
"Neste ano n�o deixei de me surpreender com o que as pessoas fazem em nome da religi�o. Desculpe, minhas m�os est�o atadas. Os advogados fizeram o que os advogados fazem. Jane Does, o mundo as ouviu. Os familiares que as abandonaram, deveriam ter vergonha. (Naas�n Joaqu�n Garc�a) � um predador sexual."
O juiz Ronald S. Coen usou estas palavras na quarta-feira (08/06) antes de baixar o tom para ler a senten�a do l�der da igreja La Luz del Mundo: 16 anos e 8 meses de pris�o, conforme os advogados do r�u haviam acordado com o gabinete da procuradoria-geral da Calif�rnia, em troca de ele se declarar culpado de tr�s das 19 acusa��es que enfrentava.
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As Jane Does — pseud�nimo judicial para as mulheres que se juntaram para denunciar o autoproclamado "ap�stolo de Jesus Cristo" e em cujo depoimento foi baseado o processo criminal que acabou n�o indo a julgamento — se abra�aram ainda sentadas e come�aram a chorar.
Um guarda levou Joaqu�n Garc�a pela porta lateral do Tribunal Superior da Calif�rnia, em Los Angeles.
O restante da sala ficou em um sil�ncio inc�modo.

N�o era o final que muitos na sala esperavam para o processo judicial que come�ou em 3 de junho de 2019 com a pris�o de Joaqu�n Garc�a e uma de suas assistentes, Susana Medina Oaxaca, no aeroporto de Los Angeles.
Todos os que falaram durante a audi�ncia de quarta-feira haviam pedido ao juiz para impor a pena m�xima permitida por lei. Eles esperavam uma condena��o de pris�o perp�tua ou v�rias senten�as de pris�o perp�tua consecutivas.
"Juiz, pe�o que ou�a minha voz, a de minhas companheiras sobreviventes. Este homem e esta igreja s�o muito mais perigosos do que voc� pode imaginar. Eles destru�ram centenas de vidas e v�o continuar a fazer isso. Te suplico com todo meu cora��o, por favor, por favor, por favor, estenda sua senten�a ao m�ximo. Fa�a isso para dar o exemplo, para salvar outras v�timas."
Este foi o pedido de Jane Doe 5, a �ltima a fazer o apelo que havia sido repetido por diferentes vozes, mas com argumentos semelhantes. Com isso, ela encerrou sua interven��o, na qual falou em detalhes sobre "sete anos de abuso".
'Meu estuprador, meu algoz'
"O abuso come�ou devagar", disse a jovem de cabelos compridos e vestido rosa.
"Tinha 21 anos, mas era ing�nua para o mundo, virgem. Tinha um namorado que s� tinha beijado, porque todo o resto era proibido. Me disseram que eu tinha sido escolhida por Naas�n para uma b�n��o adicional."
Foi a primeira vez que ela foi obrigada a usar lingerie para o l�der da congrega��o.
A situa��o escalou rapidamente, contou a jovem, e logo chegou o dia em que os "impostores" da igreja — como ela os chama — pediram que ela desse um presente a Joaqu�n Garc�a. Era costume os fi�is agraciarem seu l�der, mas desta vez tinha que ser "a coisa mais preciosa que ela tinha": sua virgindade.
"Me lembro de me perguntar por que eu estava tendo uma rea��o f�sica t�o negativa se o que estava acontecendo comigo era t�o maravilhoso. Mas nunca consenti fazer sexo com voc�, nem em um milh�o de anos eu teria aceitado, se n�o fosse pela lavagem cerebral a que nos submetem", disse ela, dirigindo-se ao seu "estuprador, algoz", apesar de o juiz ter advertido para n�o fazerem isso, para falar com ele o tempo todo.

