachada de pr�dio no Buritis (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
A �ltima semana de recordes negativos de temperatura colocou � prova em Belo Horizonte o ditado popular segundo o qual “Deus manda o frio conforme o cobertor”. Com term�metros despencando, na quinta-feira (19/5), a cidade registrou 4,4°C na Esta��o Cercadinho, no Buritis, Regi�o Oeste, a menor marca entre todas as capitais brasileiras e o dia mais frio para um m�s de maio na hist�ria da cidade, segundo os registros do Instituto Nacional de Meteorologia.
Motivo mais que suficiente para que moradores da capital procurassem formas de se proteger, seja nos bairros de classe m�dia ou alta, seja nas comunidades mais humildes, seja embaixo de viadutos, como os do Complexo da Lagoinha, na Regi�o Noroeste. Para mostrar essa realidade, o Estado de Minas foi para as ruas para mostrar lugares e situa��es em que a coberta muitas vezes n�o � o bastante para tanta friagem.
Que o diga o catador de material reciclado Thiago Pereira, de 33 anos, que n�o deixa Deus de lado, mas considerou prudente, diante do ambiente gelado, pedir ajuda terrena para suportar o frio. Ele vive em uma barraca no Complexo da Lagoinha.
Em um dos pilares que o ajudam a se esconder do vento, pintou com tinta azul e com letras bem grandes o pedido: “Precisamos de blusa de frio…” Teve a ideia uma semana antes de a frente fria chegar, de forma que quando esfriou j� havia recebido casacos e cobertores. Tantos que n�o soube precisar em n�meros, mas que permitiram que ele pudesse ajudar outras pessoas que vivem embaixo dos viadutos da regi�o. “As roupas que n�o servem para n�s, doamos para o pessoal. Recebemos e distribu�mos”, contou.
Um dos agasalhos que recebeu, um casaco esportivo preto, usava na manh� de sexta-feira (20/5) com um gorro na cabe�a, quando se preparava para sair para catar papel�o e outros materiais recicl�veis que serviriam para pagar a refei��o do dia. No local em que mora com o irm�o e dois conhecidos, as cinzas s�o testemunhas das fogueiras acesas no dia anterior.
No frio incomum do outono, a forma primordial de aquecimento � das poucas op��es que restam a quem vive ao relento. Ao lado de um dos restos de fogo, chama a aten��o um jardim de pimenta que plantou, uma tentativa de tornar lar improvisado mais aconchegante.
Thiago � muito grato a quem doou cobertores e agasalhos, mas confessa que ali, no relento, principalmente de madrugada, as pe�as amenizam o frio, mas n�o s�o suficientes para impedir o sofrimento com a queda das temperaturas. “O frio aqui � demais. O jeito � deitar e tentar se esquentar o m�ximo poss�vel. Mas, gra�as a Deus, estou aqui lutando”, conta ele, que veio de Governador Valadares h� um ano e meio. Desde ent�o, vive na rua.
Thiago Pereira pediu agasalhos, foi atendido, mas diz que mesmo com a solidariedade sofre com as noites geladas (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press
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MUDAN�A DE CLIMA
O frio neste maio de madrugadas congelantes surpreendeu muita gente, mesmo que as prova��es sejam infinitamente menores. A assistente social Adriana Muzzi, de 57, mesmo muito agasalhada na manh� de sexta, admitiu que n�o esperava tanto frio no bairro para o qual acabou de se mudar – h� tr�s dias, ela trocou o Gutierrez pelo Buritis. “Percebi muita diferen�a na temperatura. Moro no oitavo andar, ent�o venta muito, faz muito frio.”
Hora, ent�o, de tirar todo o arsenal de agasalhos e cobertores do guarda-roupas. Cachecol, por exemplo, virou item indispens�vel. Para ajudar a enfrentar o frio, outra estrat�gia � se recolher mais cedo. “Dormia por volta das 23h e agora �s 21h30 j� estou na cama”, conta. Para dar uma m�ozinha humana ao ditado do “frio divino do tamanho do cobertor”, ela procura fazer a sua parte e, nestes dias gelados, doou itens como agasalhos e cobertores.
Devido � altitude, o Buritis � um bairro em que as temperaturas costumam ser mais baixas do que em outros pontos da cidade. L� da fachada do oitavo andar de um edif�cio na Rua Jos� Hemet�rio Andrade, Andr� Soares da Silva, de 29, tinha vis�o panor�mica em uma das �reas mais altas. I�ado por cordas, limpava o revestimento externo do pr�dio com jatos d'�gua em momento em que os term�metros marcavam 9°C para quem estava no n�vel do solo. Naquela altura, a sensa��o era de tr�s graus a menos, na avalia��o dele. “Para um servi�o como o nosso, o frio � ruim. N�s trabalhamos em altura e atrapalha um pouco”, disse. Para aguentar, s� usando tr�s casacos.
E se o agasalho n�o d� conta sozinho da friagem, o jeito � perseguir os raios de sol para ajudar. Robson Egita, de 44, recorreu a eles enquanto esperava o transporte que o levaria ao trabalho em um supermercado. Morador do Bairro das Ind�strias, �s margens do Anel Rodovi�rio e pr�ximo a um c�rrego e uma �rea de mata, para ir ao trabalho, �s 6h, o jeito � se proteger como d�. “Saio de cal�a, bota, procuro me agasalhar todo. Uso luvas e blusa de frio para ver se aguento.” Em casa, ele tamb�m se socorre do fogo nos dias mais gelados. “Tem que fazer fogueirinha”, confessa, sem abrir m�o de touca e luvas para dormir.
