Serra do Cip�: clamor pela salva��o do Juquinha
Escultora Virg�nia Ferreira, que eternizou o sorriso do ermit�o das montanhas, tem projeto aprovado para restaura��o da obra, um dos s�mbolos da regi�o
A escultura de Juquinha j� foi reparada duas vezes. Agora, V�rginia est� na expectativa para uma nova restaura��o (foto: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A.PRESS)
N�o d� mais para saber o que Oscar Niemeyer acha de a polui��o da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, impactar as suas obras. Ou o que pensa o mestre Aleijadinho sobre os efeitos do tempo contra os Profetas que instalou em Congonhas. Mas a autora de uma das obras mais fotografadas e simp�ticas do estado n�o s� ainda pode ser questionada, como luta pela preserva��o do seu mais conhecido trabalho.
E depois de a reportagem do Estado de Minas denunciar que a est�tua do Juquinha, um dos s�mbolos da Serra do Cip�, est� em processo acelerado de deteriora��o e sendo alvo de v�ndalos, a artista pl�stica que eternizou o sorriso do ermit�o das montanhas conta mais sobre a hist�ria do personagem da sua inf�ncia e do prazer que sente por a imagem ser t�o querida.
Com uma t�pica e hospitaleira mesa de caf�, repleta de bolos, frutas, bolachas e outros quitutes, Virg�nia Ferreira abriu sua casa e ateli� no Bairro S�o Luiz, na Pampulha, na capital mineira, para lembrar de fatos, lendas e clamar pela a salva��o do Juquinha da Serra do Cip�.
Como foi esculpir o Juquinha?
Morei um ano na Serra do Cip�. Na maior simplicidade, tentando viver realmente como ele vivia. Totalmente integrada naquela natureza maravilhosa e silenciosa. Rodeada de p�ssaros. Tomava banho na �gua do rio. Morava em uma casinha simples de fog�o de lenha e com uma parte at� tombando. Achei essa casinha pedindo l� na fazenda Alto Pal�cio (em Santana do Riacho) Convivendo com cobras e lagartixas que eram os animais que mais se via por l�.
Fizeram para mim um ateli� de palha, porque em Morro do Pilar tem uma tradi��o de utiliza��o da palha de um coqueiro (para construir) e muita gente faz casas l� com essa cobertura. Me mandaram dois caminh�es de argila l� do Bairro Barro Vermelho de Concei��o do Mato Dentro. Fiz a maquete e com a argila ampliei a maquete. A estrutura era de madeira que preenchi com a argila pela t�cnica de escultura italiana. Fizemos 26 f�rmas.
Depois veio a fundi��o, que resultou em 26 partes de cimento e a arma��o interna de a�o. Tive a ajuda de 40 pessoas: pedreiros, cozinheiros volunt�rios e o padre Marcelo, que hoje � bispo. Trabalhava cedinho e terminava �s 21h. A parte da argila tinha de ser acelerada para n�o trincar. No total foi um ano de trabalho que terminei em 1987.
Qual a situa��o da est�tua do Juquinha hoje?
O Juquinha est� realmente deteriorado. S�o 20 anos desde a �ltima reforma. Ele est� deteriorando muito. Mas ainda est� em tempo de ser restaurado. Porque a restaura��o n�o faz milagres. N�o faz milagres. As igrejas est�o sempre sendo restauradas, os monumentos tamb�m precisam desse cuidado. Precisa de trabalhos de preven��o e manuten��o.
No caso do Juquinha, seria necess�rio esse cuidado a cada cinco anos, porque ele � muito exposto �s intemp�ries. Ele est� em uma �rea de muita varia��o de temperatura. Ao mesmo tempo que tem neblina, vem o sol, passa um pouco est� chovendo, vem neblina de novo, muito vento e isso tudo promove a degrada��o da est�tua. Umidade, temperatura. Isso promove dilata��es que agridem o cimento e a ferragem.
