
Bras�lia – Resultado da crise econ�mica que atingiu o pa�s em meados de 2014, brasileiros da classe m�dia passaram a engrossar o perfil das pessoas em situa��o de rua em centros e periferias e a sentir, como os demais, o gosto da invisibilidade. Residentes de todos os lugares e de lugar nenhum, carregam, com os poucos pertences que t�m, um passado com experi�ncia profissional, forma��o superior, h�bito de leitura e familias financeiramente est�veis. O aumento � percebido por quem trabalha com esses grupos vulner�veis, pois as pesquisas sobre o perfil de moradores de rua s�o, em sua maioria, desatualizadas.
Na falta de n�meros, restam as hist�rias. Como a Wendel de Oliveira, 31 anos, que, desde 2013, n�o sabe o que � dormir dentro de quatro paredes. Eletricista industrial de forma��o, mas que tamb�m j� foi professor de desenho, vaqueiro, tratorista, pedreiro, marceneiro, auxiliar de servi�os gerais e queimador de cer�mica, ele viu na rua a �nica sa�da, ap�s ser desacreditado pela fam�lia e rejeitado pelo mercado de trabalho. “O dia a dia � o mais dif�cil. Passo necessidade por alimento, sinto frio e n�o tenho um cantinho certo, um cantinho quente para dormir. Isso � complicado. Estou sempre � merc� de algu�m chegar e levar o que eu tenho, ou de fazer mal a mim e me matar. Qual � a certeza que eu tenho de deitar e acordar no outro dia? Nenhuma”, afirma.
Natural de S�o Sim�o (GO), Wendel foi criado em Ituiutaba (MG). Aprendeu desde crian�a o valor do trabalho e do estudo. Sempre lutou por uma vida digna, para realizar o sonho de comprar a pr�pria ch�cara e constituir uma fam�lia. H� seis anos, contudo, quando fez uma cirurgia para retirar uma h�rnia abdominal, foi demitido da usina de fabrica��o de a��car e �lcool onde trabalhava. Da noite para o dia, deixou de ganhar o sal�rio de quase R$ 2,5 mil.
A partir da�, a vida de Wendel desandou. Ouviu da pr�pria m�e que nunca seria ningu�m e saiu de casa. Ficou perambulando por v�rias cidades mineiras at� que, em maio deste ano, foi caminhando de Uberl�ndia at� Bras�lia. Os mais de 400 quil�metros foram cumpridos em quatro dias. “Andava de meia-noite at� seis da tarde. Trouxe comigo apenas uma garrafa d’�gua de 500 ml. Vim para c� pois tive um sonho de que conheceria algu�m que me arranjaria um servi�o e ajudaria a me reerguer”, conta.
Para sobreviver, Wendel vive do pouco de dinheiro que recebe vendendo os grilos que faz, artesanalmente, com folhas de coqueiro. Apesar das dificuldades, ele nunca perde a esperan�a de dias melhores. “Aqui, Deus pode abrir as portas para eu ter uma chance de crescer e mostrar para a minha fam�lia que eu posso ser mais do que eles falaram”, afirma.
Al�m da crise, existem v�rios outros motivos que levam essa parcela da popula��o a viver ao relento. Depress�o e outras doen�as ps�quicas, por exemplo, n�o respeitam classe social. Por�m, segundo a defensora da Defensoria P�blica Estadual do Rio de Janeiro (RJ), Carla Beatriz Nunes, do N�cleo de Direitos Humanos, as dificuldades financeiras enfrentadas pelos brasileiros trouxeram inseguran�a, desestabilizaram fam�lias e, al�m de empobrecer parte da popula��o, ajudaram a disparar os gatilhos emocionais que levaram essas pessoas a se perderem nas ruas.
“O que se repete muito e venho observando ao longo dos anos � um misto de v�rios elementos conjugados, incluindo a crise econ�mica e algum comprometimento ps�quico. Em alguns casos, a disfuncionalidade da fam�lia faz com que as pessoas n�o consigam processar essa crise. O ente acaba expurgado do conv�vio. A crise financeira est� fazendo com que as pessoas tenham pouca toler�ncia, em fun��o do estresse provocado. � um sintoma que deveria ser avaliado por profissionais”, explica Carla Beatriz.
A defensora lembra, tamb�m, que grande parte das pessoas que vivem na rua s�o desprovidas de agressividade natural. “� muito comum que voc� conhe�a uma pessoa que tinha tudo, foi abandonado pela mulher e foi para a rua. S�o pessoas de extrema sensibilidade. � importante fazer mais trabalho volunt�rio. A rua tem porta de sa�da. A classe m�dia precisa rever seus valores. O que importa mais, o ter ou o ser?”, questiona.
