
Associado � produ��o de soja transg�nica, o herbicida contribuiu para que o Brasil se tornasse o maior produtor do gr�o no mundo, superando os Estados Unidos.
Com isso, o PIB (Produto Interno Bruto) dos Estados produtores cresceu muito acima da economia do pa�s como um todo nas �ltimas d�cadas. E a renda gerada pela atividade agr�cola movimentou outros setores econ�micos nas regi�es produtoras.
Mas um estudo realizado por pesquisadores das universidades de Princeton, FGV (Funda��o Getulio Vargas) e Insper revela que essa gera��o de riqueza tem um alto custo: segundo o levantamento, a dissemina��o do glifosato nas lavouras de soja levou a uma alta de 5% na mortalidade infantil em munic�pios do Sul e Centro-Oeste que recebem �gua de regi�es sojicultoras.
Isso representa um total de 503 mortes infantis a mais por ano associadas ao uso do glifosato na agricultura de soja.
"H� uma preocupa��o muito grande quanto aos efeitos dos herbicidas sobre popula��es que n�o s�o diretamente envolvidas com a agricultura, que n�o est�o diretamente expostas aos agrot�xicos", observa Rodrigo Soares, professor titular da C�tedra Funda��o Lemann do Insper e um dos autores do estudo, ao lado de Mateus Dias (Princeton) e Rudi Rocha (FGV).
"Apesar dessas subst�ncias estarem presentes no corpo de mais de 50% da popula��o ocidental, n�o sabemos se isso � danoso ou n�o", acrescenta o pesquisador.
"Nosso artigo � um dos primeiros a mostrar de forma cr�vel que isso deve ser de fato uma preocupa��o, ao demonstrar a contamina��o atrav�s dos cursos de �gua em �reas distantes das �reas de uso, de uma maneira que nunca havida sido feita anteriormente."

A Bayer, dona desde 2018 da Monsanto - empresa que lan�ou o glifosato no mercado em 1974, sob o nome comercial Roundup - avalia os resultados do estudo como "n�o confi�veis e mal conduzidos" e diz que a seguran�a de seus produtos � a maior prioridade da companhia.
A Aprosoja (Associa��o Brasileira dos Produtores de Soja), por sua vez, afirma que "as conclus�es apontadas no estudo n�o parecem serem sustentadas com os fatos cient�ficos e realidade constatada na pr�tica da agricultura brasileira".
Por fim, a CropLife Brasil, uma das entidades que representam o setor de defensivos agr�colas no pa�s, destacou em nota que "h� mais de 40 anos, o glifosato tem passado por extensos testes de seguran�a, incluindo 15 estudos para avaliar a toxicidade potencial para o desenvolvimento humano e 10 estudos para avaliar a toxicidade reprodutiva potencial".
"As autoridades regulat�rias no Brasil, na Europa, nos EUA e em todo o mundo revisaram esses estudos e conclu�ram que o glifosato n�o representa risco para o desenvolvimento humano ou reprodu��o humana", afirma a organiza��o.
O uso do glifosato no Brasil
Herbicida mais utilizado no mundo atualmente, o glifosato foi descoberto pela Monsanto em 1970. O defensivo � usado para elimina��o de ervas daninhas na agricultura, agindo atrav�s do bloqueio de uma enzima que faz parte da s�ntese de amino�cidos essenciais para o desenvolvimento das plantas.
O glifosato � um herbicida n�o-seletivo, ou seja, mata a maioria dos vegetais. Por conta disso, seu uso na agricultura se popularizou associado a culturas geneticamente modificadas para resistir ao princ�pio ativo.
� o caso da soja transg�nica, comercializada pela Monsanto sob o nome de Roundup Ready, justamente por ser resistente ao glifosato, vendido pela empresa com o nome de Roundup. Desde 2000, no entanto, a patente do glifosato expirou, e atualmente o produto � oferecido por diversos fabricantes, sob diferentes nomes comerciais.
A soja geneticamente modificada foi primeiro comercializada pela Monsanto nos Estados Unidos em 1996.

No Brasil, uma primeira autoriza��o de uso foi concedida em 1998, mas foi quase imediatamente suspensa pela Justi�a. Em 2003, o governo concedeu uma autoriza��o de comercializa��o tempor�ria, definindo, por�m, a incinera��o das sementes remanescentes para evitar sua reutiliza��o no ano seguinte.
Em setembro daquele ano, uma medida provis�ria permitiu aos produtores reutilizar as sementes e, em outubro de 2004, a concess�o tempor�ria de venda foi renovada. Por fim, em mar�o de 2005, a Lei de Biosseguran�a autorizou permanentemente a produ��o e venda das sementes de soja transg�nicas.
