
Segundo cientistas pol�ticos e historiadores ouvidos pela BBC News Brasil, mesmo ap�s 30 anos do colapso do bloco socialista, o presidente ainda trata as conquistas de seus antepassados como eventos relevantes para a sociedade russa dos dias atuais.
E entre discursos elogiosos ao desempenho da URSS na Segunda Guerra Mundial, inaugura��es de memoriais aos her�is do conflito e diferentes processos de integra��o com ex-rep�blicas sovi�ticas, uma figura controversa e bastante criticada no Ocidente ganhou destaque entre os russos: a do ex-ditador e revolucion�rio comunista, Josef Stalin.
Apesar de ser classificado por muitos como conservador por sua defesa dos valores tradicionais e ser filiado ao partido nacionalista R�ssia Unida, os especialistas afirmam que Putin tem usado o legado de Stalin como propaganda pol�tica para fortalecer seu governo e sustentar suas a��es expansionistas no exterior.
"Stalin foi uma figura importante na hist�ria sovi�tica e, na opini�o de Putin, fez do pa�s uma pot�ncia relevante no cen�rio mundial - e � exatamente isso o que o atual presidente deseja fazer com a R�ssia atual", diz Mohsin Hashim, professor de pol�tica russa da Muhlenberg College, nos Estados Unidos.
A influ�ncia de Stalin vem crescendo de tal forma, que em 2019 o ditador alcan�ou sua melhor avalia��o entre a popula��o russa dos �ltimos 20 anos.
Segundo pesquisa realizada pelo Centro Levada, 51% dos entrevistados veem Stalin positivamente - dentro desse grupo, 41% sentem respeito, 6% simpatia e 4% admira��o pelo comandante.
No entanto, na opini�o dos estudiosos consultados pela reportagem, Putin entende os custos de promover uma figura controversa como Josef Stalin.
Durante os anos em que esteve no controle do Partido Comunista da Uni�o Sovi�tica, entre 1941 e 1953, houve numerosos relatos de crimes de guerra cometidos pelas for�as armadas, al�m de uma dura persegui��o pol�tica. Estima-se que mais de 20 milh�es de pessoas morreram sob seu regime, mas historiadores admitem que a cifra pode ser muito maior.
Por isso mesmo, h� poucos registros do presidente russo elogiando o l�der sovi�tico em p�blico. Na maior parte do tempo, Putin se dedica a usar refer�ncias do per�odo em que Stalin comandava a URSS para falar da grandeza e potencial da R�ssia, mas sem citar o comandante.
Em 2005, o l�der russo deu uma das mais contundentes declara��es nesse sentido, ao afirmar que "o colapso da Uni�o Sovi�tica foi o maior desastre geopol�tico do s�culo 20" durante seu discurso anual no Parlamento.

O Kremlin ainda deu nova vida a alguns s�mbolos hist�ricos sovi�ticos, como o pr�prio hino nacional.
Assim que assumiu a Presid�ncia em 2000, Putin descartou a m�sica que havia sido implementada por Boris Yeltsin na d�cada de 1990 e aprovou uma nova vers�o, que usa a melodia do hino oficial da Uni�o Sovi�tica, mas com uma nova letra.
Putin ainda ecoa com frequ�ncia a ret�rica usada pelo ex-primeiro-ministro em seus discursos. Em diversas ocasi�es, o presidente se refere ao seu pa�s como "a Grande R�ssia" e invoca o patriotismo nacional da popula��o, assim como Stalin fez quando enviou as tropas sovi�ticas para combater o ex�rcito da Alemanha nazista em 1941.
"H� um conceito que era muito utilizado no per�odo sovi�tico e que segue sendo usado atualmente que � o 'Derzhava', ou 'grande poder' em russo'', diz Mohsin Hashim. "Putin usa com frequ�ncia a express�o para falar do futuro da R�ssia como grande pot�ncia mundial, destino que segundo ele s� pode ser concretizado com um Estado forte e centralizado".
De acordo com o especialista, foi a partir dessa ideia que o presidente promoveu nos �ltimos anos uma s�rie de reformas para ampliar seu escopo de poder e estender seu per�odo no cargo.
Propaganda pol�tica
Apesar de sustentar o legado de Stalin principalmente por meio de refer�ncias obl�quas, em alguns momentos pontuais Vladimir Putin chegou a falar diretamente do ex-l�der sovi�tico.
Em uma entrevista concedida em 2017, o presidente russo criticou a "excessiva demoniza��o" de Stalin promovida pelo Ocidente, e afirmou que a estrat�gia era usada "como um meio de atacar a Uni�o Sovi�tica e a R�ssia".
Segundo Putin, seus cr�ticos usam o legado de Stalin "para mostrar que a R�ssia de hoje carrega em si algum tipo de marca de nascen�a do stalinismo".
