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Estado de Minas DESPEDIDA

'Li a carta de despedida do filho para a m�e': os relatos dos alunos de Medicina que cuidaram de pacientes terminais de covid-19

Um grupo de estudantes de Medicina da USP trabalhou por tr�s meses na enfermaria de cuidados paliativos para pacientes terminais de covid-19, acompanhando seus �ltimos encontros com as fam�lias. '�s vezes, continuar o tratamento m�dico s� aumenta o sofrimento', disse uma estudante.


24/01/2021 06:51 - atualizado 24/01/2021 09:20

Os estudantes de Medicina da USP trabalharam por três meses na enfermaria de cuidados paliativos do Hospital das Clínicas, em São Paulo(foto: Divulgação HCFMUSP)
Os estudantes de Medicina da USP trabalharam por tr�s meses na enfermaria de cuidados paliativos do Hospital das Cl�nicas, em S�o Paulo (foto: Divulga��o HCFMUSP)

Uma paciente com graves sintomas de covid-19, uma mulher de 50 anos, n�o podia receber visitas do filho adolescente na enfermaria de cuidados paliativos do Hospital das Cl�nicas (HC), em S�o Paulo. Havia reuni�es virtuais, quando o jovem poderia ver a m�e, mas ele temia esse encontro.


Quando o estado dela piorou, o rapaz enviou uma carta de despedida.

"Eu li a carta para ela, e foi bastante dif�cil para mim tamb�m. Foi muito triste. Ele se despedia da m�e, dizia o quanto ela era importante e pedia desculpas por coisas que ele tinha feito. Ela estava de olhos fechados, mas, quando terminei de ler, ela abriu os olhos. Foi um daqueles momentos que a gente n�o consegue explicar", conta Gabrielle Cordeiro Trofa, de 24 anos, aluna do 5º ano de Medicina da Universidade de S�o Paulo (USP).

Hist�rias como essa foram vivenciadas por um grupo de estudantes de Medicina da USP em uma experi�ncia in�dita: eles trabalharam por alguns meses em uma enfermaria de cuidados paliativos para pacientes terminais de covid-19 no Hospital das Cl�nicas (HC), um dos maiores complexos hospitalares da Am�rica Latina.

A ala, que tinha 20 leitos, foi criada em abril do ano passado para receber pessoas com sintomas graves de coronav�rus somados a outras doen�as, como c�ncer terminal. Ou seja, na enfermaria havia apenas pacientes cuja morte era considerada iminente e irrevers�vel, embora esse destino anunciado n�o tenha se concretizado em todos os casos.

"Convivemos com a morte diariamente. Foi uma experi�ncia muito intensa e impactante. Vivemos momentos que vamos nos lembrar para o resto da vida. Tamb�m foi um per�odo muito importante para nossa forma��o como profissionais de sa�de", explica Gabrielle.


A estudante Gabrielle Cordeiro Trofa se juntou com colegas para discutir a inclusão dos cuidados paliativos na grade curricular do curso de Medicina da USP(foto: Arquivo Pessoal)
A estudante Gabrielle Cordeiro Trofa se juntou com colegas para discutir a inclus�o dos cuidados paliativos na grade curricular do curso de Medicina da USP (foto: Arquivo Pessoal)

Inicialmente, os estudantes iriam participar de um projeto de comunica��o com os pacientes de covid-19 por meio de rob�s. Com um tablet embutido, m�quinas caminhavam pelas salas de leitos e permitiam que m�dicos e familiares conversassem com os internados — se desse certo, essa comunica��o economizaria equipamentos de prote��o individual utilizados pelos profissionais.

Por�m, a rede de wi-fi n�o funcionou bem em todos os pontos e os rob�s ficaram em segundo plano.

Foi ent�o que o grupo de estudantes precisou participar mais ativamente da rotina da enfermaria. "Come�amos a aprender pr�ticas de cuidados paliativos. Muitos de n�s descobriram esses procedimentos ali mesmo, pois esse assunto n�o � tratado na faculdade", diz Gabrielle.

O que s�o cuidados paliativos?

"Costumo resumir os cuidados paliativos da seguinte forma: s�o os cuidados que damos ao sofrimento das pessoas que convivem com doen�as graves ou amea�adoras da vida", explica Douglas Crispim, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) e m�dico-assistente na enfermaria do HC durante a pandemia.

Na pr�tica, esse ramo da Medicina n�o busca curar o paciente nem fazer com que ele se recupere da doen�a, como ocorre em tratamentos m�dicos tradicionais. A ideia � garantir que a pessoa sofra cada vez menos com os sintomas — com acesso a analg�sicos e opi�ceos para aliviar a dor, limite a procedimentos invasivos e disponibiliza��o de assist�ncia psicol�gica.