Os promotores ouviram com a cabe�a baixa. O advogado de defesa Alan Jackson olhava para ela de frente de forma intermitente, o juiz olhava de rabo de olho para o r�u.
Ela seguiu descrevendo a cena em que perdeu a virgindade nas m�os do que acreditava ser Deus na Terra. Foi violento, afirmou.
"Havia sangue por toda parte. Voc� e seus impostores sabiam que era uma experi�ncia horr�vel para mim. Voc� fez dois me agarrarem para que eu n�o fugisse. Acha que isso � consentimento?"
Ela explicou que durante anos Joaqu�n Garc�a a usou como escrava sexual e, quando n�o, a fazia de empregada pessoal.
"Me disseram que limpar o banheiro dele era uma b�n��o."
Um dia ela foi enviada ao M�xico para se casar com "um completo desconhecido".
"Me senti vendida como gado."
E naquele pa�s as coisas ficaram ainda mais distorcidas.
"Eles me sequestraram, me prenderam 24 horas por dia, 7 dias por semana com sua guarda particular. Fiquei apavorada. Achei que iam me matar", ela disse.
Ela contou que foi � Embaixada dos EUA para buscar ajuda.
"Seu poder � t�o grande em Jalisco — o estado mexicano em que nasceu La Luz del Mundo e onde est� sua sede, a chamada Hermosa Provincia, em Guadalajara — que at� o FBI teve dificuldade de me tirar de l�. Porque sou cidad� americana, porque se n�o, n�o sei o que teria acontecido."
"Quando fui resgatada, pensei que estava segura, que meu sofrimento havia acabado. Mas estava apenas come�ando."
Com a voz firme, ela contou como come�ou a receber amea�as de morte de membros de La Luz del Mundo, e que todos se distanciaram dela.
"Come�aram a dizer que �ramos putas e que era o que quer�amos. Seus advogados usaram nossos traumas contra n�s."

Estes traumas a levaram a consultar terapeutas.
"Mas me disseram que n�o estavam preparados para lidar com casos t�o complexos."
Ela acabou em uma institui��o de sa�de mental.
"� minha filha que me faz seguir. Ele tirou tudo de mim. � o anticristo."
'� meu tio'
N�o foi a �nica vez durante a audi�ncia que usaram esta palavra para descrev�-lo. Tamb�m o chamavam de "ped�filo", "estuprador", "criminoso" e "predador".
E, inclusive, de "tio". Foi Jane Doe 4, a primeira das cinco a falar. Ela tamb�m estava vestida de rosa e n�o parava de acariciar sua barriga de gr�vida.
"Naas�n, meu estuprador, meu algoz, � meu tio," afirmou.
Durante o sexo "voc� me dizia para te chamar de tio, que era sexy. Agora, aqui, ainda soa assim para voc�? Voc� me conhece desde que nasci, voc� me viu crescer. Supostamente deveria me proteger. Mas voc� escolheu se aproveitar de mim. Foi sua escolha, n�o minha. Simplesmente me rendi".
"Naas�n e esta igreja arruinaram minha vida, todos os aspectos dela", afirmou em uma frase tamb�m repetida por outras "sobreviventes" do l�der de La Luz del Mundo, como se autodenominam.

"Dediquei minha vida a servi-lo. Eu era vulner�vel e ing�nua, e ele se aproveitou. Dizia que eu era sua propriedade. Me usou v�rias vezes. Fui estuprada e abusada, dia ap�s dia, ano ap�s ano."
'Ela tem apenas 14 anos'
"Voc� se lembra daquela vez...?", continuou Jane Doe 4, descrevendo situa��es como a que, segundo ela, a imobilizaram no ch�o para que n�o resistisse a fazer sexo, a que a for�aram "at� vomitar", ou quando ela gritava e chorava por causa dos abusos e outros membros de La Luz del Mundo riam.
"Lembra daquela vez que voc� me disse para trazer minha irm�? 'Ela s� tem 14 anos', respondi. 'Voc� deveria ter trazido ela para mim antes', voc� me disse."
"Caso voc� tenha esquecido, estou aqui para lembr�-lo."
Falou que estava aproveitando a oportunidade para dizer sua verdade — algo que o acordo judicial n�o permitiu, j� que n�o houve julgamento — e fazer o p�blico entender que "dizer n�o ao ap�stolo era imposs�vel".
"Era equivalente a dizer 'n�o tenho f�', o que significa morrer no inferno."

