(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas HIST�RIA

'A masculinidade � o inimigo, n�o os homens. Eu moro com um', diz historiadora de Cambridge

Historiadora brit�nica Mary Beard fala sobre o que realmente temos em comum com os antigos romanos e gregos e qual � o primeiro exemplo documentado de um homem dizendo para uma mulher se calar, quase 3 mil anos atr�s


21/11/2020 13:35 - atualizado 21/11/2020 17:25

A historiadora britânica Mary Beard é muito popular na Europa
A historiadora brit�nica Mary Beard � muito popular na Europa (foto: Getty Images)

A historiadora brit�nica Mary Beard (nascida em Shropshire, em 1955) � uma mulher multifacetada: especialista em Roma antiga, professora da Universidade de Cambridge, feminista, autora de pelo menos 18 livros e apresentadora da s�rie documentais da BBC sobre o Mundo Antigo.

Apesar de ser, talvez, a historiadora mais popular do Reino Unido, e de ter recebido todo tipo de pr�mios e condecora��es, ela � ao mesmo tempo uma mulher acess�vel e simp�tica. Ela estava atrasada para esta entrevista para a BBC Mundo (servi�o em espanhol da BBC) pelo Zoom e decidiu compensar cedendo um pouco mais de seu precioso tempo.

Na entrevista, Beard fala sobre alguns de seus t�picos favoritos — desde o que todos n�s temos a ver com os antigos gregos e romanos at� qual foi e � o papel p�blico das mulheres.

A seguir, veja os principais trechos da entrevista:

BBC Mundo - Como voc� se tornou uma acad�mica especializado no mundo cl�ssico?

Mary Beard - A resposta a isso eu acho muito chata...

BBC Mundo - Claro que n�o. Voc� n�o � nada chata.

Beard - Fui para uma escola muito tradicional e antiquada, onde aprend�amos latim e grego, e era muito boa nisso. E quando voc� tem 12 ou 13 anos voc� gosta de coisas nas quais voc� � muito bom. Meu interesse por coisas antigas v�m de t�o cedo quanto consigo me recordar, mas me lembro especialmente de quanto eu tinha cinco anos.


A historiadora fez uma visita reveladora ao Museu Britânico de Londres quando tinha cinco anos
A historiadora fez uma visita reveladora ao Museu Brit�nico de Londres quando tinha cinco anos (foto: Getty Images)

Mor�vamos no interior, a centenas de quil�metros de Londres, e minha m�e achou que precis�vamos ir para Londres. Fomos ao Museu Brit�nico, que era ent�o muito antiquado.

Isso foi h� 60 anos e todas as vitrines eram muito altas e muito dif�ceis de serem vistas pelas crian�as. Est�vamos olhando para coisas eg�pcias — n�o m�mias, coisas da vida eg�pcia di�ria de milhares de anos atr�s.

Atr�s de uma das caixas, minha m�e viu um peda�o de bolo ou p�o eg�pcio carbonizado de 4.000 anos. E eu queria muito ver, imagina, um bolo t�o velho! Mas eu n�o conseguia. Minha m�e tentou me levantar, mas ela carregava muitas bolsas.

Ent�o um homem veio e perguntou se eu queria ver algo. E eu disse que sim, queria ver aquele peda�o de bolo ali atr�s. Ele pegou as chaves, abriu a vitrine e tirou o bolo. E foi incr�vel para mim.

E isso sempre me fez pensar que n�o s� o mundo antigo � incr�vel, mas que sobrevivem coisas que voc� nunca teria imaginado. E tamb�m que existem pessoas que podem te ajudar a entend�-lo. Foi muito emocionante.


Odisseu demorou 10 anos para voltar para casa após a vitória na Guerra de Tróia
Odisseu demorou 10 anos para voltar para casa ap�s a vit�ria na Guerra de Tr�ia (foto: Getty Images)

BBC Mundo - Por v�rios anos, voc� foi a �nica professora mulher em Cambridge.Em algum momento temeu que isso n�o fosse para voc�?

Beard - N�o. Eu entendo que muitas pessoas podem recuar. Mas tenho um grande esp�rito de contradi��o.

A ideia de que eu era a �nica mulher pode parecer incr�vel hoje. Mas na �poca n�o parecia t�o estranho. Quer dizer, voc� sabia que tinha que lutar e que tinha algo pelo que lutar, mas tamb�m que havia pessoas que estavam do seu lado.

Alguns dos meus colegas homens me apoiaram muito, e acho que tive sorte porque eles queriam mais mulheres. Eles eram muito ruins em encontr�-las, mas queriam ajudar.

Dito isso, tenho certeza de que alguns n�o queriam.

