
No fim de maio de 1919, a sele��o brasileira venceu o Campeonato Sul-Americano, hoje conhecido como Copa Am�rica, ap�s disputar a final com o Uruguai. A competi��o, que trouxe o primeiro grande t�tulo ao futebol brasileiro, estava programada para o ano anterior, mas foi adiada em raz�o da grave crise sanit�ria causada pela gripe espanhola.
Mais de um s�culo depois, o Brasil est� novamente no centro de uma discuss�o que envolve a competi��o esportiva e uma grave crise sanit�ria.
O pa�s enfrenta a pandemia de COVID-19 com uma vacina��o lenta, mais de 462 mil mortes e regi�es nas quais especialistas apontam que os casos da doen�a t�m aumentado nas �ltimas semanas. Apesar do atual cen�rio, a Confedera��o Sul-Americana de Futebol (Conmebol) anunciou na segunda-feira (31/05) que o Brasil sediar� a Copa Am�rica deste ano.
Segundo a Conmebol, o presidente da Confedera��o Brasileira de Futebol (CBF), Rog�rio Caboclo, foi procurado pela confedera��o ap�s os outros pa�ses desistirem de sediar a competi��o.
O pa�s foi definido como sede da disputa ap�s Argentina e Col�mbia desistirem de abrigar a Copa Am�rica.
Os jogos est�o previstos para ocorrer entre 13 de junho e 10 de julho. O fato se tornou alvo de duras cr�ticas de especialistas e de membros da oposi��o ao governo Jair Bolsonaro.
No in�cio da noite de segunda, o ministro chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, afirmou que ainda n�o h� nada decidido e que a realiza��o do torneio depender� do cumprimento de certas condi��es.
O imbr�glio sobre a Copa Am�rica fez com que muitos relembrassem da hist�rica disputa de 1919.
A gripe espanhola

Os primeiros casos de gripe espanhola no Brasil foram registrados por volta de meados de 1918, mesmo ano em que a enfermidade come�ou a se propagar pelo mundo.
A doen�a, de r�pida propaga��o e que matava em poucos dias, se espalhou por diversos pa�ses por meio dos portos. Estima-se que cerca de 50 milh�es de pessoas tenham morrido em decorr�ncia da enfermidade em todo o mundo.
Por volta de setembro daquele ano, navios chegaram de outros pa�ses e pessoas infectadas pelo v�rus causador dessa gripe desceram em diferentes regi�es do Brasil. A doen�a logo se espalhou.
O governo brasileiro chegou a negar a gravidade da enfermidade. Por�m, poucos dias depois, nas �ltimas semanas de setembro de 1918, decidiu adotar medidas preventivas, como a recomenda��o de que as pessoas ficassem em suas casas.
Muitos reclamaram do pedido de evitar locais p�blicos. Sem a devida ado��o das medidas sanit�rias para conter a propaga��o do v�rus, o Brasil enfrentou uma subida vertiginosa no n�mero de mortes pela doen�a.
A gravidade da situa��o exigiu a constru��o r�pida de hospitais de campanha e locais para isolamento de indiv�duos infectados com o v�rus.
Enquanto o v�rus avan�ava, autoridades do Rio de Janeiro passaram a ficar alertas em rela��o ao evento que seria sediado na ent�o capital da Rep�blica naquele ano: o Campeonato Sul-Americano, programado para novembro de 1918.
Dados da �poca apontam que o Rio de Janeiro contabilizou cerca de 15 mil �bitos entre setembro e novembro de 1918.

Diante da alta de casos e mortes, as autoridades decidiram suspender todos os eventos esportivos.
No per�odo, o clima na rec�m-criada Confedera��o Brasileira de Desportos (CBD) foi ruim, porque a entidade havia se empenhado em trazer a disputa, que estava em sua terceira edi��o, para o Brasil naquele ano.
"Mas os principais entretenimentos, como cinema e teatro, e as escolas estavam fechados por causa da pandemia. Os campeonatos locais estavam suspensos. A situa��o estava muito complicada, ent�o n�o havia cabimento continuar com o Sul-Americano", detalha Jo�o Manuel Casquinha, professor do Departamento de Hist�ria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pesquisador sobre a hist�ria do esporte no Brasil.
Em meados de outubro de 1918, a CDB enviou um telegrama � Conmebol para comunicar que n�o havia condi��es de sediar o campeonato naquele per�odo, em raz�o da explos�o de casos de gripe espanhola no Rio de Janeiro e da orienta��o para suspender eventos p�blicos.
Casquinha relata que chegou a haver press�o das confedera��es das sele��es da Argentina e do Chile para que a disputa fosse realizada em outro pa�s. O Uruguai, que tamb�m enfrentava um duro per�odo da pandemia de gripe espanhola, chegou a ser cogitado, porque tinha campo apropriado para a disputa. Por�m, a disputa acabou adiada.
A competi��o de 1919
No in�cio de 1919, os n�meros de casos e mortes pela gripe espanhola ca�ram no pa�s. Diante desse cen�rio, houve relaxamento nas medidas de preven��o — apesar disso, houve registros de surtos e calamidades em outras regi�es do pa�s.
O Carnaval de 1919 se tornou conhecido como uma das maiores festas populares de todos os tempos. O futebol tamb�m voltou a ser atra��o e os est�dios dos campeonatos locais passaram a atrair multid�es.
O campeonato Sul-Americano daquele ano se tornou um grande sucesso de p�blico. Milhares de pessoas se aglomeraram para assistir aos jogos no Est�dio das Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro, constru�do para abrigar a competi��o internacional que reuniu Brasil, Argentina, Uruguai e Chile.
No dia 29 de maio daquele ano, o Brasil venceu por um a zero o Uruguai, que havia sido o campe�o nas duas primeiras edi��es do Campeonato Sul-Americano. Na arquibancada, 27,5 mil pessoas acompanharam o jogo.
"J� naquela �poca quem n�o tinha dinheiro para assistir o jogo dava um jeitinho, na maioria das vezes se acomodava num morro existente nas Laranjeiras com vista para o campo do Fluminense", diz trecho do texto da Confedera��o Brasileira de Futebol (CBF) sobre o jogo da final.
Mais de um s�culo depois

