
O julgamento na Justi�a de Santa Catarina que absolveu o empres�rio acusado de estuprar a influenciadora digital Mariana Ferrer encontra paralelo em decis�es de cortes brasileiras do s�culo 19 em casos de viol�ncia contra a mulher. O pano de fundo moral � o mesmo que o professor e historiador Felipe Riccio, doutor em ci�ncia pol�tica, verifica ao analisar o romance Casa de pens�o, de Alu�sio Azevedo, em que o protagonista Am�ncio vai a julgamento por um caso de abuso sexual contra uma mulher – na �poca tratado como sedu��o. A obra � baseada em uma hist�ria real que mobilizou a opini�o p�blica do Rio de Janeiro, a corte, no s�culo 19.
Para tra�ar historicamente o quanto argumentos considerados machistas podem influenciar decis�es judiciais, o Estado de Minas ouviu pesquisadores, ativistas da defesa dos direitos da mulher e advogados. A conclus�o � que, ao se fazer um mergulho no ordenamento jur�dico brasileiro ou olhar para a literatura, h� evid�ncias de que, embora devessem ser t�cnicas – ou seja, baseadas em lei e a partir de provas –, em muitos momentos da hist�ria do Brasil, decis�es da Justi�a s�o influenciadas por valores morais, em uma cultura na qual as mulheres n�o aparecem como sujeitos de direito. N�o faltam casos judiciais que mobilizaram a opini�o p�blica nacional em que mulheres v�timas – que denunciaram ou foram mortas – s�o atacadas em sua honra para justificar a viol�ncia contra elas.
A honra da influenciadora digital Mariana Ferrer foi atacada no julgamento realizado em setembro, no qual o r�u era o empres�rio Andr� de Camargo Aranha, acusado de, durante uma festa no Caf� de La Musique, em Florian�polis (SC), ter abusado sexualmente dela, embora ela estivesse fora do ju�zo normal. O acusado foi absolvido em uma audi�ncia na qual Mariana foi humilhada pelo advogado da defesa, Cl�udio Gast�o da Rosa Filho, que mostrou fotos delas nas redes sociais sem qualquer rela��o com o caso. O ataque ocorreu diante do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florian�polis, e do promotor Thiago Carri�o de Oliveira, que, considerando as imagens divulgadas, nada fizeram.
"A matriz patriarcal t�o forte no s�culo 19 se mant�m e, em alguma medida,tem sobrevida nessas decis�es"
Felipe Riccio, doutor em ci�ncia pol�tica
Depois de divulga��o das imagens pelo The Intercept, o termo “estupro culposo” ganhou destaque nas redes sociais, com manifesta��o de an�nimos e famosos, com notas de rep�dio do Senado Federal e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), al�m de determina��o de apura��o da conduta do juiz pelo Conselho Nacional de Justi�a. Ao comparar um caso de repercuss�o nacional no s�culo 19 e o de Mariana Ferrer, em pleno no s�culo 21, o pesquisador conclui que o ataque � honra da mulher se mant�m. “A matriz patriarcal t�o forte no s�culo 19 se mant�m e, em alguma medida, tem sobrevida nessas decis�es”, argumenta Felipe Riccio
.
O romance Casa de pens�o, de Alu�sio Azevedo, conta a hist�ria de Am�ncio, jovem provinciano do Maranh�o enviado para o Rio de Janeiro pelo pai rico para cursar medicina. A narrativa, que mostra como Am�ncio se relacionava com as mulheres, se inspirou na “Quest�o Capistrano”, que mobilizou a opini�o p�blica em 1876. No caso real, J�lia, uma professora de piano, morava com um filho e uma filha. Ela alugava quartos e sua filha foi seduzida por um dos inquilinos. O caso foi parar na Justi�a, que considerou Capistrano inocente.