"Fomos doutrinadas a acreditar nisso", disse Jane Doe 2 em seu discurso, usando um vestido azul claro e um brinco no nariz.
"Naas�n, estou falando com voc�: voc� me destruiu. Destruiu minha vida, mudou minha percep��o da realidade. Voc� � um covarde. Queremos que o mundo saiba o monstro horr�vel que voc� �."
'Muitos pastores s�o ped�filos'
"Isso vem acontecendo h� mais de 100 anos e tem que parar. Muitos pastores s�o ped�filos. � repugnante e triste. Eu achava que a igreja era um lugar seguro para mim, mas foi meu pior pesadelo", acrescentou Jane Doe 2.
E apontou para Alba Monsalvo L�pez: "A esposa do meu pastor, que tentou me convencer de que estava tudo bem e que ela ainda protege Naas�n".
Jane Doe 3, nervosa e chorosa, disse palavras semelhantes para Alondra Ocampo, que foi coacusada no caso, se declarou culpada de quatro acusa��es em outubro de 2020 e aguarda senten�a.
Durante a audi�ncia, veio � tona o papel de outros membros de La Luz del Mundo, como Abner Nicol�s Menchaca Trist�n, que estava presente na sala, na �ltima fila, de m�scara.
Pastor e membro do chamado Conselho dos Bispos, ele foi encarregado de dar a mensagem � congrega��o ap�s o acordo alcan�ado na sexta-feira com o Minist�rio P�blico. Jane Doe 4 fez a sala ouvi-lo.
Jane Doe 1 n�o falou durante a audi�ncia, mas uma declara��o escrita por ela foi lida. "Naas�n, voc� � uma desgra�a para a humanidade", foi uma de suas frases.
'M�e, n�o posso estar aqui'
Depois de descrever os abusos sofridos por parte de Naas�n, contar como ele roubou sua inf�ncia e a fez abandonar a escola, Jane Doe 3 relembrou o dia em que ele foi preso no aeroporto de Los Angeles.
"Minha m�e me acordou para ir � igreja com ela para rezar pelo meu estuprador, pelo meu algoz. Estavam todos chorando, gritando, rezando por Naas�n. Minha m�e come�ou tamb�m. Eu sei que as a��es dela foram resultado de lavagem cerebral, mas ela n�o estava sentindo dor por mim, sua filha", explicou.
"Eu disse a ela: 'M�e, n�o posso estar aqui, tenho que ir para a escola.' Nunca vou esquecer aquele momento. Ela nem olhou para mim."
A m�e de outra v�tima falou durante a audi�ncia. "O que eu fiz para voc� estuprar minha filha?", disse ela a Joaqu�n Garc�a, que depois de horas de sess�o ainda seguia sem fazer o menor movimento.
Outros familiares tamb�m pediram a palavra. Foi lida a mensagem do irm�o de Jane Doe 2 — "nosso mundo virou de cabe�a para baixo" — e da m�e de Jane Doe 3 — "minha filha, por sua causa (Naas�n), v�rias vezes quis se matar".
O marido de Jane Doe 4 se dirigiu aos presentes: "Quando isso acabar e todos forem para casa com seus entes queridos, eu vou ficar com minha esposa e v�-la desmoronar e catar seus caquinhos um por um".
Todos rejeitaram o acordo fechado pelos advogados de Joaqu�n Garc�a com o Minist�rio P�blico, apesar das explica��es da vice-procuradora-geral da Calif�rnia, Patricia Fusco, que abriu a sess�o:
"Nenhuma puni��o jamais apagar� o que elas passaram. Elas foram excepcionalmente corajosas. V�o seguir marcadas pelo resto de suas vidas, e n�s sabemos disso, mas esperamos que este acordo as ajude. Todos no Departamento de Justi�a esperam que sim. Que as ajude a ter uma vida feliz."
A partir da�, a decis�o j� estava tomada, como disse o juiz.
Os jornalistas presentes ficaram fazendo as contas: 16 anos e 8 meses. "Ele j� est� preso h� tr�s anos e, com um bom comportamento, em quanto tempo vai sair?", questionou um deles.
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