
Eles j� foram os senhores da terra, em um tempo no qual limites eram dados apenas pelo alcance de seus m�sculos, no m�ximo pelos dom�nios de outros povos. Por gera��es, seus descendentes cresceram nas barrancas de um rio caudaloso – a que os brancos chamariam depois S�o Francisco – onde aprimoraram a habilidade que batizou sua gente: xakriab�s, ou os “bons de remo”. Hoje, mais de tr�s s�culos depois do primeiro contato com os colonizadores no Norte de Minas, integrantes da etnia est�o apartados da abund�ncia h�drica, arrancados de suas ra�zes, lutando para sobreviver e para reaver um pouco de seus dom�nios e cultura. Os antigos canoeiros hoje remam na aridez, sofrem com a falta d’�gua na regi�o que lhes foi destinada a custo e padecem para preservar suas terras e tradi��es.
Bons de remo”: esse � o significado do nome xakriab� na l�ngua local. Mas quem pretende conhecer a reserva onde mais de 8 mil ind�genas vivem atualmente em S�o Jo�o das Miss�es, no Norte de Minas, apenas com essa refer�ncia, se surpreender� com a paisagem que circunda as 37 aldeias do territ�rio. A equipe do Estado de Minas partiu de Janu�ria, �s margens do Rio S�o Francisco, e percorreu cerca de 80 quil�metros at� chegar �s terras dos xakriab�s, em um caminho em que � imposs�vel n�o perceber a transforma��o do cen�rio – desde o verde e irrigado das proximidades do leito � aridez de um Cerrado onde predominam as cores marrom-acinzentadas da poeira nas estradas de terra, que cortam cursos d’�gua secos e �s margens das quais sobrevivem �rvores retorcidas.
Mesmo acostumado com as caracter�sticas do Norte de Minas, o povo xakriab� sofre com o aumento das temperaturas e o desmatamento, que tornaram a secura mais cr�tica na regi�o nas �ltimas d�cadas. As alternativas para tentar driblar a escassez envolvem cisternas para armazenar a �gua das chuvas, po�os artesianos e, no limite, caminh�es-pipa abastecidos em cidades vizinhas. Em setembro, m�s que se espera derradeiro do per�odo de secas, a situa��o � t�o grave que at� mesmo o motorista do caminh�o que abastece as aldeias vive com recursos racionados dentro de casa.
O caminhoneiro Ant�nio Nunes Barbosa, ele mesmo de origem xakriab�, disse � reportagem antes da jornada de quase 50 quil�metros terra ind�gena adentro, para levar �gua � Aldeia Vargens. “� raro ter �gua dentro de casa. O pessoal est� usando as bombas (dos po�os artesianos) durante o dia e n�o liga mais � noite e estamos h� mais de um m�s assim. A sorte � que temos um reservat�rio grande, de 16 mil litros, mas agora at� isso j� est� acabando. E � de l� a �gua que usamos para tudo: para cozinhar, beber, cuidar das duas crian�as pequenas em casa, sustentar umas galinhas, uns porquinhos”, contou. Ant�nio acrescentou ainda que a �gua que vem dos po�os tem grande quantidade de calc�rio, abundante na regi�o, e que o consumo n�o tratado causa problemas renais recorrentes entre moradores.

� como uma ironia, n�o �? Os 'bons de remo' morrendo afogados em lagoas que n�o davam um metro e meio de altura. Isso tudo � fruto da viol�ncia contra o povo
Nei Leite Xakriab�, artista que vive na reserva
Seca apaga tra�os e identidade
“Tem um tempinho atr�s, uns quatro, cinco anos, que morreram umas tr�s crian�as afogadas em lagoas. Lagoas pequenas, dessas feitas para segurar �gua da chuva. As crian�as iam tomar banho e acabaram se afogando. � como uma ironia, n�o �? Os ‘bons de remo’ morrendo afogados em lagoas que n�o davam um metro e meio de altura. Isso tudo � fruto da viol�ncia contra o povo.” O relato do artista Nei Leite Xakriab�, mestre pelo Programa de P�s-gradua��o em Artes da Escola de Belas Artes (EBA-UFMG) e morador da Aldeia Barreiro Preto, na Terra Ind�gena Xakriab�, exp�e o distanciamento das novas gera��es com a cultura origin�ria da etnia.
A fala do ceramista e professor que se dedica � perpetua��o de valores tradicionais dos xakriab�s indica que, para al�m da falta de recursos h�dricos, o afastamento do povo que carrega em seu nome a liga��o embrion�ria com o rio representa uma viol�ncia cultural. Hoje, h� gera��es de ind�genas que n�o conseguem manter um tra�o identit�rio fundamental como o contato com cursos d’�gua.
Origin�rios do Cerrado, os xakriab�s est�o habituados a um regime de secas e chuvas, mas o aumento das temperaturas e do desmatamento destruiu nascentes e fez desaparecer cursos d’�gua antes perenes dentro da reserva. A reportagem percorreu cerca de 400 quil�metros dentro da Terra Ind�gena Xakriab� em meados de setembro e registrou a situa��o vivida por milhares de pessoas que j� n�o sabiam o que era chuva havia mais de cinco meses.