Com base na an�lise do romance, o pesquisador demonstra que o Judici�rio se pautou por gram�tica patriarcal vigente na �poca, na qual as mulheres n�o eram vistas como sujeitos de direito. “O argumento da defesa coloca em quest�o algo que estava l�, no s�culo 19, debatido na Justi�a. Quando o leitor de hoje l� o romance, se assusta, mas, ao ver o jornal do cotidiano, encontra v�rios juristas que mant�m o perfil de homens, e brancos majoritariamente, decidindo a partir de premissas patriarcais, que d�o tanto valor � quest�o da fam�lia, a um tipo certo de rela��o de papel de homem e mulher. Algo terr�vel.”
O pesquisador Felipe Riccio destaca que temas como a sexualidade s�o tratados no �mbito da esfera privada, embora necessitem ser debatidos na esfera p�blica para que a viol�ncia contra a mulher possa ser erradicada. “No s�culo 19, as esferas privada e p�blica estavam de tal forma imbricadas que essa rela��o impedia o debate p�blico sobre esses temas. A mulher nunca era vista como sujeito de direito. Quando vemos o que foi vazado da senten�a no caso da Mariana, a gente percebe como isso ainda � t�o forte no �mbito da Justi�a contempor�nea”, afirma.
Velha tese

Quatro d�cadas se passaram entre o julgamento, em 1979 e 1981, de Doca Street, acusado do assassinato da mineira Angela Diniz, em B�zios, em 1976, e o julgamento, em setembro, do empres�rio Andr� de Camargo Aranha e as teses jur�dicas seguem culpabilizando as mulheres, aponta o movimento. Por meio de nota, o Quem Ama N�o Mata repudiou o julgamento, comparando-o a um “tribunal da inquisi��o”.
“Comecei essa hist�ria h� 50 anos. Como poderia imaginar que ainda hoje estar�amos, em certos aspectos, at� pior?”, questiona a coordenadora do movimento, Mirian Chrystus. E completa: “A tese de defesa da honra continua existindo em esp�rito”. O movimento convoca para manifesta��o em apoio a Mariana Ferrer no dia 7, �s 15h, na Pra�a Sete, no Centro da capital mineira. Outras manifesta��es est�o sendo convocadas em todo o Brasil.
“A honra feminina sempre permeou o nosso ordenamento jur�dico, muito mais como valor masculino do que o feminino propriamente dito. A honra do pai e do marido estava vinculada ao comportamento, � dec�ncia de suas filhas e esposas”, afirma a advogada do movimento, Isabel Ara�jo Rodrigues. A figura da mulher honesta s� deixou de existir no ordenamento jur�dico brasileiro em 2005.
Isabel lembra que n�o foi empregada a express�o “estupro culposo”, cunhada pelo The Intercept ao divulgar o caso Mariana Ferrer, nem nas alega��es finais do Minist�rio P�blico nem na senten�a do juiz. No entanto, segundo ela, todo o processo � enviesado pelo resgate, de certa maneira, do argumento de “leg�tima defesa da honra”. “Em tese, ele n�o pode ser culpado por aquela atitude, aquilo n�o poderia ser considerado um crime de estupro porque ela � maior de idade e n�o seria poss�vel perceber a vulnerabilidade dela. O que levou � absolvi��o foi a falta de prova para caracterizar a vulnerabilidade dela”, afirma.
Segundo a advogada, a senten�a d� a entender que o acusado n�o tinha condi��o de verificar o estado de sanidade da v�tima e que ele foi apenas imprudente ao manter rela��o sexual com ela sem ter expresso consentimento. Por�m, a advogada � taxativa ao dizer que existem v�rias provas da vulnerabilidade, em v�deos e relatos de amigos. “A palavra dela como v�tima foi absolutamente desconsiderada", afirma. Ainda foram encontrados s�men do acusado, sangue na roupa da jovem e comprovado que ela teve o h�men rompido.
O Tribunal de Justi�a de Santa Catarina informou que o juiz n�o se manifestar� sobre o caso. O Minist�rio P�blico, por sua vez, diz que o v�deo foi editado de forma que os trechos em que o promotor e o juiz interferem contra excessos praticados pelo advogado s�o suprimidos, dando a impress�o de que a v�tima foi humilhada sem nenhum tipo de interfer�ncia.