J� foram feitas duas restaura��es nele. Uma eu banquei do meu bolso. A �ltima ocorreu h� 20 anos com verba da Cemig por meio do prefeito Jos� Fernando, de Concei��o do Mato Dentro. A pele dele, que � a primeira camada de cimento, j� est� sendo atingida. E � o mais importante por ser o que o p�blico v�. Os detalhes e a express�o. � a mais dif�cil de restaurar, por ser fr�gil e n�o aceitar muitas emendas.
Quem era o Juquinha para voc�?
O Juquinha, para mim, � a lembran�a da minha inf�ncia, de quando eu passava f�rias na casa dos meus av�s, em Concei��o do Mato Dentro. Ele sempre andando pelas montanhas, �s vezes na beira da estrada. Pedia ajuda, pedia f�sforo, pedia p�o e o que se tinha se dava para ele e o que ele tinha ele dava de volta, geralmente buqu�s silvestres que ele mesmo fazia. �s vezes, a gente n�o queria as flores, mas ele jogava dentro do carro um ma�o de sempre-vivas em agradecimento.
"O Juquinha, para mim, � a lembran�a da minha inf�ncia, de quando
eu passava f�rias na casa dos meus av�s, em Concei��o do Mato Dentro"
Como era o Juquinha?
Ele era um velhinho pequenininho, muito pitoresco e generoso. Era uma pessoa de tra�os fortes e marcantes, como o seu irm�o. E isso de certa forma ajuda o escultor. Sempre usava uma capanga para guardar as coisinhas que ele guardava, como p�o, f�sforos e flores. Vestia um palet� que ganhava das pessoas por causa do frio da regi�o onde ele viu, mas era uma localidade com grande varia��o de temperatura.
Tinha tamb�m um sapato todo furado porque a regi�o � de muita pedra. Ele vivia de ganhar o que a miseric�rdia dos outros lhe dava. Ele era literalmente um ser da montanha. Eu escutava que ele dormia debaixo da Lapa. Uma pedra que tinha l� na beira da estrada. S� passavam tr�s, quatro carros por dia nessa estrada, um deserto aquilo l�.
O Juquinha tamb�m pegava muita carona no �nibus de viagem. Me lembro de ter visto ele sentado na poltrona do �nibus comendo uma laranja inteira descascada com a unha e uma banana inteira. Conheci o quartinho dele em uma casa atr�s da montanha. Era uma casinha bem baixinha, de telhado baixinho mesmo, muito pequenininha. E o quartinho dele era pouco maior que a cama. Tudo era arredondado, paredes piso, porque era feito com o barro de l�, moldado pelas m�os.
Voc� se lembra de casos do Juquinha?
Minha m�e falava: “se voc� estiver gr�vida, n�o olhe para o Juquinha ou seu nen�m vai nascer parecendo com ele (risos). Quando eu o via chegando nas ruas em Concei��o (do Mato Dentro), era uma meninada grande atr�s dele com pau, correndo atr�s dele, puxando a roupa dele, falando que iam namorar com a sobrinha dele e ele ficava uma fera, porque ele gostava demais dessa sobrinha.
Virg�nia conta que o ermit�o foi esculpido por encomenda
de Cl�rio Lima, ent�o prefeito de Morro do Pilar (foto: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A.PRESS)
O povo fechava a janela, fechava a porta: ‘o Juquinha est� chegando!’. Uma vez, entrou uma mulher muito bonita no �nibus de viagem. Tinha um decote cavado, saia curt�ssima, salto alto, brinc�es nas orelhas. A� o chofer do �nibus perguntou para o Juquinha: ‘o que voc� acha de mais bonito nessa mo�a?’. A� ele olhou, olhou, olhou e disse que eram os brinquinhos… os brinquinhos (risos).
Um outro casinho que eu j� escutei dele � de uma amiga minha de Dom Joaquim. Eles estavam comendo um prato bem saboroso que o Juquinha gostou muito. Da� perguntaram para ele: “Juquinha, se puder, depois passa l� em casa para comer conosco’. Da� ele respondeu: ‘eu vou mesmo, porque eu gostei muito desse conosco que voc�s est�o comendo’ (risos). E o caso de ele ter morrido duas vezes � verdade mesmo. Tem gente que diz que ele viveu e morreu sem vezes. Mas duas eu j� ouvi mesmo, da cunhada dele. Ela disse que ele deitou e morreu. Da� quando j� estavam se preparando para enterrar, ele abre os olhos. Mas dois dias depois ele deitou de novo e a� morreu mesmo, e enterraram ele. N�o sei onde. Tenho in�meros casos e j� pensei at� que pode ser uma ideia escrever um livro sobre a hist�ria dele.