O uso da soja geneticamente modificada se propagou rapidamente pelo Brasil a partir de 2004, representando 93% da �rea plantada do gr�o em meados da d�cada de 2010, segundo dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em ingl�s), citados pelo estudo dos pesquisadores de Princeton, FGV e Insper.
Junto ao ganho de produtividade da cultura de soja, o uso de glifosato cresceu fortemente no pa�s, mais do que triplicando em volume entre 2000 e 2010, de 39,5 mil toneladas para 127,6 mil toneladas.

Diferen�as entre o Brasil e outros pa�ses
Na Uni�o Europeia, desde 2015, h� um amplo debate sobre a possibilidade de proibi��o do uso do glifosato, ap�s um relat�rio da Ag�ncia Internacional de Pesquisa em C�ncer (Iarc, na sigla em ingl�s) daquele ano ter classificado a subst�ncia como "prov�vel carcin�geno humano", ou seja, como poss�vel agente causador de c�ncer.
Nos Estados Unidos, a Bayer j� desembolsou bilh�es de d�lares em acordos para encerrar processos judiciais quanto a acusa��es de que o glifosato provoca c�ncer.
"Na Uni�o Europeia, ao contr�rio do Brasil, o registro dos agrot�xicos sempre tem um tempo determinado. Aqui, quando um agrot�xico � registrado, esse registro � eterno, at� que ele eventualmente venha a ser questionado", explica Alan Tygel, membro da coordena��o nacional da Campanha Permanente Contra os Agrot�xicos e Pela Vida.
Na Europa, atualmente, a autoriza��o do uso do glifosato vale at� dezembro de 2022. A �ustria se tornou o primeiro pa�s da regi�o a banir o produto, em 2019, enquanto a Alemanha planeja prescindir do herbicida a partir de 2024.

Outra diferen�a importante, segundo o ativista, diz respeito ao valor m�ximo permitido de concentra��o do agrot�xico na �gua, para que ela seja considerada adequada para consumo humano.
"A �gua brasileira pode ser considerada pot�vel contendo at� 500 microgramas de glifosato por litro, enquanto a �gua da Uni�o Europeia pode ter no m�ximo 0,1 micrograma de glifosato", destaca Tygel. "Ent�o, o limite brasileiro � 5.000 vezes maior do que o limite da Uni�o Europeia."
N�o bastassem essas diferen�as regulat�rias j� existentes, o agroneg�cio brasileiro tem pressionado nos �ltimos anos pela aprova��o no Congresso do Projeto de Lei 6.299/2002, que flexibiliza as regras para fiscaliza��o e aplica��o dos agrot�xicos. O projeto foi apelidado por ambientalistas de "PL do Veneno".
Al�m disso, houve dentro do governo federal uma mudan�a na correla��o entre as for�as contr�rias e favor�veis ao uso dos agrot�xicos.
"At� 2016, havia dentro do governo um certo balan�o de for�as entre o agroneg�cio, a agricultura familiar e as pol�ticas p�blicas de incentivo � agroecologia", avalia o membro da campanha contra os agrot�xicos.
"A partir daquele ano, uma das primeiras a��es do governo Michel Temer [MDB] foi acabar com o Minist�rio do Desenvolvimento Agr�rio, que desenvolvia essas pol�ticas de agricultura org�nica. Desde ent�o, observamos um aumento exponencial no n�mero de registros de agrot�xicos", diz o ativista.
Somente em 2020, o Brasil aprovou o registro de 493 agrot�xicos, maior n�mero j� documentado pelo Minist�rio da Agricultura, que compila esses dados desde 2000.
Glifosato e mortalidade infantil
Os autores do estudo "Down the River: Glyphosate Use in Agriculture and Birth Outcomes of Surrounding Populations" ("Rio Abaixo: Uso de Glifosato na Agricultura e Desfechos de Nascimento nas Popula��es do Entorno", em tradu��o livre) contam que decidiram estudar a rela��o entre o pesticida e a mortalidade infantil devido ao acalorado debate quanto ao uso de sementes geneticamente modificadas e sua combina��o com herbicidas.
"Ach�vamos que o debate era muito apaixonado e muito desinformado", diz Rodrigo Soares, do Insper. "Ent�o nos demos conta de que a expans�o da soja transg�nica no Brasil, principalmente no Centro-Oeste e no Sul, como foi muito r�pida e muito marcada depois da introdu��o das sementes modificadas, poderia ser um contexto interessante para an�lise."