Lembro-me de quando estava fazendo meu doutorado, encontrando homens que diziam que havia mulheres demais em Cambridge. Muitas mulheres! Senti que estava sozinha, mas tamb�m senti que muitas pessoas me encorajaram.

E tive muita sorte porque sei que isso n�o acontece com todo mundo.

BBC Mundo - Para quem est� na Am�rica Latina, os gregos e romanos antigos podem parecer muito distantes. Em que sentido tudo isso tamb�m se relaciona com eles?

Beard - De v�rias maneiras. Acho que � realmente algo internacional. � verdade que os romanos vieram para o Reino Unido, mas n�o � por isso que os estudo, nem � o que me estimula. Nem para pessoas na Am�rica do Norte ou Austr�lia.

Acho que � porque, surpreendentemente, � um tema muito democr�tico, � algo que todos podemos compartilhar ou sobre o qual todos temos perspectivas diferentes. Existem maneiras de isso ser uma heran�a para todos, n�o apenas para aqueles que vivem no que um dia foi o Imp�rio Romano.

Em termos de uma linguagem global e dos debates pol�ticos que todos n�s compartilhamos agora, estudar o Mundo Antigo ensina a voc� as origens desses debates. Ensina por que as ideias de liberdade, democracia ou ditadura sempre foram controversas e como foram debatidas.

Onde quer que estejamos neste mundo, at� certo ponto herdamos as ferramentas que os gregos e romanos inventaram para falar sobre essas coisas.


Mary Beard escreveu um livro e apresentou uma série da BBC sobre a antiga cidade de Pompeia
Mary Beard escreveu um livro e apresentou uma s�rie da BBC sobre a antiga cidade de Pompeia (foto: PA Media)

N�o quero dar a impress�o de que toda a cultura mundial remonta aos gregos e romanos, porque n�o � assim, felizmente existem muitas fontes de cultura mundial.

Mas a cultura cl�ssica greco-romana � uma fonte importante. � muito dif�cil come�ar a entender a longa hist�ria do imperialismo no mundo sem estudar tanto o Imp�rio Romano quanto o da China.

Seria terr�vel se pens�ssemos que esta heran�a da Gr�cia e de Roma � a �nica coisa que nos fez o que somos, porque absolutamente n�o �. As religi�es tamb�m desempenham um grande papel em por que o mundo � do jeito que �. Mas abre um sentido muito importante de onde vem uma linha fundamental da cultura mundial.

N�o acho que estudo a Roma e a Gr�cia antigas porque quero ser como os antigos gregos ou romanos. Claro que n�o, nem acho que eles tenham as respostas, nem quero admir�-los particularmente. N�o os admiro, eram horr�veis!

BBC Mundo - Seu livro "Mulheres e poder: um manifesto" explica que nem tudo que herdamos deles, nossas tradi��es e costumes que remontam a eles, s�o necessariamente algo de que devemos nos orgulhar. Explica, por exemplo, como a dificuldade que n�s mulheres temos em ser levadas a s�rio quando falamos em p�blico pode ser rastreada at� esta Idade Cl�ssica. E d� um exemplo muito not�vel do "primeiro exemplo documentado na tradi��o da literatura ocidental de um homem dizendo a uma mulher para ficar quieta".

Beard - Acontece no in�cio da Odisseia, de Homero. A Odisseia � a hist�ria do retorno de um "her�i", coloco entre aspas, de Odisseu retornando da Guerra de Tr�ia, onde os gregos foram vitoriosos, e ele est� voltando para casa, para sua esposa e fam�lia, e leva 10 anos para voltar de Tr�ia.

Passa 10 anos lutando na guerra e 10 anos voltando da guerra. E parte de sua viagem de volta fica atrasada porque ele se envolve com mulheres que n�o deveria. Mas tamb�m porque existem tempestades e monstros.

Enquanto isso, em casa, sua esposa Pen�lope mant�m o pal�cio, cuida dele, e tamb�m cuida de seu filho Tel�maco. E um dia desce de seu quarto para a �rea p�blica do pal�cio e ouve um bardo cantando can��es tristes sobre como os her�is est�o sofrendo ao voltar de Tr�ia. E ela disse: "Voc� pode cantar uma m�sica mais animada? Isso � um pouco deprimente."

Tel�maco, o filho dela, que � adolescente, ouve-a e diz: "M�e, cale-se. Discurso p�blico � assunto de homem. Volte l� para cima". E ela faz isso.

E Tel�maco � um adolescente bastante ineficaz, enquanto Pen�lope � uma mulher muito inteligente. O que � particularmente impressionante para mim � que parece que na hist�ria da Odisseia esta � a �nica maneira que Tel�maco tem para se tornar um homem, amadurecer de menino para homem.

