Mirabela: Santo � dono de metade das terras de cidade mineira
Metade dos im�veis do munic�pio do Norte do estado n�o tem escritura porque grande parte das terras foi "doada" para S�o Sebasti�o no s�culo 19 e � administrada pela Igreja Cat�lica
postado em 29/07/2019 06:00 / atualizado em 30/07/2019 16:08
A pequena Mirabela tem entre 3,5 mil e 5 mil im�veis sem escritura, segundo estimativa, s�rio problema para donos de im�veis e prefeitura
(foto: TIAGO PEREIRA/DIVULGA��O)
Mirabela, de 13,5 mil habitantes, no Norte de Minas, � famosa pela qualidade da carne de sol que produz. A cidade tamb�m ganhou notoriedade por ter sido fundada em �rea “doada” para S�o Sebasti�o, o padroeiro do munic�pio, no fim do s�culo 19.
A doa��o foi oficializada em cart�rio, em nome do santo. Assim, a popula��o local se acostumou com a falta de escritura dos seus im�veis porque as casas foram erguidas na “terra do santo”, administrada pela Igreja Cat�lica.
A condi��o de “terra do santo” deu repercuss�o na imprensa internacional a Mirabela, onde a estimativa � de que metade dos cerca de 9 mil im�veis n�o � regularizada. Em 1972, a cidade ganhou destaque na extinta revista O Cruzeiro.
A pol�mica n�o se restringe ao fato de moradias e com�rcio do munic�pio se situarem em terreno cujo “dono” � um m�rtir e santo crist�o – que viveu no s�culo 3 e foi perseguido e morto pelo imperador romano Deocleciano –, mas tamb�m a uma quest�o de interesse econ�mico: nas d�cadas de 1970, 1980 e 1990, gestores municipais travaram batalhas jur�dicas com a Igreja, tentando anular da Igreja do santo e fazer a transfer�ncia para os ocupantes dos im�veis, para que pudessem cobrar IPTU e outros tributos. Mas at� hoje as terras continuam sob o dom�nio da Igreja.
Elias Soares da Fonseca, comerciante (foto: Luiz Ribeiro/EM/D.A Press)
''Nunca tive um cheque devolvido, mas o banco n�o faz empr�stimo se a gente n�o tiver a escritura registrada em cart�rio''
Antigos moradores vivem no Centro da cidade, perto da igreja de S�o Sebasti�o, onde surgiu o n�cleo urbano h� mais de 130 anos. Moradores de outras �reas da antiga Bela Vista de S�o Sebasti�o, h� d�cadas, tamb�m ocupam casas e terrenos n�o escriturados porque os loteamentos foram criados sem obedecer aos crit�rios legais
A situa��o come�ou a mudar com a Lei 13.465/2017, de Regulariza��o Urbana (Reurb), quando foi iniciada a regulariza��o fundi�ria, viabilizada por parceria da prefeitura com a organiza��o n�o governamental Instituto Cidade Legal.
A entidade fez levantamento que apontou cerca de 3,5 mil a 5 mil im�veis sem documento legal de posse, segundo o seu presidente, Evandro Antunes Lopes. Como o munic�pio tem em seu cadastro cerca de 9 mil im�veis, a estimativa � que a metade dos propriet�rios de lotes, resid�ncias e estabelecimentos comerciais de Mirabela n�o tem as escrituras dos im�veis. Segundo ele, al�m da “terra do santo”, foram instalados tr�s loteamentos sem os mecanismos legais e os moradores receberam apenas recibos ou contratos de compra e venda, sem t�tulos de posse.
Ira�des de Jesus Rodrigues Lopes, dono de barbearia (foto: Luiz Ribeiro/EM/D.A Press)
''A Igreja nunca amea�ou tirar ningu�m daqui, mas a gente precisa da escritura''
A regulariza��o come�ou em abril de 2018. O secret�rio municipal de de Mirabela, M�rcio Lopes, informou que 917 propriet�rios j� formalizaram contratos com o Instituto para legitimar a posse, sendo que 300 est�o na �rea da “terra do santo”.
A entidade informou que j� regularizou 250 propriedades, faltando ainda o registro da escritura em cart�rio da maioria deles. Mas entre os contemplados at� agora n�o h� nenhum da �rea da �rea doada para S�o Sebasti�o. Isso porque ainda existem pend�ncias com a Arquidiocese (Mitra Diocesana) de Montes Claros, que administra os terrenos do santo em Mirabela, sem que tivesse feito o “desmembramento da gleba”.
“As tratativas com a Arquidiocese (de Montes Claros) s�o amistosas. N�o existe nenhum interesse do munic�pio e certamente tamb�m da Igreja de colocar �bice ou criar atrito, mas resolver uma situa��o que � de responsabilidade do poder p�blico e da arquidiocese”, afirmou Lopes.