Ou seja, em caso de morte iminente, o objetivo � tornar esse processo o menos doloroso poss�vel, tanto para o paciente quanto para seus familiares.


O médico paliativista Douglas Crispim também atuou na enfermaria do HC(foto: Arquivo Pessoal)
O m�dico paliativista Douglas Crispim tamb�m atuou na enfermaria do HC (foto: Arquivo Pessoal)

"Os cuidados paliativos avaliam o ser humano como um indiv�duo e n�o como uma doen�a ou um conjunto de �rg�os", diz Ricardo Tavares, professor de Medicina da USP e respons�vel pelo N�cleo de Cuidados Paliativos do HC, que existe desde 2010, mas que teve enfermaria pr�pria apenas com o in�cio da pandemia.

"Esse ser humano tem particularidades. O que fazemos � avaliar a melhor forma de tratar esses sintomas e diminuir o sofrimento da pessoa, pois muitas vezes a continuidade do tratamento m�dico intensifica esse sofrimento, mesmo em casos em que o processo de morte � irrevers�vel."

N�o significa que todos os encaminhados para cuidados paliativos v�o morrer. Segundo o hospital, cerca de 25% dos 200 pacientes que passaram pela ala entre abril e setembro receberam alta — um �ndice ligeiramente menor que o da Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

A enfermaria recebeu principalmente pessoas que acumularam sintomas graves de covid-19, como extrema dificuldade para respirar, e problemas relacionados a outras doen�as — na maioria das vezes, terminais. Elas foram selecionadas em outras �reas do hospital e encaminhadas aos cuidados paliativos depois de conversas entre os m�dicos e as fam�lias.

Recentemente, um estudo publicado no Journal of Palliative Medicine apontou que 22% das pessoas que morreram de covid-19 no Reino Unido j� enfrentavam outra doen�a grave — ou seja, � poss�vel que procedimentos m�dicos tradicionais n�o oferecessem chance de recupera��o ou prolongamento de sua vida.

"Esses dados mostram que boa parte dos pacientes que faleceram de covid-19 viveram seus �ltimos momentos em meio a um grande sofrimento desnecess�rio", opina Crispim.

�ltimos encontros

Na enfermaria do HC, uma das tarefas dos estudantes era acompanhar visitas virtuais do paciente com as fam�lias do lado de fora. Para evitar novas infec��es, as visitas presenciais foram proibidas. Por isso, em muitos casos, os alunos assistiram aos �ltimos encontros entre familiares e pacientes que morreriam logo depois.

A estudante Gabrielle Cordeiro Trofa diz que esses momentos marcaram sua experi�ncia. "Um dos casos era de um senhor idoso, j� inconsciente. Todos os dias, a gente levava o celular pra perto e a esposa dele cantava uma m�sica religiosa para ele. Foi um processo muito bonito, apesar da piora progressiva dele. N�o eram momentos de despedida, mas de amor, de agradecimento", conta.

O estudante Jo�o Vitor Sampaio Rocha, 24, do 6º ano de Medicina, conta a hist�ria de uma das pacientes graves que acompanhou:

"Todos os dias, a filha dela mandava �udios e m�sicas, e a gente colocava no ouvido dela. At� que um dia, a filha disse que gostaria de fazer um v�deo de despedida. Parece que ela sentiu que era o �ltimo dia da m�e, a �ltima oportunidade de se despedir. Ela falou durante 40 minutos. Mas estava em paz com essa despedida, s� queria agradecer tudo o que a m�e tinha feito, dizer o quanto a m�e era importante. Foi um momento muito marcante pra mim. � poss�vel fazer do processo de morte algo menos traum�tico, com menos sofrimento e at� bonito", diz o estudante.

J� Bianca Partezani Megnis, 25, do 5º ano, relata um caso ainda mais triste. "Tentamos fazer uma visita a um paciente, mas ele estava se alimentando quando a fam�lia ligou. Depois, n�o conseguimos contatar os parentes por telefone. Acabou que ele ficou por �ltimo naquele dia. Quando finalmente conseguimos completar a liga��o com a fam�lia, ele j� havia morrido. N�o acreditamos. Sa�mos muito abalados da sala", diz.

Sofrimento dos m�dicos

A comunica��o entre equipe m�dica, pacientes e familiares � um dos pilares dos cuidados paliativos. A ideia � que essa intera��o seja mais pr�xima e emp�tica, um pouco diferente da tradicional rela��o fria entre as partes.

