
Os sacrif�cios foram muitos. Mas nenhum, nem os acidentes e problemas nas m�os, nem as 24 cirurgias a que foi submetido, o impediram de cumprir sua miss�o. Hoje, depois de mais de duas d�cadas sem tocar com os dez dedos, o determinado pianista e maestro Jo�o Carlos Martins voltou a faz�-lo com a ajuda de luvas "bi�nicas".
"Quantas manh�s eu acordo e falo: 'sei l� se vai ser poss�vel'. Acordo como um velhinho de 230 e, cinco minutos depois, sou um garoto de 12 anos. E assim eu levo a vida, sempre acreditando na esperan�a de que voc� pode alcan�ar seu objetivo", diz o maestro de 80 anos de seu apartamento em S�o Paulo, por Zoom, � BBC News Brasil.
O retorno ao piano exige esfor�o e dedica��o. Por isso, a quarentena do maestro na pandemia de coronav�rus tem sido uma de "reaprendizagem" do instrumento, agora tocando com as luvas feitas por um designer industrial. "Toda manh�, os primeiros exerc�cios…", diz ele, de frente para o piano, posicionando os dedos sobre as teclas.

V�deos compartilhados por ele nas redes sociais mostram sua emo��o de tocar piano com os dez dedos novamente. Em um deles, publicado h� tr�s semanas, o maestro toca, com as luvas, uma pe�a do compositor Johann Sebastian Bach (1685-1750), de quem � um dos maiores int�rpretes no mundo.
Jo�o Carlos Martins est� em l�grimas, e bastante envolvido com a m�sica. A como��o se espalhou: em seu perfil, o v�deo foi visualizado por quase 300 mil pessoas. A atriz americana ganhadora do Oscar Viola Davis tamb�m compartilhou o v�deo, e 270 mil pessoas o viram ali, comentando como era uma inspira��o v�-lo tocar.
A atriz Charlize Theron, por exemplo, comentou: "Moved to tears" ("L�grimas de emo��o"). Diversos meios de comunica��o, do Brasil, Estados Unidos e �ndia, por exemplo, publicaram o v�deo, chamando a aten��o para a emo��o do maestro e para as luvas que lhe devolveram a habilidade de tocar com todos os dedos.
"Minha carreira teve vales profundos e altas montanhas. Eu sempre digo: quando voc� tem um vale profundo, voc� precisa ter determina��o. E n�o saltar para um abismo. E quando voc� pode ver uma perspectiva de uma adversidade, voc� em vez de saltar para um abismo, voc� constr�i uma plataforma e voa mais alto", diz ele.
Na entrevista, Martins demonstra o funcionamento das novas luvas, tocando o piano em breves concertos via Zoom.
'Vida dos sonhos'
Quando Jo�o Carlos Martins tinha oito anos, seu pai lhe comprou um piano. "Seis meses depois, eu ganhei um concurso nacional de piano tocando obras de Johann Sebastian Bach. Parecia que eu levava jeito", diz. "Aos treze, iniciei a carreira nacional e, aos dezoito, a carreira internacional. Parecia a vida dos sonhos."
Naquela �poca, ele j� sofria de distonia focal, um dist�rbio que afeta os m�sculos e causa flex�es involunt�rias. Se um m�sico tem distonia focal, � prov�vel que suas m�os n�o respondam como ele gostaria quando tenta tocar um instrumento.
A distonia, diz o pianista, ia aparecendo durante o dia. Por isso, desenvolveu uma estrat�gia: entrar no palco "como se fosse 7h". Ent�o, ele dava um jeito de dormir quatro horas antes de cada concerto. "Depois, eu dava o concerto em plena forma."
Aos 26 anos, diz ele, come�ou o que o maestro define como sua "trag�dia das 24 opera��es". "Eu j� tinha tocado com as principais orquestras do mundo, tocando em todos os continentes, levando o nome do Brasil. Mas a� eu tive um acidente jogando futebol."