Mesmo agasalhado, Robson Egita persegue o sol enquanto espera o transporte para o trabalho. Em casa, vale at� fogueira (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press
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BH perto de zero
De acordo com a meteorologia, este � o maio com temperaturas mais baixas em BH. Contra os 4,4°C de quinta-feira, o recorde anterior do m�s era de 7,5°C, em 1977, no dia 20. Mas a menor temperatura j� registrada foi em junho: 3°C, em 1961. Para hoje, a previs�o � de m�nima de 10°C.
Grupo que vive sob um dos elevados do Complexo da Lagoinha enfrenta madrugadas geladas com fogo e abrigos improvisados, em uma comunidade em crescimento
(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
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Pouca esperan�a sob viaduto e a bandeira
A Bandeira do Brasil fica hasteada em meio �s barracas que ocupam um dos espa�os embaixo do Viaduto Leste, um dos acessos � �rea central de Belo Horizonte. Entre as moradias improvisadas, pessoas que vivem em situa��o de rua acendem uma fogueira para espantar o frio do outono com temperaturas de inverno que se instalou na capital.
O fogo ajuda a vencer as madrugadas congelantes, mas Jason Carlos, de 43 anos, se queixa da falta de agasalhos e cobertores. Ele vive nas ruas da capital mineira h� seis meses, desde que veio de Santos (SP) com o objetivo de ajudar uma prima. O lugar onde vive foi forrado com uma lona preta onde se l� pelo lado de fora a palavra “brasileiro”, escrita incompleta.
A prima, que enfrentava um relacionamento abusivo, conseguiu se separar, mas Jason acabou indo viver debaixo do Viaduto Leste. Em meio ao processo de mudan�a de estado, ele conta ter perdido todos os documentos. Por isso, afirma, n�o consegue voltar para a cidade natal, n�o tem acesso a programas assistenciais e n�o consegue arranjar emprego. “Procuro me agasalhar e ficar dentro da barraca, mas est� sempre faltando alguma coisa”, diz.
Quando o frio vem acompanhado de vento, a situa��o para quem mora na rua fica ainda mais dram�tica, conta. Al�m da piora na sensa��o t�rmica, h� o risco de que a barraca seja desmanchada. Na rua, em meio � poeira, ao p� de asfalto e � falta de �gua, as roupas acabam virando itens descart�veis. Por isso, Jason considera que as doa��es s�o uma ajuda indispens�vel.
“A prefeitura poderia arrumar uma barraca para n�s. Nesta �poca, bate o vento e a pessoa perde tudo. � s� ver as barracas voando.” A car�ncia de agasalhos, muitas vezes, � tamb�m de comida. A realidade de Jason e de quem vive ali na Vila dos Cachorros – como identifica um letreiro em um dos pilares do viaduto, � de apenas uma refei��o ao dia. Os sem-teto recorrem ao Restaurante Popular mantido pela prefeitura ou dependem de doa��es. Muitas vezes, eles ainda t�m que decidir se v�o comer ou alimentar c�es e gatos que lhes servem de companhia fiel.
Enquanto olha para a Bandeira do Brasil, que � de um colega, Jason diz que n�o tem muita esperan�a com o futuro do pa�s. Sem documentos, inclusive sem t�tulo de eleitor, ele diz que n�o sabe ainda se vai votar nas elei��es de outubro. De toda forma, pede ao futuro comandante do pa�s que olhe para as pessoas em situa��o de rua. Mas confessa que n�o espera muito.
"N�s tamb�m temos sonhos. Tamb�m somos dignos de oportunidades"
La�rcio Ant�nio Costa Marques, de 29 anos, que saiu esta semana de Jo�o Monlevade para BH em busca de emprego e, com a roupa do corpo, foi para debaixo do Viaduto Leste
“No Brasil, quem tem mais tira de quem tem menos”, reflete. Segundo ele, a l�gica se repete at� na hora de ajudar. Jason acredita que algumas pessoas levam agasalhos ou alimentos aos moradores de rua para “fazer marketing pessoal”. “� gente que tem interesse em fazer propaganda da doa��o. Um dia desses mesmo tinha um 'tik toker' fazendo uma filmagem aqui para ganhar dinheiro em cima da gente, da nossa mis�ria”, diz.
E esse contingente vai crescendo, enquanto o frio aumenta. La�rcio Ant�nio Costa Marques, de 29, chegou esta semana de Jo�o Monlevade, na Regi�o Central de Minas. Sem ter para onde ir, juntou-se ao grupo que vive sob o Viaduto Leste. Chegou com a roupa do corpo: uma blusa de malha vermelha, uma cal�a preta e chinelos. “Minha inten��o � arrumar servi�o como ajudante de pedreiro”, conta.
No pesco�o, ele tem a palavra “f�” tatuada. Mas procura esconder. Teme que as escritas no corpo atrapalhem de conseguir trabalho. Ao futuro presidente do Brasil, ele pede que olhe para os moradores de rua. “N�s tamb�m temos sonhos. Tamb�m somos dignos de oportunidades.” Entre as oportunidades mais urgentes, ele pede um cobertor e um emprego. O rel�gio marcava 15h e La�rcio ainda n�o tinha almo�ado. Na verdade, n�o fazia ideia de como poderia conseguir a refei��o do dia.
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