A mudan�a regulat�ria que permitiu o uso das sementes de soja transg�nicas no Brasil gerou o que se chama em economia de um "experimento natural" - um evento provocado por causas externas, que muda o ambiente no qual indiv�duos, fam�lias, empresas ou cidades operam, e que possibilita a compara��o entre grupos afetados e n�o afetados por esse acontecimento.
"Uma preocupa��o que existia � que pudesse haver contamina��o da �gua, pois estudos toxicol�gicos nos Estados Unidos, Argentina e Brasil detectavam a presen�a de glifosato em rios, mas de forma pontual, n�o sistem�tica", conta Soares.
"Para avaliar isso, usamos informa��es sobre as bacias hidrogr�ficas no pa�s e a posi��o relativa dos munic�pios - acima ou abaixo de �reas de uso intensivo de glifosato", explica o pesquisador.
"Foi uma forma de entender como a expans�o do uso de soja transg�nica e do glifosato num determinado munic�pio poderia afetar os munic�pios que recebem �gua que passa por essa regi�o onde se faz uso do agrot�xico."

O que os pesquisadores fizeram ent�o foi analisar, para o per�odo entre 2004 e 2010, quando ocorreu a maior expans�o da produ��o de soja transg�nica no Brasil e o uso do glifosato triplicou, as estat�sticas de nascimento de
sses munic�pios "rio abaixo" de �reas de uso intensivo do herbicida.
"O que demonstramos � que h� uma deteriora��o nas condi��es de sa�de ao nascer nesses munic�pios rio abaixo dos munic�pios que expandiram a produ��o de soja", diz o professor do Insper.
Dentro dessa deteriora��o nas condi��es de sa�de ao nascer est�o: maior probabilidade de baixo peso ao nascer, maior probabilidade de nascimentos prematuros e - o mais grave - aumento da mortalidade infantil.
"Produzimos tamb�m uma s�rie de outras an�lises emp�ricas para mostrar que isso estava de fato associado � �gua e que isso de fato parece estar associado � expans�o da soja."
Isolando o efeito do glifosato
Por exemplo, comparando os dados dos munic�pios "rio abaixo", com munic�pios "rio acima" - que portanto n�o recebem a �gua que passou por �reas de uso do glifosato - os pesquisadores constatam que os munic�pios "rio acima" n�o s�o afetados por essa piora das estat�sticas de nascimento.
Os pesquisadores tamb�m demonstram que os efeitos negativos sobre os resultados de sa�de ao nascer s�o particularmente fortes para gesta��es mais expostas ao per�odo de aplica��o do glifosato, que no Brasil tipicamente ocorre entre outubro e mar�o, posto que a soja � plantada no pa�s entre outubro e janeiro.
A piora nos dados de nascimento tamb�m � maior quando chove mais na temporada de aplica��o do glifosato, mostram os pesquisadores ao cruzar as estat�sticas de sa�de com dados pluviom�tricos, o que est� de acordo com a ideia de que uma quantidade maior do produto chega aos rios quando a eros�o do solo pela chuva � mais significativa.
Mateus Dias, doutorando da universidade de Princeton e coautor de Soares no estudo, explica ainda a op��o por analisar munic�pios rio abaixo e rio acima, em vez dos munic�pios que aplicam o glifosato em si.
"O glifosato quando utilizado tem um impacto na produtividade da soja, isso pode acabar afetando a mortalidade infantil naquele munic�pio por outros caminhos, por exemplo, a maior produtividade pode gerar uma maior renda e isso diminuir a mortalidade infantil", afirma.
Os pesquisadores tamb�m avaliaram se a expans�o da soja afetou a erodibilidade do solo devido ao avan�o da agricultura sobre �reas de floresta.
"Mostramos que isso n�o aconteceu, pois essas �reas que come�aram a plantar soja parecem ter sido antes pastagens, ent�o n�o houve mudan�a radical na vegeta��o e, por consequ�ncia, n�o houve mudan�a significativa na erodibilidade do solo", relata Dias.

Setor agro contesta resultados
A BBC News Brasil encaminhou o estudo realizado por Dias, Rocha e Soares para a Bayer, a Aprosoja e a CropLife Brasil para que a fabricante do herbicida, a associa��o do setor sojicultor e a entidade representativa da ind�stria de defensivos agr�colas comentassem os resultados.
A Bayer afirmou, atrav�s de sua assessoria de imprensa, que "as descobertas equivocadas da publica��o derivam de uma combina��o de suposi��es imprecisas e uma cole��o de resultados de estudos n�o confi�veis e mal conduzidos".