Coordenador nacional do Movimento Popula��o de Rua, Vanilson Torres vive no Rio Grande do Norte, mas esteve, recentemente, em Recife, onde fez um evento no metr�. L�, entre os moradores de rua, encontrou um professor de sociologia e outro de matem�tica, formado na Universidade de Bras�lia (UnB). “Hoje, na rua, temos de psic�logos a jornalistas. N�o � s� �lcool e drogas que levam as pessoas para as ruas. O n�mero de desempregados aumentou. A pessoa, �s vezes, � despejada, a fam�lia se desfaz, entra em depress�o e acaba na rua”, diz.
Foi o que aconteceu com o jornalista ga�cho Cl�ber Lu�s Costa da Silva, 50. Sem emprego, acabou nas ruas de Porto Alegre. No �ltimo 6 de julho, ap�s uma madrugada com temperaturas abaixo de 10ºC, ele n�o resistiu ao frio e morreu. Com o professor de ci�ncias sociais Marcelo Henrique de Souza, 44, a situa��o n�o � diferente. Mestre em comunica��o, poeta e escritor, ele vive na Avenida Maracan� (RJ), n�o conhece o paradeiro da m�e e n�o mant�m contato com pai.
A preocupa��o de Vanilson � que, com o aumento no n�mero de moradores de rua, a viol�ncia contra essa popula��o tamb�m cresce. “J� fomos mais invisibilizados, mas a matan�a institucional continua. A classe m�dia indo para as ruas � reflexo da crise econ�mica e do desmonte de pol�ticas sociais. � uma trag�dia anunciada”, alerta.
Ven�ncio do Nascimento, 39, � um dos retratos do abandono familiar. Ele foi funcion�rio de uma empresa fabricante de margarinas por 12 anos e at� se formou em teologia, uma das suas maiores paix�es. “Quando eu dava aulas, me sentia um ser humano perfeito”, lembra. Ap�s ficar desempregado, no entanto, a fam�lia o menosprezou. Sem suporte, decidiu morar na rua, h� dois meses. “Quando me disseram que eu era um nada, me entreguei. A vida j� n�o faz mais sentido”, lamenta.
Conviver � margem da sociedade e ser desprezado todos os dias, como ele diz, � doloroso. “Voc� n�o espera que a sua vida d� errado, e quando acontece, � duro lidar com as consequ�ncias. � viol�ncia, frio, fome. Tudo de ruim”, salienta Ven�ncio. Mesmo assim, n�o h� sofrimento maior do que a saudade da fam�lia. “Tenho dois filhos que s�o os meus maiores trof�us. Espero um dia poder ver a alegria deles novamente”, destaca.
No Distrito Federal, em 2016, cerca de 2,5 mil pessoas viviam nas ruas. Em 2017, eram 3 mil. Esse continua sendo o dado dispon�vel na Secretaria de Desenvolvimento Social da capital. Segundo e-mail enviado pelo �rg�o, “n�o � poss�vel precisar o n�mero exato de moradores de rua e nem de seu ponto de passagem anterior, pois muitos s�o n�mades”. Corrobora com a pesquisa do Ipea que esses grupos procuram os maiores centros urbanos, como Taguatinga, Ceil�ndia e Plano Piloto. Ainda segundo os dados repassados pela secretaria, “houve um aumento de aproximadamente 50% nos �ltimos quatro anos”.
Falta de n�meros prejudica
Bras�lia – A principal mat�ria para constru��o de pol�ticas p�blicas para atender moradores de rua, incluindo aqueles advindos da classe m�dia, s�o as pesquisas, levantamentos que apontem a quantidade de pessoas nessa situa��o, os motivos que as levaram para as ruas e quais as necessidades dessa parcela dos brasileiros. O problema � que essas pesquisas praticamente inexistem. Em janeiro, a Justi�a do Rio obrigou que o Instituto Brasileiro de Geografia Estat�stica (IBGE) inclu�sse a popula��o de rua no censo de 2020.
H� um levantamento do extinto Minist�rio do Desenvolvimento Social, que data de 2009, e um do Instituto de Pesquisa Econ�mica Aplicada (Ipea), mais recente, de 2016. Segundo este �ltimo, “composto por pessoas com 18 anos completos ou mais vivendo em situa��o de rua em 48 munic�pios com mais de 300 mil habitantes e em 23 capitais”, a falta de dados agrava a invisibilidade de pessoas em situa��o de rua. A pesquisa do Ipea apontou que, � �poca, existiam 101.854 brasileiros vivendo ao relento.
“Deste total”, diz o texto, estima-se que 40,1% habitam “munic�pios com mais de 900 mil habitantes”. Outros 77,02%, “munic�pios de grande porte, com mais de 100 mil habitantes”. “Por sua vez, estima-se que nos 3.919 munic�pios com at� 10 mil habitantes habitem 6.757 pessoas em situa��o de rua, (6,63% do total). Ou seja, a popula��o em situa��o de rua se concentra fortemente em munic�pios maiores”, auferiu o estudo, que tamb�m alerta para a import�ncia de incluir esses grupos no Cadastro �nico para Programas Sociais (Cad�nico).