
Desde o dia em que nasceu, minha filha Bonnie foi julgada pela cor de sua pele.
Depois de ela passar algumas horas na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) ap�s o parto, finalmente eu pude ficar com meu beb� por alguns momentos.
Mas uma mulher enfiou a cabe�a pela porta do quarto do hospital para me perguntar o que eu gostaria de tomar no caf� da manh�. Antes que eu pudesse responder, ela questionou: "Esse � o seu beb�?"
- Massacre que destruiu a 'Wall Street negra' completa 100 anos ainda pouco conhecido
- Como 13 de maio perdeu espa�o com 'redescoberta' da luta negra por aboli��o
Eu imaginei que a pr�xima fala seria um elogio. Algo na linha: "Ele � ador�vel!" ou "As bochechas s�o t�o rechonchudas!"
Em vez disso, a mulher repetiu: "Esse realmente � seu beb�?"
Seu tom era de surpresa, com uma leve consterna��o. O uso da palavra "realmente" me preocupou.
"Ela parece t�o branca. Olhe para o cabelo, � t�o liso. � t�o branco...", continuou a funcion�ria.E foi a� que tudo come�ou: as pessoas que n�o me conheciam se sentiam � vontade para perguntar se eu era a m�e de Bonnie ou para comentar sobre a cor da pele dela.
Aconteceu no local onde eu acabara de dar � luz. Aconteceria novamente mais tarde, enquanto estivesse fazendo compras, sentada em restaurantes ou visitando amigos.
Eu tenho a pele morena. Meu parceiro � branco. Bonnie � mesti�a.
'Ela � muito branca'
Direto da maternidade, enviei fotos de Bonnie para as pessoas que eu amava e algumas responderam com frases de uma linha, sem nenhum entusiasmo.

Uma pessoa me escreveu: "Ela � muito branca."
Outra enviou: "Prefiro a foto que ela parece mais africana."
"Ela est� muito p�lida, n�o �?", perguntou uma terceira.
Teve um contato que sentiu a necessidade de usar caixa alta: "Ela AINDA � branca."
Vale explicar que um beb� pode nascer com a pele um ou dois tons mais clara e isso se modifica com o passar do tempo.
Essas frases me machucaram.
Bonnie e eu passamos cinco dias sozinhas no hospital. O parto aconteceu durante a primeira onda da covid-19 e as visitas n�o eram permitidas. Meu parceiro s� conseguia nos ver atrav�s das chamadas v�deo do WhatsApp, e isso significava que ele tinha muito tempo para pesquisar na internet e se preocupar com os coment�rios das pessoas.
Ser� que elas presumiram que eu n�o era a m�e de Bonnie? Ser� que minha filha teria que explicar quem eu era o tempo todo? Todos sempre pensariam que eu era a bab�?
Eu n�o estava preparada para lidar com isso.
'Por que ela � t�o branca?'
Cinco semanas depois de deixarmos o hospital, at� uma simples caminhada se tornou desagrad�vel. Um homem apareceu gritando agressivamente: "Por que seu beb� � t�o branco?"
Ele nos cercou, muito furioso.
"Por que ela � t�o branca? Voc� arranjou um homem branco? � o que acontece quando voc� fica com um branco! Olhe para ela, olhe para ela, olhe para ela. Por que ela � t�o branca?"
Fiquei chocada, assustada e envergonhada. Eu n�o conseguia entender porque esse homem, que tinha a mesma cor da minha pele, estava se sentindo t�o ofendido.
Na verdade, todos os coment�rios negativos sobre a cor da pele do meu beb� foram feitos por pessoas que possuem a mesma tonalidade da minha pele. Eu n�o entendia. Nunca imaginei que fam�lias mesti�as tivessem que passar por isso.
Meu maior arrependimento foi n�o ter defendido minha fam�lia naquele momento. Nunca disse nada. Afastei-me desse estranho furioso, contendo minhas l�grimas at� chegar � seguran�a de minha pr�pria casa.
Nunca falei sobre o impacto que isso teve em mim, at� conhecer Wendy.
Wendy Lopez tem 60 anos, mora no sul de Londres, no Reino Unido, e tenta n�o levar a vida muito a s�rio.
H� 28 anos, ela teve a Ol�via. Uma amiga chegou a ligar para a maternidade onde Wendy acabara de dar � luz, na Guiana, para verificar se o beb� era negro ou branco.
Wendy ri enquanto conta essa hist�ria. � assim que ela lida com as coisas.
Ol�via tinha cabelos castanhos, mas com "grandes cachos loiros" na frente.