"As conclus�es dos autores s�o inconsistentes com o consenso expressivo entre as principais autoridades de sa�de em todo o mundo, incluindo a Anvisa, autoridade sanit�ria no Brasil, de que o glifosato n�o causa danos ao desenvolvimento ou � reprodu��o humana", afirmou a atual dona da Monsanto.
J� a Aprosoja afirmou em nota que diversos estudos mostram que o glifosato � facilmente degradado quando em contato com solos de carga vari�vel, �xidos de alum�nio, ferro e da degrada��o microbiana.
"Ou seja, as refer�ncias que estabelecem o nexo de casualidade apontada pelos pesquisadores n�o foram obtidas no Brasil, pois os solos tropicais brasileiros apresentam elevada carga vari�vel, possuem elevados teores de alum�nio e ferro e, com as t�cnicas de plantio como o plantio direto, de microbioliza��o de sementes, entre outras, os solos brasileiros s�o ricos em uma biomassa ativa, ou seja, uma elevada atividade microbiana", argumenta a associa��o agr�cola.
A Aprosoja tamb�m critica a correla��o feita pelos pesquisadores entre o que chama de "poss�veis danos" com a soja resistente ao glifosato.
"Novamente, os autores se esqueceram ou apenas n�o sabem ao certo o que querem responder pois, al�m da soja, diversas culturas utilizam o glifosato no controle de ervas daninhas", argumenta a entidade.
A CropLife Brasil destaca que os agrot�xicos utilizados no pa�s passam por aprova��o de tr�s inst�ncias diferentes - Anvisa, Ibama e Minist�rio da Agricultura; que os tr�s �rg�os analisam estudos de destino ambiental, toxicol�gicos e de res�duos que seguem metodologias internacionais de qualidade; e que em cada um desses registros � preciso apresentar testes e estudos realizados em laborat�rios certificados em boas pr�ticas, que devem ser conduzidos de acordo com os protocolos da OCDE (Organiza��o para Coopera��o e Desenvolvimento Econ�mico).
Resultados do estudo podem contribuir para melhora da regula��o
Segundo os pesquisadores, o objetivo do estudo n�o � "demonizar" o glifosato, mas contribuir para uma melhora das pol�ticas p�blicas de regula��o do uso dos agrot�xicos no pa�s.
"Sabemos o que significou, ao longo da hist�ria humana, o uso de subst�ncias agr�colas em geral - os fertilizantes, os herbicidas, os pesticidas. Eles de fato possibilitaram uma revolu��o em termos de produ��o agr�cola e, no resultado l�quido, eu acredito que o efeito foi muito positivo", afirma Soares, do Insper.
"S� temos a produ��o que temos hoje, com seu impacto sobre o pre�o dos alimentos e sobre as popula��es envolvidas com a agricultura que se beneficiam dos ganhos de produtividade, por causa dessas subst�ncias", acrescenta.
"Isso n�o quer dizer que n�o devamos estar atentos aos potenciais efeitos negativos", afirma, defendendo mudan�as nas regula��es de uso e manejo dos agrot�xicos e de prote��o dos cursos de �gua e len��is fre�ticos.
Alan Tygel, da Campanha Permanente Contra os Agrot�xicos e Pela Vida - criada em 2011 e composta por mais de uma centena de movimentos sociais, entidades sindicais e de classe, ONGs, cooperativas, universidades e institui��es de pesquisa -, tem uma opini�o mais radical sobre o tema.
"Consideramos que o objetivo central � de fato acabar com o uso dessas subst�ncias, especialmente porque hoje n�o resta d�vida quanto � capacidade t�cnica de produ��o de alimentos sem o uso de agrot�xicos qu�micos e sint�ticos", argumenta o ativista.
Segundo ele, as propostas da campanha est�o contidas num projeto de lei (PL 6670/2016), que institui uma Pol�tica Nacional de Redu��o de Agrot�xicos, com medidas que incluem desde a proibi��o da pulveriza��o a�rea, passando pelo apoio estatal � agroecologia, at� a proibi��o de agrot�xicos proibidos em seus pa�ses de origem e o fim das isen��es fiscais para agrot�xicos.
"Vamos lutar por cada pequeno ganho que a gente possa ter, pois sabemos que cada percentual a menos de agrot�xico que seja usado s�o vidas que est�o sendo salvas", afirma Tygel.
"Mas sabemos que n�o existe coexist�ncia poss�vel entre produ��o org�nica e o uso massivo de agrot�xicos. O caminho que vislumbramos � de um modelo de produ��o que possa ser adotado nacionalmente totalmente livre de agrot�xicos e transg�nicos."
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