Foi no Central Park, em Nova York. Uma queda afetou o nervo ulnar, respons�vel pela sensibilidade e movimento de parte da m�o e do antebra�o. "Um m�s depois eu j� estava com atrofia nos �ltimos dedos", diz ele. "Fui operado no NY University Hospital, em Nova York, e consegui solu��o paliativa. Com dedeiras de a�o, toquei por mais dois anos. Em alguns concertos, eu acabava e tinha sangue nas teclas porque o esfor�o era grande."
Per�odo nos ringues e muitas perdas
Aos 30 anos, no entanto, sentindo que n�o podia mais tocar da mesma forma, Jo�o Carlos Martins abandonou a m�sica e a carreira. E mudou de vida completamente: virou empres�rio de boxe.
"Eu nem podia ouvir falar de m�sica, tal a minha revolta comigo mesmo de ter tido uma les�o por causa de um jogo de futebol. A revolta era enorme."
Foi empres�rio de �der Jofre, bicampe�o mundial de boxe. Ele foi uma inspira��o para Martins. "Quando eu vi o juiz levantar a m�o dele novamente, o que me passou pela cabe�a? 'Esse homem reconquistou o t�tulo mundial para o Brasil, ent�o quem diz que eu n�o posso voltar a tocar piano?' Aquilo me ajudou", diz.
Em 1978, fez sua reestreia em um concerto esgotado em Carnegie Hall, em Nova York. "Quando acabou o concerto, eu chorava muito de emo��o."
Mas, por praticar cerca de dez, doze horas por dia, o pianista teve LER (les�o por esfor�o repetitivo). "E tive que interromper uma segunda vez. Com fisioterapias e cirurgias, consegui voltar novamente. Acabei a grava��o da obra de Bach e, finalmente, parecia a vida dos sonhos."

Ent�o, um assalto na Bulg�ria em que � ferido resulta em uma les�o cerebral. Martins faz mais oito meses de tratamento para se recuperar.
Em 1998, depois de uma s�rie de problemas e acidentes que afetaram sua habilidade de tocar piano, fez o �ltimo concerto com as duas m�os em Londres. "Depois desse concerto, dois dias depois, eu j� fiz 24 opera��es, me cortaram os nervos da m�o direita. E eu perdi a m�o direita. Eu s� podia usar o indicador e o polegar. E com a esquerda eu fiz ainda uma carreira, toquei na Fran�a, na China, em v�rios lugares."
Ent�o, o pianista segue sua carreira s� com a m�o esquerda. At� que a distonia volta a afetar demais essa m�o, afetada tamb�m por um tumor. "Mais cirurgias, e finalmente os m�dicos falaram que nunca mais eu poderia tocar piano profissionalmente."
"Foi no ano de 2002: meu �ltimo concerto foi em Pequim, eu estava tocando s� com a m�o esquerda, mas com dores incr�veis. E a� fui para Nova York e os m�dicos falaram que a distonia era t�o severa que eles tinham uma p�ssima not�cia para mim ... que eu nunca mais poderia tocar piano profissionalmente, nem com a m�o esquerda sequer. Ent�o, parecia que o mundo tinha ca�do para mim durante 24 horas. Naquele dia, eu me lembro de caminhar 10 km pensando o que que eu ia fazer, aos 63 anos de idade", diz. "Parecia que o mundo tinha ca�do para mim durante 24 horas."
Dois dias depois, conta ele, o pianista apareceu na porta de uma faculdade para fazer aulas de reg�ncia. "Comecei uma nova carreira, sem nunca abandonar meu velho companheiro [o piano], com dois polegares."
Jo�o Carlos Martins fundou a Bachiana Orquestra e regeu centenas de concertos, tornando-se, tamb�m, um respeitado maestro. Ainda tocava piano ocasionalmente, s� com os dois polegares.

