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Estado de Minas NOSSA HIST�RIA

O caso Jorge Defensor: o oper�rio que escancarou os por�es da tortura em MG

H� 45 anos, trabalhador que ficou paral�tico sendo surrado sob acusa��o de furto expunha entranhas do regime militar e torturadores a servi�o da Pol�cia Civil


11/07/2022 04:00 - atualizado 11/07/2022 06:28

Jorge Defensor na cadeira de rodas
Relatos do trabalhador levaram a CPI, interven��o do MP e transfer�ncia de delegado (foto: Arquivo EM - 5/3/1978)

"Amarraram-me como se fosse um cabrito e me bateram como se eu fosse um rato"

Jorge Defensor, em relato ao juiz 9� Vara Criminal de BH


Dois de setembro de 1977. Em pleno regime militar, os mineiros s�o surpreendidos por uma reportagem publicada na p�gina da editoria de Pol�cia do Estado de Minas sobre crime cometido em uma delegacia da Cidade Industrial, Regi�o Oeste de Belo Horizonte. A v�tima, um oper�rio. Jorge Defensor Vieira havia sido torturado. Como consequ�ncia, sofreu tr�s fraturas na coluna, ficou paral�tico e teve a sa�de, a fam�lia e a reputa��o destro�adas. Era a primeira de uma s�rie de mat�rias que ganharia destaque nacional, revelaria os por�es da tortura na Pol�cia Civil mineira e valeria � equipe de jornalistas respons�vel por ela o reconhecimento do Pr�mio Esso – o Oscar do jornalismo brasileiro na �poca.

Essa hist�ria de um preso desconhecido espancado em uma cadeia de periferia que mobilizaria a c�pula do estado e abalaria a Pol�cia Civil come�ou bem antes, quando os rep�rteres Tito Guimar�es e Alberto Sena receberam uma den�ncia da comunidade do Vale do Jatob�, mais precisamente da igreja do bairro. Uma fonte informava sobre o espancamento de um trabalhador, que teria sido preso sem ter cometido crime algum. A brutalidade das “autoridades” o teria deixado paral�tico.

O caso Jorge Defensor, como ficou conhecida a s�rie de mat�rias que nascia desse relato, levou a equipe do EM inicialmente ao Hospital S�o Francisco, no Bairro Conc�rdia, na Regi�o Nordeste de BH, onde o trabalhador estava internado. Os rep�rteres passaram v�rios dias tentando entrar na unidade para ouvi-lo, mas eram sempre barrados por ordem policial. Diziam m�dicos e atendentes: “Ningu�m pode entrar!”.

A frase, repetida por vezes, ainda ecoa na mente de Alberto Sena. Ela servia para estender outra cortina sobre o caso, que vinha de fontes oficiosas por tr�s de outro disfarce. “Chegou at� n�s, por meio de policiais, que um preso teria tentado fugir da cadeia na delegacia da Cidade Industrial. Que teria ca�do e fraturado a coluna, sendo internado no S�o Francisco”, relembra Tito Guimar�es.

O PADRE 

A entrada no hospital e o in�cio da mobiliza��o que daria a Defensor voz para revelar os abusos de que foi v�tima s� foi poss�vel gra�as a um artif�cio que contou com a ajuda de um padre da Igreja de S�o Dimas, no Vale do Jatob�. No dia em que houve a primeira oportunidade de acesso ao oper�rio, estavam l� Tito e o rep�rter fotogr�fico Sidney Lopes.

“Quem nos passou a informa��o sobre a tortura foi a igreja, por meio de um jornalista, Tilden Santiago, e o do hoje pol�tico Nilm�rio Miranda. Ent�o, resolvemos levar o padre at� o hospital. Ele foi entrando, e n�s, atr�s. Ningu�m barrou o religioso. Nem um policial que fazia a guarda interveio ou tentou impedir”, relembra o rep�rter Tito. “O Sidney fez as fotos, com uma c�mera pequena, port�til, que levava escondida sob o blus�o. E eu e o padre conversamos com Defensor. N�o usei gravador, papel e caneta, para n�o despertar a aten��o do policial. Guardei tudo na cabe�a. Depois de ouvir a hist�ria, sa�mos”, completa.

No dia seguinte, o resultado da entrevista feita de forma velada estampava a p�gina policial do Estado de Minas. Revolta e indigna��o entre integrantes da Pol�cia Civil. N�o pela tortura, mas pela den�ncia. Um dos delegados mais importantes da corpora��o na �poca, Prata Neto, ent�o superintendente da Metropol, grupo especializado em repress�o ao crime, declarava: “Acertamos 99% do que fazemos e pagamos por causa de 1% de um suposto erro”.