Antes disso, o l�der defendeu uma avalia��o mais equilibrada sobre o governo do comunista pela opini�o p�blica. Durante uma com jornalistas locais em 2009, Putin disse que n�o era poss�vel classificar Stalin apenas como bom ou mau.
"Se voc� disser que tem uma vis�o positiva [sobre o governo de Stalin], alguns ficar�o descontentes. Se voc� disser que tem uma vis�o negativa, outros resmungar�o", disse. "� imposs�vel fazer um julgamento geral. � evidente que, de 1924 a 1953, o pa�s que Stalin governou passou de uma sociedade agr�ria para uma sociedade industrial."
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil ressaltam, por�m, que apesar de usar o legado de Stalin como propaganda pol�tica, Putin n�o deseja repetir as a��es do ditador ou reviver o formato de governo da URSS.
Segundo Mohsin Hashim, o atual presidente se beneficia muito do modelo de economia aberta e diversificada, e apesar de comandar algumas pol�ticas de repress�o, foge da imagem de ditador.
"Putin n�o � propriamente um stalinista, porque isso significaria recriar um Estado totalit�rio", diz o especialista. " O Kremlin mant�m pol�ticas autorit�rias, mas n�o totalit�rias".
Para Valerie Sperling, especialista em pol�tica russa da Universidade Clark, apesar das in�meras den�ncias sobre viola��o dos direitos de liberdade de express�o e da democracia, as a��es do governo Putin n�o podem ser comparadas com as barbaridades cometidas durante a URSS.
"O atual Estado russo � autorit�rio e persegue cada vez mais qualquer tipo de oposi��o pol�tica, mas ainda est� muito longe de cometer os crimes da era Stalin, quando milh�es de pessoas foram presas em campos de trabalho for�ado e fuziladas por crimes totalmente imagin�rios", afirma.

Limpeza do passado
Segundo Yevgenia Albats, cientista pol�tica russa e editora do jornal The New Times em Moscou, para enaltecer o papel do Estado nas conquistas obtidas pela URSS e legitimar algumas de suas pr�ticas autorit�rias, Putin tamb�m comanda um esfor�o ativo de controle da narrativa hist�rica no pa�s.
Ao longo de seus mais de 20 anos no poder, o presidente por diversas vezes tentou reconstruir alguns dos eventos do passado de forma a adequ�-los ao discurso do Kremlin, de acordo com a jornalista.
"O governo russo promove uma limpeza do passado para apagar grande parte dos crimes e persegui��es que ocorreram durante a Uni�o Sovi�tica e mostrar apenas a parte glamourosa", disse Albats � BBC News Brasil. "At� porque muitos dos pol�ticos que comandam o pa�s atualmente s�o herdeiros da KGB ou se beneficiaram de alguma forma de decis�es tomadas por seus antecessores".
Em 2021, uma das maiores institui��es dedicadas � pesquisa e mem�ria dos crimes de guerra cometidos durante o per�odo sovi�tico foi alvo d
o governo por suas a��es.
A ONG Memorial foi fechada depois que a Suprema Corte acatou a vis�o da Procuradoria de que a entidade estava distorcendo a hist�ria russa para criar "a falsa imagem de que a URSS foi um estado terrorista". Membros e apoiadores da organiza��o classificaram a decis�o como um ato de censura.
Antes disso, opositores e ativistas pela democracia j� denunciavam uma campanha do governo para apagar das salas de aula e livros did�ticos alguns dos maiores crimes cometidos pelo regime de Stalin.
Um manual para professores aprovado para uso nas escolas do pa�s em 2008 descreve Stalin como um "l�der eficiente".
J� o livro did�tico "A Hist�ria da R�ssia, 1900-1945", publicado por uma editora financiada pelo Kremlin e cujo autor � ligado ao partido R�ssia Unida, tenta justificar o envio de milhares de pessoas para os gulags, campos de trabalho for�ado dedicados a abrigar criminosos pol�ticos e "inimigos" do Estado.
Para os especialistas, o revisionismo est� presente tamb�m nos pr�prios discursos de Putin, que por vezes contradiz posi��es adotadas pelo Estado no passado em rela��o � Segunda Guerra e com frequ�ncia comparece a homenagens aos 'her�is' do conflito.

Segundo Peter Rutland, especialista em pol�tica russa e professor da Universidade Wesleyan, ao tentar amenizar a imagem de Stalin e reconstruir a confian�a da popula��o no Estado, o presidente tem como um de seus principais objetivos a reconstru��o do orgulho russo.
Ap�s a dissolu��o da URSS em 1991, o pa�s passou por per�odos dif�ceis, com grande instabilidade pol�tica e uma profunda crise econ�mica. Tudo isso colaborou para a perda da confian�a popular no governo e nas institui��es.