Jos� Ant�nio da Silva, comerciante (foto: Luiz Ribeiro/EM/D.A Press)
''Comprei esta casa h� 25 anos, mas s� base do contrato. A escritura d� seguran�a pra gente''
PARCERIA PARA REGULARIZA��O
Centro comercial de Mirabela: povoado fundado a partir da doa��o de terras para S�o Sebasti�o virou distrito e depois munic�pio, em 1963 (foto: Luiz Ribeiro/EM/D.A Press)
O advogado Ruan Rodrigues, do Instituto Cidade Legal, disse que, pelas normas da Reurb, � preciso notificar outro envolvido com a mesma �rea, que tem 30 dias para impugna��o do processo de regulariza��o e apresentar os seus argumentos. A partir da�, o munic�pio pode adotar outras provid�ncias jur�dicas. Segundo ele, a prefeitura notificou a Mitra Diocesana sobre a regulariza��o fundi�ria da “terra do santo”.
Questionada pela reportagem, a assessora jur�dica da Mitra Diocesana de Montes Claros, Roseli Soares Ribeiro, disse que enviou resposta � prefeitura. “A Mitra Arquidiocesana de Montes Claros apresentou resposta ao procedimento de iniciativa do munic�pio de Mirabela e aguarda o regular tr�mite do feito", afirmou Roseli. Moradores informaram que a Mitra Diocesana, quando procurada pelos ocupantes dos im�veis, concedeu documenta��o para a retirada da escritura, mas cobrou determinado valor pela “libera��o”.
O secret�rio M�rcio Lopes ressalta que a prefeitura formalizou a parceria com o Instituto Cidade Legal para contar com equipe t�cnica capacitada para a regulariza��o fundi�ria para as fam�lias de baixa renda. “Todo cidad�o que julgar ter o direito de posse pode requerer a legitima��o independentemente do instituto. Mas o fato � que as exig�ncias legais imp�em certas condi��es ao pleito individual e fica caro para o cidad�o contratar um advogado, um engenheiro ou top�grafo, para fazer um �nico processo”, disse.
Ainda segundo ele, a parceria foi “a maneira mais econ�mica” para legalizar im�veis. “O interessado faz o pagamento de R$ 500 ou R$ 600 em at� 10 parcelas e todo o processo � feito pelo instituto e, depois de devidamente conferido por nossos engenheiros e por uma comiss�o, se d� a homologa��o pelo munic�pio e o processo � remetido para o cart�rio”, explicou. Lopes ressalta que, al�m de beneficiar os propriet�rios, a “escritura��o” vai gerar aumento da arrecada��o do munic�pio.
Sem papel, com afli��o
Igreja de S�o Sebasti�o, o padroeiro ''dono'' de im�veis na cidade (foto: Luiz Ribeiro/EM/D.A Press)
O comerciante Elias Soares da Fonseca, morador de Mirabela, no Norte de Minas, reclama que j� tentou fazer empr�stimos banc�rios. Ele conta que quis ajudar um filho, que precisou de financiamento de R$ 400 mil para investir em loja em Montes Claros, mas lamenta ter sido “exclu�do” do cr�dito banc�rio pela falta de garantia de pagamento, que seria feita com o uso im�vel onde sua fam�lia tem loja. “Pago minhas obriga��es. Nunca tive um cheque devolvido. Mas o banco n�o faz empr�stimo se a gente n�o tiver a escritura registrada em cart�rio”, reclama.
O estabelecimento do comerciante � um das centenas de im�veis de Mirabela doada a S�o Sebasti�o. Por isso, h� d�cadas s�o ocupados pelos moradores, que t�m somente os contratos de compra e venda. Elias conta que adquiriu a propriedade h� 26 anos e que, agora aguarda receber a escritura, depois que a prefeitura iniciou o processo de regulariza��o.
Dono de uma barbearia, Ira�des de Jesus Rodrigues Lopes diz que tamb�m espera finalmente ter a escritura. “A Igreja nunca amea�ou tirar ningu�m daqui, mas a gente precisa da escritura.” O casal de banc�rios aposentados Petronilha Alkmin e Afonso Souza Guimar�es vive em casa, onde j� funcionou uma farm�cia, tamb�m na “terra do santo”. Ela relata que o im�vel foi herdado do pai, que adquiriu “o direito de posse” e agora aderiu ao processo de regulariza��o. “Contar com o im�vel documentado � uma coisa fundamental. Al�m do mais, � uma seguran�a para as futuras gera��es”, observa a aposentada.
O aposentado Melchior Fonseca Maia, de 87 anos, tem em casa uma imagem de S�o Sebasti�o, do qual � devoto. Mas, como outros moradores da parte mais antiga de Mirabela, n�o tem a escritura da moradia, exatamente porque o terreno foi “doado” para o santo. Uma equipe t�cnica que faz levantamentos j� realizou medi��es na casa do aposentado para “escritura��o” do m�vel, mas ele disse que, “at� o momento, ainda n�o aderiu ao processo de regulariza��o fundi�ria, deixando a entender que ainda pretende fazer isso. A professora �lvia Pereira Maia, filha de Melchior, afirma que n�o est� preocupada em conseguir a escritura da casa onde mora no Centro de Mirabela. “Pois a terra � do santo”, justificou.