Em entrevista ao EM, o prefeito de S�o Jo�o das Miss�es, Jair Cavalcante (Republicanos), apontou a disponibilidade h�drica como um dos desafios centrais de sua gest�o. Ele afirma que as alternativas atuais se limitam ao uso de cisternas para conten��o de �guas da chuva, instala��o de po�os artesianos e circula��o de caminh�es-pipa dentro da terra ind�gena, como forma de enfrentar o processo de estiagem vivido h� d�cadas na regi�o.
“T�nhamos riachos que corriam o ano todo e j� n�o correm mais. Lagoas que, �s vezes, tinham �gua o ano todo, hoje j� n�o t�m mais. A diminui��o desses rios e dessas nascentes dentro da reserva fez com que muita gente partisse para a solu��o do po�o artesiano. Por�m, como a comunidade � muito grande, o investimento n�o foi feito como deveria. Acho que o ideal � ter um po�o para cada comunidade, s� que hoje a gente tem um po�o que �s vezes atende 10, 15 cmunidades”, afirmou.

Do avan�o das bandeiras � chacina de l�deres
Origin�rios do Norte de Minas, os xakriab�s s�o um dos povos ind�genas que h� mais tempo mant�m contato com culturas distintas. A rela��o marcada por viol�ncia e supress�o de direitos explica a localiza��o atual das terras demarcadas para o grupo e at� mesmo os tra�os f�sicos dos que hoje se identificam como pertencentes � cultura que j� habitava a regi�o compreendida entre os rios S�o Francisco, Perua�u e Itacarambi, bem antes da chegada dos colonizadores.
As primeiras documenta��es de contato entre os xakriab�s e descendentes de europeus datam do fim do s�culo 17. Naquele per�odo, ficou marcada a figura do bandeirante paulista Matias Cardoso, que liderou a expans�o de colonos pelas margens do Rio S�o Francisco, terras mais f�rteis e favor�veis para o uso na agropecu�ria. Come�a ent�o um processo longo e de efeito, at� aqui, permanente, de expuls�o dos ind�genas do leito do principal manancial da regi�o.
Doutor em Hist�ria e professor da Faculdade de Educa��o da UFMG, Pablo Lima explica que, apesar do hist�rico de s�culos de usurpa��o das terras no leito do S�o Francisco, o rio segue como elemento identit�rio importante para a cultura xakriab�. O pesquisador, que atua no curso de Forma��o Intercultural para Educadores Ind�genas, tra�a um breve panorama do hist�rico de disputa pela terra na regi�o.
“A coloniza��o portuguesa do vale do Rio S�o Francisco, desde a foz, na atual divisa de Sergipe com Alagoas, at� suas nascentes na Serra da Canastra, em Minas Gerais, nos s�culos 17 e 18, teve um grande impacto sobre os povos ind�genas que habitavam aquele territ�rio havia mil�nios, entre eles os xakriab�. Com a ocupa��o por colonos brancos e negros escravizados das margens do S�o Francisco, importante rota fluvial de comunica��o e transporte por milhares de l�guas, os povos ind�genas enfrentaram invas�es de suas terras e muita viol�ncia. Mas, mesmo assim, nunca se afastaram completamente do rio, que continua sendo uma entidade vital para os xakriab�s”, explica.
A alta concentra��o de xakriab�s em S�o Jo�o das Miss�es, uma cidade n�o banhada pelo S�o Francisco, � fruto do movimento de afastamento dos ind�genas do principal curso d’�gua da regi�o. A pr�pria hist�ria da Terra Ind�gena Xakriab�, demarcada em 1987, data de eventos que marcaram a rela��o entre brancos e povos origin�rios, mais de dois s�culos antes da retomada legal de parte dos direitos dos ind�genas por seu territ�rio.
A “doa��o” recebida da Coroa Portuguesa
O atual territ�rio demarcado em S�o Jo�o das Miss�es, al�m de estar cerca de 40 quil�metros distante do Rio S�o Francisco, � cerca de dois ter�os menor do que o reivindicado pelos xakriab�s. A origem da demanda por mais terra remonta ao ano de 1728, quando a Coroa Portuguesa lhes “doou” um terreno delimitado pelos rios Itacarambi, Perua�u e S�o Francisco, pela Serra Geral e Boa Vista.
A destina��o ocorreu ap�s a participa��o dos xakriab�s, ao lado do Estado, em um conflito contra os caiap�s, povo apontado como um risco para a ocupa��o portuguesa na regi�o. Em troca do apoio, a terra foi formalmente “doada” ao povo xakriab�. Mas o ato protocolar n�o significou uma desacelera��o na fome dos posseiros, que seguiram tomando conta das terras f�rteis da regi�o. Depois de press�es dos ind�genas, a doa��o foi registrada em cart�rio em Ouro Preto, ent�o capital de Minas Gerais, em 1856. Mas nem assim houve resultado quanto � ocupa��o das terras por quem as tinha por direito hist�rico e, a partir de ent�o, cartorial.