"O governo quer que a popula��o tenha orgulho de ser russa, mas o colapso da URSS cruiou um vazio em parte da sociedade, especialmente nas gera��es mais velhas", diz Rutland. "Ao relembrar com frequ�ncias as conquistas sovi�ticas durante a Segunda Guerra, Putin busca justamente preencher esse vazio com um sentimento nacionalista e patri�tico".
Para al�m das fronteiras russas
Alguns analistas consultados pela BBC News Brasil ainda v�em nas escolhas pol�ticas de Putin tra�os da ambi��o e buscar por expandir a influ�ncia da URSS por novos territ�rios.
Em 2014, a R�ssia sob o comando do presidente anexou a Crimeia ao seu territ�rio e provocou rea��es negativas da comunidade internacional.
Neste ano, a regi�o voltou a ser fruto de preocupa��o depois de den�ncias dos Estados Unidos sobre o envio de mais de 100 mil soldados russos � fronteira com a Ucr�nia.
Putin nega qualquer plano de invadir o pa�s vizinho, mas adota uma ret�rica agressiva ao criticar as negocia��es para a entrada da ex-rep�blica sovi�tica na Otan (Organiza��o do Tratado do Atl�ntico Norte). A tens�o � tamanha que mais de uma d�zia de pa�ses pediram a seus cidad�os que deixem a Ucr�nia, e alguns retiraram funcion�rios diplom�ticos da capital, incluindo os EUA.
Para Peter Rutland, Putin usa o passado sovi�tico e a tomada da Crimeia em 1941 pela Alemanha nazista para justificar a anexa��o da pen�nsula pela R�ssia. "Al�m disso, ele frequentemente retrata alguns atores pol�ticos na Ucr�nia como fascistas, descendentes de colaboradores dos nazistas na Segunda Guerra Mundial", diz o especialista.
"Putin gostaria de reproduzir n�o somente a grandeza da URSS, como tamb�m o que ele chama de 'R�ssia hist�rica', que nada mais � que a R�ssia czarista", afirma Yevgenia Albats. "Ele gostaria que o territ�rio russo inclu�sse tamb�m a Bielor�ssia, a Ucr�nia e talvez at� parte do Cazaquist�o, como no j� incluiu no passado".
"Gosto de dizer que ele � um nacionalista, mas com aspira��es imperialistas".
Por�m, para Christopher Read, historiador e professor da Universidade de Warwick, no Reino Unido, o termo expansionismo n�o se aplica ao contexto atual da R�ssia, e tampouco deve ser usado para se referir ao governo de Stalin durante a Uni�o Sovi�tica.
"Nem Stalin nem Putin s�o expansionistas em sua pol�tica externa. A R�ssia perdeu cerca de um ter�o de seu territ�rio desde 1914, o que n�o seria um bom resultado para uma pot�ncia classificada como 'expansionista'", diz.
Mais pragm�tico, menos conservador
Por sua capacidade de promover o passado sovi�tico russo, ao mesmo tempo em que defende valores religiosos e tradicionais, os especialistas encontram dificuldades em classificar Vladimir Putin em um �nico espectro ideol�gico.
Em seu governo, o presidente ampliou o escopo da Igreja Ortodoxa e passou a defender a ideia de que o cristianismo "� a raiz da identidade russa".
Putin ainda demonstra apoio aos "valores familiares tradicionais", condena o casamento homossexual e alimenta a intoler�ncia e homofobia no pa�s. "O casamento � uma uni�o entre um homem e uma mulher", disse em 2020.
O pr�prio presidente, por�m, j� foi acusado de manter amantes durante o per�odo em que foi casado com a ex-mulher Ludmila Putina, e de tentar esconder os filhos que foram frutos desses relacionamentos extraconjugais.
Para Peter Rutland, h� uma contradi��o nas atitudes do presidente, que apesar de ser filiado ao partido nacionalista e conservador R�ssia Unida, dedica-se a exaltar o passado sovi�tico - e comunista - da R�ssia.
"H� uma grande contradi��o nas a��es de Putin, mas a verdade � que o Stalin que Putin descreve n�o corresponde ao Stalin real - ent�o Putin pode se safar retratando um revolucion�rio radical como um conservador", diz o professor da Universidade Wesleyan.
Segundo Mohsin Hashim, da Muhlenberg College, Putin n�o tem uma ideologia pr�pria de governo. "Ele � acima de tudo pragm�tico", resume.
"Putin n�o � conservador nem progressista, ele � oportunista", diz a russa Yevgenia Albats. "Ele n�o est� preocupado com ideologia, mas sim com entrar para a hist�ria como um her�i russo - e far� o que for necess�rio para isso".
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