A �nica maneira de fazer isso � silenciando sua m�e. E isso, eu acho, torna ainda mais assustador para mim. E temos que aprov�-lo, isso � o que significa ser um homem.

BBC Mundo - Voc� menciona duas exce��es em que as mulheres podiam falar em p�blico: quando o faziam como v�timas e quando tinham que defender um assunto de seu interesse. E assim, por s�culos, as quest�es que afetam as mulheres se tornaram quest�es de "nicho". Isso lembra o que diz a autora Caroline Criado P�rez no livro Mulheres invis�veis: que tudo o que diz respeito ao homem � considerado universal, enquanto as quest�es das mulheres s�o apenas isso: quest�es de mulheres.


Penélope espera por Odisseu, rei de Ítaca, por 20 anos
Pen�lope espera por Odisseu, rei de �taca, por 20 anos (foto: Getty Images)

Beard - � assim mesmo. E, claro, voc� tem sentimentos ambivalentes sobre isso, porque voc� olha para as mulheres que defenderam os direitos das mulheres e pensa: bem, fico muito feliz que tenham feito isso, algu�m tem que fazer isso.

Uma parte de mim est� feliz que as mulheres tenham voz para falar em seus pr�prios interesses. Mas tamb�m me faz pensar em como a voz p�blica das mulheres permanece limitada.

Veja, o Reino Unido teve duas primeiras-ministras, mas nunca teve uma ministra das finan�as. Teve brevemente uma ministra da Defesa, mas se voc� olhar para a import�ncia das mulheres no governo nos �ltimos 30 anos, s�o ministras da Cultura, da Educa��o, da Sa�de, coisas de mulheres.

BBC Mundo - Alguma vez voc� j� sentiu que n�o foi levada a s�rio por ser mulher? Pergunto porque voc� parece ter um �timo senso de humor e muitas vezes as mulheres acreditam que para sermos levadas a s�rio temos que ser muito s�rias, sempre ser muito s�rias.

Beard - Certamente agora n�o sinto que n�o sou ouvida, ou n�o � algo que me acontece com frequ�ncia.

De vez em quando, voc� est� em uma entrevista a tr�s, com dois homens, e v� como eles desenvolvem um comportamento de conluio entre eles e � dif�cil argumentar.

Mas seria inaceit�vel eu protestar por n�o ter voz p�blica. Quando eu era muito mais jovem... Olha, tem aquele desenho da Srta. Triggs que coloquei no meu livro (Quase 30 anos atr�s, a cartunista Riana Duncan capturou a atmosfera sexista das salas de reuni�es com um cartoon mostrando um encontro entre cinco homens e uma mulher, a Sra. Triggs, no qual o homem encarregado de liderar a reuni�o diz: "Essa � uma sugest�o excelente, Srta. Triggs. Talvez um dos homens aqui gostaria de faz�-la").

Eu j� passei por essas situa��es quando era uma acad�mica muito jovem. A maioria das mulheres sabe disso.

BBC Mundo - E o que voc� acha da responsabilidade dos homens? �s vezes, pode ser dif�cil n�o sentir raiva. Obviamente, voc� deseja se relacionar com os homens, eles s�o uma parte importante de nossas vidas. Como voc� navega nisso? Como voc� passa de uma experi�ncia pessoal negativa para um pensamento com uma perspectiva mais ampla?

Beard - � complexo. Mas sempre separei fortemente a posi��o pol�tica das pessoas de minha amizade com elas.

Tenho muitos amigos cujas posi��es pol�ticas s�o muito, muito diferentes das minhas. Acho que � uma quest�o do que minha m�e chamava de "odiar o pecado, mas n�o o pecador".


Margaret Thatcher foi primeira-ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990
Margaret Thatcher foi primeira-ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990 (foto: Getty Images)

O que quero combater e eliminar � esse tipo de sexismo e misoginia. N�o estou interessada em trancar o sexista em um quarto e levar a chave comigo. Quero que as pessoas, os homens, vejam — acho que muitos querem — que o mundo � mais gentil e justo, se n�o for sexista. � melhor para todos, n�o apenas para as mulheres.

E eu acho que o padr�o sexista e mis�gino de grande parte da cultura mundial � muito injusto com as mulheres, mas n�o � �timo para meninos e homens tamb�m.

A masculinidade t�xica n�o � algo agrad�vel de se ter. Mesmo agora voc� pode ir para uma escola prim�ria e ver no quintal uma menina que cai e machuca o joelho e a professora vai e a abra�a, ou ela teria feito isso antes do coronav�rus, e colocaria alguns curativos nela. E a garota chora. Se um menino faz isso, ela diz "n�o, n�o chore, meninos n�o choram."