O GOVERNADOR 

A repercuss�o n�o era sem motivo. A reportagem mexia com a c�pula do estado. Alertado por seu assessor de imprensa, Mauro Santayana, o ent�o governador, Aureliano Chaves, que estava em viagem pelo Sul de Minas, resolveu, no retorno, ir direto ao hospital. Queria ouvir, da boca de Defensor, seu relato.

Com a coluna fraturada, o oper�rio decidiu n�o se calar. Contou que tinha sido preso injustamente, acusado do furto de um r�dio a pilha e de um par de sapatos. Al�m da contus�o que lhe roubara os movimentos, sofria ainda as consequ�ncias de uma lacera��o na bexiga e sentia muita dor na altura da cintura.

Na conversa com o governador, Defensor revelou os nomes dos torturadores: Jo�o Bosco, Jurandir, Fiel e Adelmo. Contou que os policiais exigiram que ele assinasse um documento, mesmo sabendo que era analfabeto. O oper�rio se negou. Seria uma confiss�o.

Jorge Defensor e os movimentos roubados pela tortura:
Jorge Defensor e os movimentos roubados pela tortura: relato chocou o governador da �poca, Aureliano Chaves (foto: Arquivo EM %u2013 9/12/1978)

A BARB�RIE

 O que mais chocou Aureliano Chaves foi o relato de detalhes das torturas. Defensor contou ter sido colocado no famigerado pau-de-arara (t�cnica de tortura em que o preso � pendurado em uma barra estendida entre dois cavaletes ou suportes, com as m�os amarradas junto com os p�s). A barb�rie que se seguiu incluiu choques el�tricos, mangueira d'�gua enfiada no nariz para induzir a sensa��o de afogamento e a introdu��o de um cabo de vassoura no �nus do prisioneiro.

Como consequ�ncia da sess�o de tortura, Defensor chegou ao hospital urinando e evacuando sangue, segundo um dos m�dicos. Uma per�cia chegou a ser feita por legistas do Instituto M�dico-Legal (IML), a pedido da pr�pria pol�cia, ou seja, potencialmente com resultado influenciado pelos torturadores.

Indignado com a viol�ncia, Aureliano Chaves determinou rigor nas apura��es. E solicitou ao Minist�rio P�blico a indica��o de um procurador para acompanhar o caso. Alberto Pontes foi designado e logo no primeiro dia de investiga��es, declarou, convicto: “Defensor n�o tem ficha criminal”.

Informou ainda que a pris�o ocorreu em 29 de abril de 1977 e que, desde ent�o, o oper�rio vinha sofrendo torturas. A interna��o ocorreu em 6 de maio, ou seja, menos de duas semanas depois da deten��o. Mas somente em setembro os rep�rteres do EM conseguiram falar com ele. O tempo de interna��o d� um ind�cio do n�vel da brutalidade a que o trabalhador fora submetido.

Mas a Pol�cia Civil n�o parecia disposta a reconhecer a barbaridade cometida contra um preso sob a tutela do Estado e responsabilidade da corpora��o. T�o logo o procurador fez a primeira declara��o, o delegado Prata Neto voltou a se pronunciar e reafirmou: “Defensor caiu do telhado ao tentar fugir da cadeia”.

O caso foi considerado grav�ssimo e a Assembleia Legislativa de Minas Gerais instaurou uma Comiss�o Parlamentar de Inqu�rito para acompanh�-lo. O ent�o deputado Nilton Lira, ao abrir os trabalhos da CPI, sentenciou: “A tortura virou lugar-comum”.

Um agente dos EUA e a vers�o n�o oficial

Corria � boca pequena, na �poca, que o ocorrido com Jorge Defensor estaria diretamente ligado � chegada a Belo Horizonte de um agente do governo dos Estados Unidos, que seria encarregado de ensinar m�todos de tortura a policiais mineiros que atuavam nos por�es da repress�o a quem desafiava o regime militar, ou seja, aqueles considerados subversivos. O agente norte-americano se chamava Dan Mitrioni.

Segundo essa vers�o, para esse treinamento seria preciso haver cobaias, presos que seriam usados como alvo no ensino de “t�cnicas” de tortura. Para isso, se recorria a detentos com pouca ou nenhuma visibilidade, que ocupavam pris�es perif�ricas, acusados de pequenos roubos, j� que presos pol�ticos, de camadas sociais mais altas, poderiam chamar a aten��o. De acordo com essa corrente, foi assim que Jorge Defensor terminou paral�tico e teve sua trajet�ria de oper�rio definitivamente interrompida.

