
S�o Tom� das Letras – Rebeca Delgado tem 31 anos e 27 tatuagens. Todas foram realizadas na base da troca, um escambo entre o servi�o do tatuador e os colares, pulseiras e brincos feitos � m�o por ela. Pelo corpo de Rebeca h� os mais diferentes desenhos. Uma caveira mexicana, o deus eg�pcio da morte, uma folha de Cannabis sativa na perna, o s�mbolo da anarquia, flores, borboletas, teia de aranha e um arco-�ris na m�o para homenagear a filha, chamada Arco-�ris. “Aos 17 anos larguei a escola e sai para o mundo. Quero a liberdade”, resume Rebeca, que viajou de carona, a p�, de �nibus, aprendeu a fazer artesanato e n�o se arrepende do estilo de vida que leva.
O Estado de Minas publicou na edi��o de ontem hist�rias de andarilhos solit�rios, c�digos usados por eles na estrada e detalhes da vida de quem decide largar tudo e sair andando, sem um trajeto definido e sempre � beira do caminho. A reportagem passou uma semana acompanhando o cotidiano deles e esteve em S�o Tom� das Letras, no Sul de Minas, distante 330 quil�metros da capital. Cercada de grutas e cachoeiras e incrustada na Serra da Mantiqueira a cidade � repleta de lendas e hist�rias m�sticas, que a tornam um dos �ltimos redutos dos hippies, com hist�rias semelhantes � de Rebeca.
Nas andan�as pelo Brasil, Rebeca esteve em S�o Tom� das Letras, conheceu um rapaz, seguiu viagem com ele e engravidou. A filha, Arco-�ris, hoje com 13 anos, viajou com os pais pelo Brasil e quando chegou a �poca de a menina come�ar a estudar, Rebeca decidiu morar em S�o Tom�.
Rebeca foi criada com a av�, em S�o Paulo, e lembra que quando rompeu com a vida tradicional os familiares ficaram “chocados”. Passou por momentos tensos, principalmente quando precisou “dormir de moc�”, que no vocabul�rio dos hippies do s�culo 21 � aquele que dorme embaixo das marquises. “Costurei dois cobertores desses S�o Vicente, fiz tipo um saco de dormir, colocava a mochila dentro dele e dormia”, recorda.
Era tarde de quarta-feira quando Rebeca conversava com amigos na principal pra�a de S�o Tom�. No mesmo local, Haid� Nazar� Ferreira, de 59 anos, vendia artesanato. A renda que ela consegue com os produtos complementa os R$ 102 do Bolsa-Fam�lia, pois o filho mais novo, de 16, estuda e tem direito ao benef�cio. Os outros 18 filhos n�o vivem com ela e com v�rios perdeu contato.

Enquanto vende artesanato na pra�a de S�o Tom� das Letras, ela reflete sobre como os hippies mudaram nas �ltimas d�cadas. “Antigamente a maioria n�o gostava nem de pegar em dinheiro. O bom era dormir no campo, sem ir para as cidades, mas hoje est� diferente”, avalia. Dos 19 filhos que teve, cinco morreram rec�m-nascidos. Apesar de seguir ideais hippies, Haid� j� foi confundida com moradores de rua v�rias vezes e passou aperto, principalmente, com as pessoas que jogavam �gua em lugares em que ela dormia. “Uma vez acordei com um balde de �gua na cabe�a”, lembra.
Rebeca teve o mesmo problema. Quando esteve em Belo Horizonte dormindo na Pra�a Sete com outros hippies acordou assustada com o cabelo de um deles pegando fogo. Ela relata tamb�m relata j� ter sofrido discrimina��o quando procurou atendimento em hospitais. Haid� explica que o trecheiro � diferente do hippie, pois o primeiro quer caminhar “para cima e para baixo”, enquanto muitos hippies “mangueiam”, ou seja, fazem artesanato e vendem nas pra�as.
O professor de psicologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Jos� Sterza Justo, no livro Nomadismo, subjetividade e trabalho na contemporaneidade: andarilhos, trecheiros e migrantes (Eduem), explica que os hippies ou mochileiros “se distanciaram daquela cl�ssica figura romantizada de jovens estetas de uma sociedade alternativa, contraposta � do capitalismo tecnoprodutivista e opressor, para assumirem as figuras da pobreza, da subjuga��o, do adesismo, da esc�ria social e da precariedade da vida, sob o rolo compressor da competitividade na luta pela sobreviv�ncia”.
A trilha das rodovias
S�o Tom� das Letras – Wilson da Silva, de 50 anos, � conhecido pelos familiares como Nhonh�, mas o barbudo de voz rouca, nascido em Ilha Comprida, no interior de S�o Paulo, � famoso com outro apelido: Ventania. Ex-andarilho, ex-hippie e agora m�sico, ele vendeu mais de 10 mil c�pias do seu �nico disco, S� para loucos (2000).
As vendas s�o feitas de m�o em m�o em shows. As m�sicas versam sobre a vida daqueles, que como ele viveu, andam sem rumo, de carona, dormindo sob marquises, fazendo artesanato e tocando viol�o, pois abominam uma vida formal. Uma das mais famosas � Maluco de BR, cujo refr�o �: “Meus cabelos s�o compridos, minha cal�a desbotada/Carona ou caminhada, a vida � s� alegria/A viola � minha amada, eu n�o ligo mais pra nada/Sabe sou maluco de estrada”.
Quando chegou a S�o Tom�, em 1982, Ventania dormia na rua e arranhava os primeiros acordes. O dinheiro que precisava vinha do artesanato. Com o tempo e as viagens foi compondo novas can��es. Em 2000 gravou o primeiro e �nico disco, com 17 faixas. Com a vida mais tranquila financeiramente – s� no ano passado fez 109 shows, cobrando cach� m�dio de R$ 7 mil por cada, – Ventania segue vivendo em S�o Tom�. Casado com Ingrid, de 22 anos, o cantor curte seu d�cimo filho, o primeiro com a atual esposa. O pequeno Raul, de dois anos, � o leg�timo dono da casa. Rabisca as paredes e brinca com o cachorro, o vira-lata preto Wood.