O m�dico Douglas Crispim conta que, no in�cio da pandemia, muitos parentes reclamaram que ficavam dias sem ter not�cias de seus familiares internados no HC. "N�s criamos uma meta de comunica��o di�ria. Todos os dias n�s t�nhamos de informar a fam�lia sobre o estado de sa�de do paciente, explicar os procedimentos que estavam sendo feitos e dar not�cias ruins da maneira menos dolorosa poss�vel", explica.


O estudante João Vitor Sampaio Rocha:
O estudante Jo�o Vitor Sampaio Rocha: "Um dia fui embora do hospital e, quando voltei dois dias depois, metade dos pacientes tinham morrido. Era bem assustador nesse sentido, mas consegui me proteger para que n�o me afetasse quando eu voltava para casa" (foto: Arquivo Pessoal)

Para ele, essa tradicional "frieza m�dica" pode ser um ind�cio de que os pr�prios profissionais de sa�de criam uma barreira para se proteger do sofrimento ao lidar com a morte dos outros. "� dif�cil presenciar o sofrimento das pessoas. Ent�o, de certa forma, n�s criamos uma barreira com o paciente e com a fam�lia como uma forma de prote��o", diz.

Crispim conta que, para ele, trabalhar em uma enfermaria de cuidados paliativos foi uma "chuva de emo��es".

"Eu j� tinha dez anos de experi�ncia como paliativista, mas atuar com a covid foi a experi�ncia mais desafiadora que j� enfrentei. Nunca lidei com uma quantidade t�o grande de �bitos. Havia uma rotatividade enorme de pacientes, todos os dias. Meus colegas sofreram muito tamb�m, choravam, ficavam desanimados. E isso mexeu muito comigo. Mas a gente se apoiava muito, levantava a cabe�a e recome�ava o trabalho", relata o m�dico.

A estudante Alice de Paula Baer, 23, do 5º ano de Medicina, conta que ficou nervosa ao aceitar o trabalho volunt�rio na enfermaria. "Fiquei com medo de como essa experi�ncia di�ria com a morte poderia me afetar. Mas, com o tempo, a gente percebeu que o trabalho da equipe era muito bem feito, o que passou muita seguran�a para n�s", explica.

Seu colega Jo�o Vitor Sampaio Rocha relata que a rotatividade na ala o surpreendeu. "Um dia fui embora do hospital e, quando voltei dois dias depois, metade dos pacientes tinham morrido. Era bem assustador nesse sentido, mas consegui me proteger para que n�o me afetasse quando eu voltava para casa".

J� Bianca Partezani Megnis concorda que, apesar dos momentos dif�ceis, a experi�ncia contribuiu para sua forma��o. "Fiquei com medo inicialmente. Mas, para mim, passar por cuidados paliativos foi muito construtivo. Voc� aprende que a medicina tamb�m pode ser mais humana, com mais empatia no trato e na comunica��o com o paciente e com a fam�lia", diz.

Para o m�dico Ricardo Tavares, coordenador da enfermaria do HC, os profissionais de sa�de, tanto m�dicos como enfermeiros, tamb�m precisam de apoio ao trabalhar t�o pr�ximos da morte.

"A gente sofre tamb�m, e � imposs�vel n�o sofrer. Sempre digo aos alunos que temos que ser muito fortes para enfrentar esses momentos. Precisamos ter um compromisso com n�s mesmos, um compromisso de ser feliz e de ser pleno na vida, aproveitar os momentos bons que vivemos. Para cuidar dos outros, n�s precisamos estar inteiros", diz.

'Papel do m�dico'

Com o fim do per�odo de voluntariado, o grupo de estudantes da USP decidiu divulgar os cuidados paliativos entre colegas de faculdade. O objetivo, agora, � tentar incluir a disciplina na grade curricular, embora esse seja um processo demorado. Atualmente, os procedimentos paliativos n�o fazem parte do curr�culo da gradua��o na universidade e s� s�o abordados em aulas eventuais a depender do professor.

Os alunos criaram um grupo de estudos para debater a quest�o entre eles e outros colegas.

"Os profissionais de sa�de precisam saber quando podem usar os cuidados paliativos, como se comunicar com os pacientes, como dar uma not�cia ruim para a fam�lia. Saber reconhecer quando o processo de morte � inevit�vel e que prolongar o tratamento s� vai gerar mais sofrimento. O papel do m�dico � evitar justamente evitar o sofrimento", diz a estudante Gabrielle Cordeiro Trofa.


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