'FOI UMA B�N��O'
O caminhoneiro Jos� Ant�nio da Silva recebeu recentemente a escritura da casa onde mora, no Bairro S�o Jos�. “Comprei esta casa h� 25 anos, mas s� base do contrato. A escritura d� seguran�a pra gente”, afirma, revelando que pagou R$ 600, dividido em 10 vezes, para obten��o do documento dentro do processo da Reurb-S. A casa dele “n�o tinha documento” porque o loteamento do Bairro S�o Jos� foi implantado em uma antiga fazenda, sem obedecer crit�rios legais.
“Foi uma b�n��o de Deus”, afirma o lavrador Juscelino Antunes Cardoso, de 65 anos, outro morador do mesmo bairro em Mirabela, que conseguiu a escritura do im�vel gra�as as facilidades da Reurb-S. “Comprei o lote h� 20 anos, com o contrato de compra e venda. Depois fui construindo aos poucos”, diz. Ele conta que pagou R$ 500 para ter a escritura em m�os. O valor nao pesou no bolso porque foi dividido em 10 parcelas.
Doa��o para pagar promessa
A regi�o onde foi fundado o n�cleo urbano de Mirabela foi doada a S�o Sebasti�o, em 1899, por quatro fazendeiros devotos do santo. A doa��o foi registrada no cart�rio de Bras�lia de Minas, “nominal” a S�o Sebasti�o”, explica o professor de hist�ria Leonardo Almeida Santos, que pesquisou a origem da “terra do santo. Ele � descendente (tetraneto) de um dos doadores, Jo�o Antonio Alves de Almeida – os outros s�o Jos� Antonio Mendes, Pl�cido da Silva Maia e Pedro Ferreira de Aquino.
Segundo o pesquisador, no documento registrado no cart�rio consta: “Por assim terem concordado, transferem ao doador Marthy S�o Sebasti�o, todo direito, a��o e posse do referido terreno, podendo torn�-lo judicial e extrajudicial, e os doadores por suas pessoas e bens, obrigam-se a garantir a d�diva e defend�-la quando foram chamados � autoria”.
O professor afirma que, segundo relatos de antigos moradores, os fazendeiros fizeram a doa��o como pagamento de promessa, mas n�o se sabe qual a gra�a recebida. Na ocasi�o, o lugar era uma fazenda pr�xima de quatro cursos d'�gua, que servia como ponto de parada de tropeiros que viajavam entre Montes Claros e Janu�ria, �s margens do Rio S�o Francisco. Com a doa��o, surgiu o povoado, que 12 anos mais tarde se tornou o distrito de Bela Vista. Em 1943, o distrito ganhou o nome de Mirabela e em 1º de mar�o de 1963 foi emancipado e se tornou munic�pio.
Leonardo Santos salienta que nas d�cadas de 1970, 1980 e 1990, os prefeitos de Mirabela travaram batalhas judiciais com a Igreja para retirar o patrim�nio do nome de S�o Sebasti�o, mas, sem sucesso. "Na verdade, o objetivo dos prefeitos era regularizar a situa��o dos ocupantes dos im�veis e poder cobrar impostos, pois n�o tem como cobrar tributos de um santo", observa o pesquisador, lembrando que os moradores tamb�m sempre tiveram interesse nas escrituras, sobretudo, pela necessidade de terem registro de algum patrim�nio para acessoa financiamentos.
Saiba mais
A origem da “terra do santo”
A doa��o de terras a santos, comum no Brasil, tem origem na coloniza��o, que pretendia povoar e cultivar as terras consideradas “sem dono”, segundo o professor e pesquisador Jos� Osmar Pereira Oliva, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). “As Capitanias Heredit�rias, constitu�das em 1534, tiveram como seu primeiro donat�rio Martin Afonso de Souza, o qual as dividia tamb�m em partes menores, as sesmarias.
Com o avan�o do povoamento e a necessidade de fundar cidades, os primeiros colonos, de religi�o predominantemente cat�lica, se juntavam para doar parte de suas terras a santos da devo��o cat�lica. Essas terras, chamadas patrimoniais, por pertencerem � igreja, n�o podiam ser vendidas, mas era poss�vel conceder o direito de uso aos mais necessitados, ou para atender a interesses pol�ticos’, descreve Oliva.
“� importante destacar que essas doa��es implicavam a constru��o de uma capela ou igrejinha em homenagem a um dos santos, que passava a ser o padroeiro da comunidade, sendo assistida por um religioso, respons�vel tamb�m por receber donativos em dinheiro para manuten��o da Igreja cat�lica”, ressalta o pesquisador da Unimontes, lembrando que, assim como Mirabela, diversos outros munic�pios brasileiros que tiveram terras “doadas ao santo”.