A mobiliza��o dos xakriab�s no s�culo 20 prosseguiu no sentido de assegurar o direito a uma ocupa��o segura de seu territ�rio tradicional. Em 1979 houve um dos principais avan�os neste sentido, com a demarca��o da Terra Ind�gena Xakriab� pela Funda��o Nacional dos Povos Ind�genas (Funai). No entanto, a homologa��o do local e a retirada dos posseiros s� se deram definitivamente em 1987, meses ap�s chacina executada por capangas armados de um fazendeiro da regi�o, que vitimou tr�s lideran�as ind�genas, entre elas Rosalino Gomes pai do atual cacique Domingos, e do ex-prefeito de S�o Jo�o das Miss�es, Jos� Nunes de Oliveira (PT).

Uma cidade que conta uma
parte sombria da hist�ria
� primeira vista, S�o Jo�o das Miss�es � uma cidade como outras centenas incrustadas no calor do Cerrado norte-mineiro. Mas trata-se de uma localidade que re�ne especificidades que ajudam a contar, em um pequeno espa�o de terra, longos cap�tulos da hist�ria brasileira. A come�ar pelo fato de manter, mesmo ap�s a di�spora para os centros urbanos do pa�s, a maior parte de seus habitantes na zona rural. � l� onde est� outra caracter�stica peculiar do munic�pio: os povos ind�genas, antes a totalidade da popula��o do que veio a ser o Brasil e hoje apenas uma parcela residual dos 214 milh�es de pessoas que vivem no pa�s, representam cerca de 80% dos habitantes missionenses, o maior percentual do Sudeste e muito acima do segundo lugar.
Habitantes origin�rios do atual territ�rio brasileiro, os ind�genas representam hoje apenas 0,83% da popula��o total do pa�s, ou cerca de 1,7 milh�o de pessoas. Os dados foram divulgados em agosto deste ano a partir do Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE). A mesma pesquisa mostra que, em S�o Jo�o das Miss�es, a realidade dos xakriab�s � diferente, sendo ampla maioria dos habitantes da cidade – 10,3 mil dos 13,8 mil moradores do munic�pio. Essa concentra��o retrata s�culos de hist�ria do contato dos ind�genas com outros povos, marcada por viol�ncias refletidas na seca, e confere aos xakriab�s predom�nio na organiza��o pol�tica do munic�pio.
Dos 10.398 ind�genas de S�o Jo�o das Miss�es, 8.796 vivem dentro do per�metro da Terra Ind�gena Xakriab�, situada nos limites do munic�pio. A cidade � l�der disparada no percentual de ind�genas em rela��o � popula��o total, representando 79,84%. Na segunda posi��o da lista est� Santa Helena de Minas, no Vale do Mucuri, onde 20,87% da popula��o se identifica como povo origin�rio do pa�s.
Por ter 80% da popula��o ind�gena, temos tamb�m um potencial muito grande na �rea dos produtos naturais e tamb�m no turismo
Jair Cavalcante, prefeito de S�o Jo�o das Miss�es
Uma nova aposta na
terra e nas tradi��es
Em entrevista ao Estado de Minas, o prefeito de S�o Jo�o das Miss�es, Jair Cavalcante (Republicanos), disse sobre o potencial que enxerga na cidade apesar dos indicadores de pobreza. O �ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) do munic�pio � de 0,529, o menor entre os 853 de Minas Gerais. Mas o mandat�rio, de origem xakriab�, confia nas tradi��es do povo ind�gena como fonte de riqueza cultural e material para melhorar a situa��o na cidade.
“Havia um discurso, h� um tempo atr�s, que falava que Miss�es tinha o pior IDH, que era a cidade mais pobre. Na verdade, S�o Jo�o das Miss�es n�o � pobre, mas � uma cidade que precisa de lapida��es. N�s temos muitos recursos naturais dentro da pr�pria comunidade ind�gena, e precisamos trabalhar esses produtos, fazer com que eles circulem na nossa regi�o. Temos a cagaita, o maracuj� do mato, o umbu, muitas frutas que poderiam gerar recursos na regi�o. Por ter 80% da popula��o ind�gena, temos tamb�m um potencial muito grande na �rea dos produtos naturais e tamb�m no turismo”, enumera.
Para Cavalcante, � importante que a cidade passe a gerar alternativas para movimentar a economia. Ele aponta a falta d’�gua como um complicador para o desenvolvimento agr�cola e cita dificuldades na cria��o de empregos com carteira assinada. Parte significativa do dinheiro que circula na cidade vem de a��es governamentais como o Bolsa Fam�lia. De acordo com o Cad�nico do governo federal, em setembro moradores da cidade receberam cerca de R$ 1,9 milh�o a partir do programa, que beneficia quase 8 mil habitantes, mais de 60% da popula��o local.