
Os pr�prios fabricantes do medicamento, com exce��o do Ex�rcito, n�o recomendam o rem�dio contra o coronav�rus. Em outubro de 2020, a Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS) rejeitou de forma conclusiva e, em dezembro, contraindicou “fortemente” essa utiliza��o do medicamento, que, mesmo sem efic�cia comprovada contra a doen�a, continua sendo defendida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
De acordo com Ana Paula Herrmann, doutora em bioqu�mica e professora do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o m�dico tamb�m erra ao afirmar que a cloroquina inibe a entrada do v�rus no organismo e que sua a��o imunossupressora –um dos benef�cios da droga para pacientes com doen�as autoimunes, como o l�pus – funcione no “tratamento precoce”. “A a��o imunossupressora poderia ter efeito apenas na fase inflamat�ria da doen�a, ou seja, em casos graves e, por isso, n�o teria sentido em um tratamento precoce”, diz.
Outro especialista entrevistado pelo Comprova, Adriano Defini Andricopulo, professor de Qu�mica Medicinal da Universidade de S�o Paulo (USP) e diretor-executivo da Academia de Ci�ncias do Estado de S�o Paulo, aponta que as declara��es no v�deo se resumem � desinforma��o. “� preciso ficar claro que est� sendo feita a indica��o de um medicamento que n�o funciona para a covid-19 e, mais do que isso, h� o risco de provocar arritmia card�aca e outros efeitos adversos. Ou seja, n�o tem benef�cio e ainda pode afetar a sa�de do indiv�duo.”
Procurado, o m�dico Guilherme Sorrentino afirmou que tratou seus pacientes “e, gra�as � hidroxicloroquina”, teve “muito sucesso”. E completou: “Em tempo, n�o devo explica��o nenhuma para uma pessoa que eu n�o conhe�o”.
Como verificamos?
O Comprova buscou as verifica��es que j� publicou sobre a hidroxicloroquina e tamb�m pesquisou reportagens sobre o medicamento e comunicados de �rg�os como OMS, Anvisa e os fabricantes do medicamento.
Al�m disso, entrevistou, por telefone, a biom�dica Ana Paula Herrmann e o p�s-doutor em Qu�mica Medicinal Adriano Defini Andricopulo, depois que ambos assistiram ao v�deo.
A equipe buscou informa��es sobre o autor do v�deo, Guilherme Sorrentino, e trocou mensagens com ele via Instagram.
Por �ltimo, o Comprova entrou em contato com a assessoria do Hospital Albert Einstein para verificar o posicionamento da institui��o em rela��o � hidroxicloroquina.
O Comprova fez esta verifica��o baseado em informa��es cient�ficas e dados oficiais sobre o novo coronav�rus e a covid-19 dispon�veis no dia 25 de maio de 2021.
Verifica��o
No v�deo, com quase 10 minutos de dura��o, o cirurgi�o Guilherme Sorrentino come�a a sua apresenta��o pedindo que as pessoas compartilhem o conte�do, alegando que o objetivo � ajudar. O m�dico admite que n�o � especialista na �rea, mas discorre sobre rem�dios que n�o t�m efic�cia para a covid-19. Num dos trechos, ele diz que vai tirar o v�deo do ar “em breve” porque n�o quer se incomodar.
Depois, Sorrentino faz refer�ncia a mecanismos que explicariam a raz�o para adotar o medicamento no combate ao coronav�rus (eles ser�o tratados abaixo). O professor Adriano Andricopulo, da USP, aponta que mecanismos testados no in�cio da pandemia foram descartados porque se verificou que a cloroquina n�o � eficaz para a covid-19.
Ele tamb�m cita outros medicamentos – tamb�m sem efic�cia comprovada contra a doen�a. Ao longo de toda a grava��o, Sorrentino usa v�rios termos cient�ficos, dificultando a compreens�o do conte�do por leigos, como constata Andricopulo. “� uma estrat�gia: fala coisas dif�ceis, fora do alcance das pessoas que v�o assistir ao v�deo, e passa adiante a fake news”, avalia.
O que dizem especialistas
A biom�dica e professora da UFRGS Ana Paula Herrmann tamb�m afirma que o conte�do do v�deo est� equivocado. Ela observa que Sorrentino mistura algumas poucas informa��es corretas com outras totalmente erradas para justificar o uso da cloroquina em pacientes com a covid-19, rem�dio que j� se comprovou n�o ter efic�cia para a doen�a.