E este � um exemplo pequeno e trivial. Mas acho que minha posi��o seria que, embora eu v� lutar contra qualquer misoginia que encontrar, o farei em nome de todos. Acho que a masculinidade � o inimigo, n�o os homens. Eu moro com um, pelo amor de Deus!"

BBC Mundo - Vou te contar uma charada. Pai e filho sofrem um acidente enquanto dirigem...

Beard - Eu j� sei conhe�o (e d� risada)..

BBC Mundo - (A charada � a seguinte: Um pai e seu filho viajam sofrem um grave acidente. O pai morre e o filho � levado ao hospital porque precisa de uma complexa opera��o de emerg�ncia, para a qual � chamada a pessoa mais experiente do centro cir�rgico. Mas na sala de cirurgia diz: "N�o posso oper�-lo, � meu filho." Como isso � explicado?]

Beard - Quando me disseram pela primeira vez, demorei muito para encontrar a resposta. E foi muito educativo, porque mostra que mesmo tendo uma boa base te�rica feminista, voc� ainda faz parte de um mundo que discrimina as mulheres e faz diferentes suposi��es sobre elas. E, bem, finalmente encontrei a resposta, mas precisei de ajuda. � uma charada muito boa.

BBC Mundo - Como s�o os preconceitos inconscientes que todos n�s temos?

Beard - Acho que consegui reconhec�-los melhor, mas n�o acho que os superei completamente. Lembro-me de uma vez, h� 15 ou 20 anos, que estava em um avi�o e chegou o momento em que voc�s esperam o piloto dizer boa tarde, senhoras e senhores, vamos voar tantos metros. E o an�ncio come�ou, mas era uma mulher.

E me lembro que, por meio segund, pensei: por que a aeromo�a est� fazendo o an�ncio? Porque n�o associei que a voz da mulher fosse a do comandante. Mas eu lutei por isso! � o que sempre quis que as pessoas pudessem fazer.

BBC Mundo - Voc� conta que a ex-primeira ministra Margaret Thatcher mudou o tom de voz para ficar mais parecido com o de um homem...

Beard - Sim, e � absolutamente fascinante. Se voc� for ao Google e assistir a alguns de seus discursos antigos, ver� isso acontecer diante dos seus pr�prios olhos.

Ela teve aulas de voz porque disseram que ela tinha que baixar o tom para ser levada a s�rio, para ser considerada como algu�m com autoridade. Porque ouvimos autoridade na voz de um homem de uma maneira que n�o ouvimos na voz de uma mulher, especialmente em vozes femininas agudas.

BBC Mundo - Voc� tamb�m usa uma foto em que Hillary Clinton e Angela Merkel s�o vistas vestidas basicamente iguais, em um terno escuro. Mulheres com poder achavam que precisavam parecer mais masculinas para serem levadas a s�rio. Mas isso resolve o problema?


A chanceler alemã, Angela Merkel, e a ex-secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, frequentemente recorrem ao terno
A chanceler alem�, Angela Merkel, e a ex-secret�ria de Estado dos EUA, Hillary Clinton, frequentemente recorrem ao terno (foto: Getty Images)

Beard -N�o, n�o resolve. N�o gostaria de criticar mulheres como Clinton ou Merkel que fazem isso, que adotam modos muito masculinos, porque acho que se �s vezes � a �nica maneira de lidar com isso. Quem sou eu para criticar?

Mas quando voc� come�a a ver e pensar sobre isso, voc� v� algo aqui que n�o � produtivo, porque para ser levada a s�rio, uma mulher tem que parecer mais ou menos homem, ent�o isso implica que a mulher est� sempre em posi��o de fingir, sempre fingindo.

Para algumas pessoas, ter� valido a pena. Tenho certeza de que Thatcher diria que valeu a pena mudar a voz. Mas isso pode resolver o seu problema, mas n�o resolve "o" problema.

Mas ent�o voc� enfrenta algo muito mais dif�cil, voc� tem que mudar a maneira como pensamos sobre o poder. Mas acho que � muito dif�cil saber exatamente o que fazer.

� bom apontar essas coisas, � um pouco como a consci�ncia feminista dos anos 1970. Quando voc� come�a a ver isso, voc� est� mais sintonizada. Voc� provavelmente est� mais apta a resolver o problema.

Mas certamente n�o tenho uma lista de coisas que podemos fazer para melhorar as coisas. E isso de certa forma me preocupa. Eu n�o tenho as respostas.

*Esta entrevista � parte do Hay Festival Arequipa, evento de escritores e pensadores que acontece de 28 de outubro a 8 de novembro.


J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)