O adiamento da competi��o de 1919 foi citado diversas vezes nas redes sociais na segunda-feira (31/05), ap�s o an�ncio do Brasil como sede da Copa Am�rica deste ano.
Isso porque muitos comentaram que o pa�s deveria adotar a mesma postura do passado e adiar o campeonato enquanto a pandemia n�o for considerada controlada.
A ideia de realizar a Copa Am�rica no Brasil surgiu ap�s Col�mbia e Argentina recusarem sediar o campeonato. Al�m de enfrentar a pandemia, o primeiro pa�s passa por intensos protestos pol�ticos, cuja repress�o j� causou dezenas de mortes, segundo organiza��es de direitos humanos. J� o governo argentino rejeitou a competi��o devido ao aumento de casos da covid-19 no pa�s, que enfrenta o pior per�odo da pandemia.
Conforme a Conmebol, o presidente da CBF, Rog�rio Caboclo, foi o respons�vel por conduzir o di�logo com o governo federal.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) "imediatamente apoiou a iniciativa, com a aprova��o dos Minist�rios da Casa Civil, da Sa�de, das Rela��es Exteriores e da Secretaria Nacional do Esporte", disse a Conmebol.
No comunicado, o presidente da Conmebol, Alejandro Dom�nguez, justificou-se dizendo que o Brasil "vive um momento de estabilidade" na pandemia.
Em entrevista � BBC News Brasil na segunda-feira, o m�dico Miguel Nicolelis, professor de Neuroci�ncia da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, afirmou que a realiza��o da disputa no Brasil pode ser a "gota d'�gua" para a terceira onda de casos e mortes pela COVID-19 no pa�s.
O pa�s enfrenta dificuldades relacionadas � pandemia, como o aumento de casos em algumas regi�es, ap�s queda nas �ltimas semanas, e o ritmo da vacina��o, considerado lento.
Nicolelis definiu, durante a entrevista � BBC News Brasil, que o an�ncio do Brasil como sede do campeonato � um "chute na boca dos brasileiros que perderam familiares, de todos n�s que estamos h� 14 meses em quarentena em casa. Mas era previs�vel."
"N�s viramos o escoadouro do lixo do planeta. Tudo que n�o deve ser feito em quest�o de pandemia est� sendo feito aqui. Essa not�cia j� correu o mundo, e ningu�m consegue acreditar que o segundo pa�s em n�mero de mortes vai sediar um evento continental", acrescentou.
Membros da oposi��o a Bolsonaro anunciaram medidas para suspender imediatamente a Copa Am�rica no pa�s.
Em entrevista coletiva durante a noite de segunda-feira, o ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, afirmou que o governo federal ainda est� em fase de negocia��o sobre a realiza��o do evento no pa�s.
"Ainda n�o tem nada certo, estamos no meio do processo", disse Ramos. "Mas n�o vamos nos furtar a uma demanda, caso seja poss�vel de atender", completou o ministro.
O historiador Jo�o Manuel Casquinha critica a necessidade de realiza��o da disputa neste ano e afirma que se trata de uma situa��o puramente financeira.
"Em 1918, havia uma tentativa de n�o adiar a competi��o sob o argumento dos contratos que haviam sido firmados com empresas em raz�o da competi��o e precisavam ser cumpridos. E nessa �poca os jogadores eram amadores, n�o podiam ganhar sal�rios como hoje, recebiam apenas um trocado por fora", diz, ressaltando que mesmo com essas condi��es a disputa foi adiada por seis meses.
"Hoje, vejo que esse interesse em continuar com a Copa � para render contratos de publicidades, al�m de adiantamentos de dinheiros recebidos para a competi��o. Os jogadores precisam trabalhar, as confedera��es precisam pagar as suas contas e tudo isso precisa acontecer. A quest�o � que agora, em 2021, o futebol � algo que envolve cifras bilion�rias. Isso � um bom exemplo para entender que a vida humana n�o vale nada perto dos contratos, das movimenta��es financeiras e do entretenimento", acrescenta o professor de hist�ria.
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