Um dos exemplos citados pela professora � a “porta de entrada” do Sars-Cov-2 (o coronav�rus que causa a covid-19) no organismo. De fato, a prote�na ACE-2 tem esse papel, como disse Sorrentino, mas n�o � verdade que a cloroquina tenha o efeito de inibir a entrada, como tamb�m declarou o m�dico no v�deo.
Sorrentino ainda faz refer�ncia � fun��o imunossupressora da cloroquina, um dos benef�cios da droga para pacientes com doen�as autoimunes, como o l�pus, exemplifica Ana Paula. Contudo, explica a professora, a a��o imunossupressora poderia ter efeito apenas na fase inflamat�ria da doen�a, ou seja, em pacientes graves e internados e, por isso, n�o teria sentido em um “tratamento precoce”.
“Todo o v�deo tem um certo verniz cient�fico, usa termos sobre a biologia das c�lulas, do v�rus, mas � equivocado. As pessoas ouvem sobre Complexo de Golgi, lisossomos, e podem pensar que ele sabe do que est� falando, mas o v�deo tem um monte de informa��o incorreta e nenhuma evid�ncia cient�fica (para o uso da cloroquina contra a covid-19)”, ressalta Ana Paula.
Outro aspecto observado pela professora � o trecho em que Sorrentino aborda a “alcaliniza��o do sangue.” Ana Paula trata esse ponto como uma “grande bobagem” que, segundo ela, j� h� muito tempo, antes dos aplicativos de mensagem se popularizarem, circulava em forma de power point por e-mail. “O pH do sangue � extremamente regulado e dizer o contr�rio � uma completa besteira”, garante.
Para Adriano Defini Andricopulo, as declara��es de Sorrentino se resumem � desinforma��o. Ele lembra que, no in�cio da pandemia, mecanismos citados pelo cirurgi�o at� eram poss�veis de se admitir quando foram realizados os ensaios in vitro (laborat�rio). “Mas, depois, quando feitos os testes com c�lulas do trato respirat�rio, foi constatada a aus�ncia de benef�cios”, ressalta o professor, refor�ando posicionamento cr�tico ao fato de que ainda hoje, ap�s in�meras evid�ncias como os alertas da Organiza��o Mundial de Sa�de (OMS), a cloroquina seja divulgada para o tratamento de casos de coronav�rus.
“� preciso ficar claro para as pessoas que est� sendo feita a indica��o de um medicamento que n�o funciona para a covid-19 e, mais do que isso, h� o risco de provocar arritmia card�aca e outros efeitos adversos. Ou seja, n�o tem benef�cio e ainda pode afetar a sa�de do indiv�duo”, frisa o professor, com mais de 30 anos de experi�ncia na �rea de f�rmacos.
Inefic�cia
O apoio ao medicamento se disseminou ap�s a publica��o, em mar�o de 2020, de um estudo conduzido pelo franc�s Didier Raoult. Segundo a pesquisa, o uso da cloroquina teria curado 75% dos pacientes com covid-19 em seis dias. Mas o estudo foi alvo de cr�ticas da revista Science, refer�ncia em estudos cient�ficos, e seus resultados foram questionados e considerados incompletos.
O ent�o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, passou a apoiar o medicamento e, logo depois, Jair Bolsonaro (sem partido) encampou o mesmo discurso. J� em 21 de mar�o de 2020, Bolsonaro anunciou que o Ex�rcito ampliaria a produ��o do rem�dio no pa�s para pacientes com o coronav�rus. Quatro dias depois, o Minist�rio da Sa�de emitiu uma nota t�cnica autorizando seu uso em pacientes graves.
Nos meses seguintes, Bolsonaro demitiu dois ministros da sa�de, Luiz Henrique Mandetta, em 16 de abril, e Nelson Teich, em 15 de maio. Ambos s�o m�dicos e se opunham � prescri��o de cloroquina para tratar pacientes com quadros leves da doen�a.