"Era como se ela fosse ao sal�o e algu�m tivesse enrolado seu cabelo", descreve Wendy.
Um m�dico perguntou a Wendy se havia "brancos na fam�lia" e ela explicou que o pai de Ol�via era branco.
Mas o especialista rebateu: "H� brancos em sua fam�lia e � por isso que Olivia � t�o p�lida."
"Eu pensei: 'Por que voc� est� me falando tudo isso?'", lembra Wendy.
"Em todas as consultas voc� fica falando para as outras m�es sobre a cor de pele dos filhos? Aposto que n�o."
'Repudiei minha filha por medo'
Wendy admite que sua m�e n�o aprovava a cor da pele da neta e ocasionalmente se referia a ela como "a garota branca", mas ela sentiu que poderia lidar com isso. Era mais dif�cil quando os coment�rios vinham de estranhos.
Ela se lembra de um incidente que foi particularmente perturbador. Wendy estava com Olivia no carrinho de beb� e iria fazer as compras semanais em Deptford, um distrito no sul de Londres, quando passou por tr�s homens negros parados do lado de fora de um pub.
"Um deles veio at� mim. Ele olhou para Ol�via e perguntou: 'Essa � sua filha?'"
"E eu disse n�o."
"Basicamente, eu repudiei minha filha, mas acho que faria o mesmo de novo."
"N�o me arrependo. Me senti amea�ada. Fiquei com medo. Senti pelo cheiro que aquele homem tinha bebido. Pensei que ele poderia nos espancar", diz Wendy.
"Naquela �poca, n�o parecia bom mulheres negras ficarem com homens brancos."
Hoje em dia, as pessoas tendem a mostrar desaprova��o de outras maneiras. E Wendy n�o fica mais quieta, at� porque Olivia tem um dist�rbio de aprendizagem e n�o consegue se defender.
"Fui tomar a vacina contra a covid-19 h� alguns meses e a enfermeira me perguntou se eu cuidava de Olivia. Quando eu disse que era m�e dela, a profissional perguntou se eu realmente tinha dado � luz", disse Wendy.
"N�o posso deixar as pessoas me falarem esse tipo de coisas."
Ela considera coment�rios como esse um ataque a quem Ol�via �, e que, se sua filha pudesse, "ela estaria dizendo �s pessoas para deix�-la em paz".
"Meu pai � branco e minha m�e � negra, ponto final.", poderia responder a menina, segundo o racioc�nio e as expectativas de minha amiga.
Eu disse a Wendy algo que tem me incomodado por um tempo. Ser� que somos muito sens�veis a esse tipo de coment�rio e n�o dever�amos nos afetar tanto?
"� isso que todo mundo que n�o est� nesta situa��o vai dizer. 'Voc� � muito sens�vel. Vamos l�, n�o foi isso que quiseram te dizer'", diz, apertando as m�os.
Mas, depois de 14 meses, eu estou cansada de ter que confirmar constantemente que esse lindo ser que tenho nos meus bra�os � minha filha.
"Estamos no s�culo 21. Voc� poderia pensar que as pessoas avan�aram um pouco, mas n�o parece", diz Fariba Soetan, que possui um blog sobre a cria��o de filhos mesti�os.
Fariba tem 41 anos e � metade iraniana, metade inglesa. O marido dela � nigeriano e eles t�m tr�s filhas de 6, 8 e 10 anos.

"Fiquei realmente apavorada com os coment�rios que nos fizeram sobre ter tr�s meninas com tons de pele diferentes", diz.
"J� posso antecipar as experi�ncias que minhas filhas ter�o, dependendo de como s�o percebidas na sociedade."
Um incidente no ano passado realmente a incomodou. Fariba estava pegando uma de suas filhas ap�s uma aula no norte de Londres.
"Dei um abra�o nela e uma das garotas da turma disse: 'Essa � sua filha?'"
"Eu disse que sim'. E ela respondeu: 'Voc� ainda a ama, embora ela seja dessa cor?'"
"Minha filha teve que escutar uma frase dessas", lamenta Fariba, tentando n�o chorar.
Mas escrever sobre esse tema no blog ajuda. "Sinto que causo um impacto. N�o estou apenas sofrendo, mas fazendo algo a respeito."
Como m�e de primeira viagem, quero que Fariba me garanta que tudo isso � apenas uma fase e que a curiosidade das pessoas vai passar.
Infelizmente, a realidade n�o � bem essa...
"Muitas vezes, os coment�rios acontecem depois das f�rias, principalmente com a minha filha mais velha, que � a mais morena", responde Fariba.
"S�o frases do tipo: 'Ela � bastante bronzeada' ou 'Ela parece bem morena'. � como se estivessem questionando se eu gostaria que minha filha n�o tivesse esse tom de pele."
"Certamente, parte desses coment�rios a afetou. Ela n�o quer ficar muito escura porque h� sempre algo negativo associado a isso."

Nesse exato momento, Asha, de quem estamos falando, cruza o jardim e vem em nossa dire��o. Ela acabou de voltar da aula de gin�stica e ainda est� cheia de energia. A menina quer me mostrar seus livros favoritos, sobre cabelos cacheados e como ser uma bailarina negra famosa.
"�s vezes eu olho para as pessoas na rua e me pergunto se elas acham que eu e meus pais somos da mesma fam�lia", diz Asha.
Ela ent�o encontrou uma solu��o criativa.
"Eu descrevo minha fam�lia como se fossem sabores de sorvete. Eu sou caramelo. Mam�e � baunilha. Papai � chocolate. Minha irm� mais velha � doce de leite e minha irm�zinha � caf� com leite."
"� melhor pensar neles dessa forma, em vez de dizer que algu�m � mais claro ou muito mais escuro do que eu."
"Quero nos comparar usando coisas deliciosas. Coisas que as pessoas amam, como sorvete. Somos uma fam�lia e n�o devemos ser julgados."
Enquanto Asha sai dan�ando, Fariba me diz que espera que figuras como Meghan Markle e Kamala Harris, a vice-presidente dos Estados Unidos, incentivem as pessoas a reexaminar preconceitos sobre a cor da pele.
"Espero que algo mude. Acho que devemos manter essa esperan�a."
Algumas semanas depois de conhecer Wendy, ela me mandou uma mensagem para seguir com a nossa conversa.
"Espero que tudo corra bem", escreveu. "Esqueci de dizer: seja feliz com sua filha, porque esses anos preciosos v�o passar voando."
Eis um conselho que pretendo seguir pelo resto da minha vida.
J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!