H� muitas hist�rias que s�o lendas do Juquinha. Voc� se lembra de algumas?
Diziam que ele mamava na loba. Sempre isso era falado. ‘O Juquinha s� viveu porque passou uma loba l� e deu de mamar para ele’. Diziam, tamb�m, que ele comia de tudo o que existia na montanha: cobras, escorpi�es, aranhas e lagartixas e tudo mais que tinha por l�.
De onde veio a ideia de esculpir o Juquinha?
Estava instalando um painel de azulejos no Centro de Concei��o do Mato Dentro por encomenda de um prefeito. Ent�o um amigo, chamado Teiado, que tocava em Concei��o, me apresentou outro prefeito, o Cl�rio Lima (ent�o prefeito de Morro do Pilar).
Tinha acabado de me formar em Belas Artes, tinha um filho pequeno, estava separada, sem um tost�o no bolso, logo aceitei a encomenda de uma escultura. Primeiro, sugeri uma coisa minha, autoral, mas ele pediu para fazer uma em homenagem ao Juquinha que tinha morrido tr�s anos antes. Falei ent�o: ‘vamos!’. Fiquei procurando onde fazer.
O local onde est� hoje foi justamente onde eu queria. Ali, no Alto Pal�cio, consegui ter a escultura, o horizonte infinito, a natureza onde o Juquinha viveu, tornando o trabalho completo e integrado. Por ser no ch�o, pode ter a participa��o popular para quem quiser chegar perto dele poder abra��-lo, passar a m�o, tocar. Para as pessoas sentirem o calor humano.
Como seria a restaura��o do Juquinha?
J� tenho um projeto aprovado em dezembro de 2022 na Lei de Incentivo � Cultura Federal. Esse projeto prev� trabalho de dois meses de restaura��o do Juquinha por meio de ren�ncia fiscal e patroc�nio. J� tenho um parceiro que se comprometeu em dar 20%. Estou procurando os demais. Minha ideia � reunir umas 15 pessoas. Vai ser necess�rio uma tenda e ela vai ficar aberta para que o p�blico possa ver o trabalho e aprender tamb�m. As partes perdidas ser�o remodeladas e fundidas na est�tua, que receber� limpeza e banho de fungicida.
Voc� ainda pinta ou esculpe o Juquinha?
Eu ainda fa�o uma reprodu��o pequena da maquete. Fa�o umas 15 pe�as por ano. Pela movimenta��o da forma, da posi��o dele sentado, a reprodu��o n�o � t�o simples. A forma n�o � f�cil, estraga muito. � trabalhoso e caro.
Conte um pouco da sua trajet�ria art�stica.
Antes eu fazia f�sica, mas um professor italiano me aconselhou a fazer belas artes. No in�cio tudo come�ou a dar certo, apesar de na minha fam�lia ningu�m ter veia art�stica. Descobri um talento que � um presente de Deus para isso. Descobri que tinha talento para trabalhos realistas e minha primeira obra foi um gosto do Milton Nascimento, que na �poca fazia sucesso com a m�sica Cora��o de Estudante.
Fui indicada para fazer o busto do doutor Cl�vis Salgado no Pal�cio das Artes. Depois foi um crescente de obras e restaura��es. Minhas obras-primas foram o Juquinha e uma escultura de nove metros chamada “Mater”, que est� no �guas do Treme. Gosto muito tamb�m de uma escultura de bronze, que ainda tenho, que se chama “M�e e filho”, que fiz logo que meu filho nasceu. Na pintura tenho uma tend�ncia para o Impressionismo. Na escultura a minha tend�ncia � para o Expressionismo. V�rios trabalhos tamb�m lembram o Cubismo.