Em 20 de maio, o Minist�rio da Sa�de, j� tendo como ministro interino o general Eduardo Pazuello, passou a orientar o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no “tratamento medicamentoso precoce” de pacientes com o novo coronav�rus, mas ressaltava que “ainda n�o h� meta-an�lises de ensaios cl�nicos multic�ntricos, controlados, cegos e randomizados que comprovem o benef�cio inequ�voco dessas medica��es para o tratamento da covid-19”.
S� naquele m�s, o Comprova publicou quatro verifica��es sobre o uso da cloroquina – todas com a etiqueta de conte�do enganoso.
Enquanto o chefe do governo federal defendia o medicamento sem efic�cia comprovada, alguns m�dicos do Brasil todo passaram a fazer o mesmo. Come�aram a surgir falsas teorias de que cidades, como Porto Feliz, teriam evitado mortes pelo v�rus por terem adotado o tratamento com o rem�dio.
Ainda em outubro de 2020, a OMS rejeitou de forma conclusiva o uso da cloroquina no combate ao coronav�rus e, quatro meses depois, a Apsen, maior fabricante do medicamento no Brasil, afirmou que n�o recomendava que ele fosse usado para este fim. Outras tr�s farmac�uticas –Farmanguinhos/Fiocruz, EMS e Sanofi-Medley j� haviam feito declara��es nesse sentido. A Crist�lia, outra das seis fabricantes, divulgou um texto em mar�o deste ano em que um representante ressaltou: “N�o vendo nenhum produto fora do que a Anvisa autorizou. Ela autoriza para algumas coisas, como mal�ria, mas n�o tem nada a ver com covid. Na minha bula, que � dada pela Anvisa, s� forne�o cloroquina para estes fins espec�ficos”. O sexto produtor � o Laborat�rio do Ex�rcito, pertencente ao governo federal, que continua defendendo o medicamento.
Testes para pacientes com HIV
Durante o v�deo, Guilherme Sorrentino ainda menciona a exist�ncia de estudos com a cloroquina para a Aids, que estariam apresentando resultados positivos, mas foram interrompidos.
De fato, segundo a professora Ana Paula Herrmann, a droga foi testada para diversas infec��es virais, como a provocada pelo HIV, mas n�o houve comprova��o da sua efic�cia para tratar outras doen�as al�m daquelas para as quais j� � indicada.
Ela conta que, em uma revis�o sistem�tica relativamente recente, h� pelo menos seis estudos sobre o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina para HIV. Cinco desses estudos s�o ensaios cl�nicos controlados, realizados de 1995 a 2016, e o que apresenta o menor risco de vi�s (possibilidade de distor��o) e usou mais pacientes n�o encontrou nenhum efeito da droga para HIV.
“De forma geral, s�o estudos pequenos, que n�o passam de 50 participantes em cada grupo, e com alto risco de vi�s”, pontua.
A professora diz que tamb�m foi avaliado o efeito da subst�ncia em outras infec��es virais, tais como gripe, hepatite C e dengue, mas n�o se chegou a nenhum resultado substancial.
Ela afirma ainda que os resultados foram observados em ensaios in vitro e refor�a que nem tudo o que � alcan�ado em laborat�rio pode ser aplicado em seres humanos.
“A maioria das coisas in vitro n�o funciona na cl�nica. Ent�o, n�o quer dizer que, se inibe a replica��o viral in vitro, vai ter efeito cl�nico. S�o situa��es completamente diferentes. Existem estudos cl�nicos da cloroquina para HIV, sim, mas nada que demonstre de maneira robusta a sua efic�cia para esta ou outras condi��es virais”, finaliza Ana Paula.
Outros rem�dios
Sorrentino tamb�m engana quando se refere a outros medicamentos, tamb�m sem citar seus nomes. “Eu falei sobre um rem�dio (a hidroxicloroquina); e os outros… o rem�dio para piolho? Tamb�m funciona. O rem�dio para verme? Tamb�m funciona”, diz ele, no v�deo.
O m�dico pode estar se referindo apenas � ivermectina, que combate piolhos e vermes, ou � ivermectina e outros, como o verm�fugo nitazoxanida.