No ano passado, no entanto, por causa da dor que sentia nas m�os, decidiu fazer uma cirurgia que o impossibilitaria de vez de tocar o piano, inclusive com os polegares, como ainda fazia em alguns concertos. Mas um espectador mudou esse destino.
Um estranho com uma solu��o
De sua casa em Sumar�, no interior de S�o Paulo, Ubiratan Bizarro Costa, o Bira, estava vendo na TV o que seria definitivamente o �ltimo concerto de Jo�o Carlos Martins com os dedos que ainda conseguia controlar.
Bira � designer industrial, tem um escrit�rio de design e uma escola de desenho e, como ele mesmo diz, gosta de "inventar coisas" e fazer "produtos malucos".
Quando viu que o pianista teria de se aposentar do piano para sempre, pensou que talvez pudesse inventar algum equipamento que lhe ajudasse. "Aquilo ficou na minha cabe�a, e no dia seguinte comecei a fazer."
"Eu comecei a gravar os v�deos dele tocando, tirando as imagens, tirando as medidas pela m�o dele", conta. Assim, fez um primeiro prot�tipo, uma luva extensora.
Mas n�o conseguiu entrar em contato com o maestro, e a luva ficou guardada, sem uso, em uma prateleira. "At� que um dia eu vejo que ele ia reger aqui na minha cidade, em Sumar�." Era a sua chance.
Conseguiu ser recebido no camarim. "Ele me recebeu muito bem", diz Bira. E o designer industrial lhe deu uma caixa com as luvas, tentando explicar como funcionava.
As luvas n�o ajudaram. Bira n�o sabia que Martins conseguia abrir a m�o, e o primeiro prot�tipo eram quase como que dedos extensores. O maestro admite que no come�o n�o acreditava que o designer conseguiria ajud�-lo. Mas lhe telefonou, convidando Bira para um almo�o em sua casa para ver como suas m�os funcionavam.
Os dedos do maestro conseguiam apertar as teclas do piano, mas o problema � que n�o voltavam para a posi��o original, impedindo que ele tocasse o instrumento. "Na verdade, ele abria a m�o, eu n�o sabia disso. Cada dedo tinha uma particularidade. E a� eu comecei a criar outras coisas, me baseando por cada dedo", diz Bira.
Ent�o, Bira criou luvas com hastes que funcionam quase como molas. "Quando ele aperta, a haste puxa para cima. � simples", explica. "Ele fecha a m�o e a luva puxa para fora. Essa � a fun��o da luva extensora bi�nica."

"Quando eu penseiem fazer, pensei em uma coisa simples s� para ele tocar no fim de semana, na casa dele, n�o era para ele sair tocando. E eu nem imaginei que desse pra fazer tudo isso. E nossa, ele pegou aquilo e destrinchou a luva, ele fez o diabo ali, n�o tirava mais", diz Bira, sorrindo.
"Eu lembro que eu chorei muito na hora que eu toquei [piano com as luvas] porque fazia 21 anos que eu n�o encostava os dez dedos no teclado", diz Martins.
As luvas usadas agora pelo maestro est�o em sua sexta vers�o e, porque Bira foi procurado por outras pessoas com problemas de mobilidade nos dedos, luvas parecidas � do maestro agora est�o � venda (por encomenda; uma por R$ 549 e R$ 1.348 o par). Ele diz j� ter vendido pelo menos 100 luvas.
Martins diz que as luvas agora quase fazem parte do seu corpo. "Quando estou sem as luvas, hoje me sinto inseguro at� para andar na rua. Passou a fazer parte do meu f�sico", diz ele. "As luvas me ajudaram a cuidar da alma."
"Hoje, cada nota que eu toco no piano que eu toco, eu costumo colocar o cora��o para trazer emo��o, o c�rebro para ter o conceito da m�sica, e alma para que alguma coisa diferente chegue no cora��o de quem est� ouvindo", diz Martins.
Para ele, � preciso "sempre" ter esperan�a, dando exemplos "de que tudo � poss�vel nessa vida".
Por ora, o maestro e pianista seguir� praticando o piano em casa. At� ano que vem, quando um far� um novo concerto no Carnegie Hall, marcado para 17 de outubro, diz ele, orgulhoso. Com os dez dedos e muita emo��o, como foi da primeira vez.
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