Entre os delegados acusados, um, Miguel Bechara, apontado como principal respons�vel pela tortura, foi transferido de Belo Horizonte para o Norte de Minas. Dan Mitrioni permaneceu por meses em BH, percorrendo delegacias, supostamente com seus “ensinamentos”. Mas nunca foram confirmadas suspeitas sobre atua��o dele ou que tenha participado da viol�ncia contra Defensor.

A coincid�ncia que deu voz ao torturado

Uma testemunha identificada pelos jornalistas do EM que seguiam a trilha do caso Jorge Defensor foi fundamental para revelar como se deu a pris�o do oper�rio. Paulo foi localizado e contou o que sabia. “Ele pediu que eu o ajudasse na venda de sua casa. Um dia, ele caminhava na beira da linha f�rrea, no Jatob�, depois de nos encontrarmos, e foi preso, acusado de ter furtado o r�dio e os sapatos. Os objetos nunca foram encontrados, nem na casa do Defensor, nem com ele”, relatou.

O primeiro alerta da arbitrariedade contra Defensor foi feito por parentes, que ficaram muitos dias sem informa��es sobre ele. Uma amiga da fam�lia, segundo uma das reportagens, contou que tinha visto Defensor no Hospital S�o Francisco, onde fora visitar um conhecido. E relatou que ele parecia em uma situa��o muito ruim.

Perguntou a um enfermeiro o que tinha acontecido e recebeu como resposta que o paciente havia sido atropelado. Mas Defensor a reconhecera e a chamou. Contou o que havia acontecido, que tinha sido torturado. Ao tomar conhecimento, familiares do oper�rio procuraram a Igreja de S�o Dimas para pedir ajuda.

A mobiliza��o de parentes levou ao fio da meada que resultaria na pris�o. Descobriram que Defensor era acusado tamb�m do furto de um fog�o. Sua irm�, Maria Vieira Pereira, contou que o eletrodom�stico pertencia � fam�lia e que n�o havia furto algum. Defensor teria feito uma transa��o com um homem e teria trocado o equipamento de cozinha por um r�dio e um par de sapatos. A hist�ria voltava ao seu in�cio, aos objetos que serviram de argumento para a pris�o.

� medida que a repercuss�o do caso aumentava, surgiram testemunhas forjadas pela pol�cia contra Defensor. A primeira contou que ele seria um criminoso e que tentara arrombar uma casa. Depois, foi acusado de um homic�dio, jamais provado. Por �ltimo, do estupro de um menor de 16 anos.

A JUSTI�A 

Diante da repercuss�o do caso, que ganhou o notici�rio nacional, o ent�o juiz da 9ª Vara Criminal, Jo�o Batista da Costa e Silva, foi ao hospital ouvir Jorge Defensor. A v�tima mais uma vez deu detalhes da viol�ncia e da humilha��o: “Amarraram-me como se fosse um cabrito e me bateram como se eu fosse um rato”. O magistrado determinou que a Corregedoria de Pol�cia Civil investigasse a fundo a den�ncia e os policiais acusados.

O promotor Alberto Pontes responsabilizou tr�s delegados pelo epis�dio: Miguel Bechara, Ant�nio Lucena e Jos� Ribeiro. Na acusa��o, as informa��es dos m�dicos de que Defensor tinha tr�s fraturas na coluna vertebral, os nervos da perna esquerda estavam destru�dos, a bexiga, estourada, o reto, dilacerado e que les�es se espalhavam pelo corpo. Para sobreviver, o oper�rio havia ficado 45 dias no bal�o de oxig�nio.

Naquela fase da investiga��o, o delegado Prata Neto decidiu fazer mais uma declara��o constrangedora: “Deveriam t�-lo matado e jogado no mato, mas foram humanos”. Entre os acusados, outro delegado, Ant�nio Lucena, fez tamb�m uma declara��o que tentava manchar a imagem do oper�rio, como se isso justificasse a tortura: “N�o � nenhum excelente pai de fam�lia, mas um bandido”.

Defensor morava em uma favela. Sua filha havia nascido e ele ainda n�o conhecia a menina. O procurador Alberto Pontes declarou que a pris�o do homem n�o havia sido comunicadas � Justi�a, conforme previa a lei.

O PR�MIO ESSO 

Tito Guimar�es lembra que o Caso Jorge Defensor foi o primeiro da ditadura que veio � tona com ampla cobertura da imprensa. “Foi a partir da not�cia publicada no Estado de Minas que os demais ve�culos voltaram as aten��es para o caso.”

Foram cerca de oito meses de mat�rias, publicadas praticamente todos os dias nas edi��es do EM. Em 1978, a equipe formada pelos rep�rteres Tito Guimar�es, Alberto Sena, Sidney Lopes, Geraldo El�sio e Francisco Stheling ganhou o Pr�mio Esso de Jornalismo pela cobertura.



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