Em todo caso, embora ambos j� tenham sido defendidos por Jair Bolsonaro, n�o h� at� aqui nenhum medicamento com efic�cia comprovada contra o coronav�rus. A ivermectina, segundo o bul�rio eletr�nico da Anvisa, “� indicada para o tratamento de v�rias condi��es causadas por vermes ou parasitas” e funciona no tratamento de infec��es como “estrongiloid�ase intestinal, oncocercose, filariose (elefant�ase), ascarid�ase (lombriga), escabiose (sarna) e pediculose (piolho)” – ou seja, n�o combate o coronav�rus.
Ainda de acordo com a pr�pria Anvisa, as “indica��es aprovadas para a ivermectina s�o aquelas constantes da bula” , segundo comunicado do �rg�o em 10 de julho de 2020.
Outro antiparasit�rio, a nitazoxanida, tamb�m foi defendido pelo governo Bolsonaro. Segundo a bula da Anvisa, ela “age contra protozo�rios por meio da inibi��o de uma enzima indispens�vel � vida do parasita”, o que tamb�m “parece ocorrer em rela��o aos vermes, embora outros mecanismos, ainda n�o totalmente esclarecidos, possam estar envolvidos”. O medicamento tamb�m funciona contra v�rus: “a a��o se d� atrav�s da inibi��o da s�ntese da estrutura viral, bloqueando a habilidade do v�rus em se replicar”.
Em outubro do ano passado, o Minist�rio da Ci�ncia, Tecnologia e Informa��o publicou que o medicamento era eficiente contra o coronav�rus, mas o estudo, em preprint, foi criticado por falhas e mostrou resultado similar ao do placebo.
O autor do v�deo
Em seu perfil no Instagram, e tamb�m no Linkedin, Guilherme Sorrentino se apresenta como cirurgi�o pl�stico. Na primeira rede, ele informa atuar em Porto Alegre. Em uma busca pelo seu nome no Google, um dos resultados leva para o site de Victor Sorrentino, que oferece um curso on-line chamado Vida & Sa�de, para “voc� poder cuidar da sa�de, f�sica e emocional, de uma maneira muito mais completa e eficaz”.
J� uma pesquisa no Conselho Federal de Medicina (CFM) traz duas inscri��es. A mais antiga � de 9 de janeiro de 2008 e exibe como “especialidades/�reas de atua��o” cirurgia geral e cirurgia pl�stica. Na mais recente, de 31 de janeiro de 2011, ele aparece como “m�dico sem especialidades registradas”.
No v�deo verificado aqui, ele diz estar atuando na linha de frente da pandemia, mas o Comprova n�o conseguiu checar essa informa��o. A reportagem perguntou para ele onde ele est� atendendo pacientes com covid, mas ele n�o respondeu essa quest�o.
Ao primeiro contato do Comprova ele respondeu ter tido sucesso tratando pacientes com hidroxicloroquina e que n�o devia explica��o nenhuma para a reportagem. “Se quiser agendar uma consulta, eu mostro o artigo e ensino muito mais sobre a covid do que os teus colegas da m�dia”, escreveu.
Uma das perguntas feitas pelo Comprova foi sobre a seguinte afirma��o que ele faz no v�deo: “(Quero) Agradecer aos meus amigos, aos pacientes que confiam em mim, que est�o tamb�m utilizando das minhas informa��es para n�o s� se tratarem mas para poder tratar familiares e amigos”. Sorrentino afirmou que eles “usam informa��es gerais, como alimenta��o, suplementa��o, h�bitos saud�veis, uso de m�scara e �lcool gel. Al�m de orienta��es sobre como saber quando est� com suspeita de covid e a quem recorrer. Em nenhum momento oriento utilizar medica��es que, obviamente, precisam ser prescritas e carimbadas por m�dico”.
Ao final, ele enviou uma apresenta��o com o logotipo do Hospital Albert Einstein, de S�o Paulo, com o t�tulo “Hidroxicloroquina, um composto menos t�xico que a cloroquina, � capaz de inibir a replica��o do Sars-CoV-2 in vitro”, afirmando que “n�o precisamos ir muito longe para saber sobre a farmacologia da Hidroxicloroquina”. Mas, como informa o t�tulo, trata-se de um estudo in vitro, o que n�o comprova a efic�cia no tratamento em humanos. Al�m disso, consultado, o Einstein afirma que n�o apoia o uso deste medicamento contra a covid.
Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Projeto Comprova investiga conte�dos possivelmente falsos ou enganosos sobre a pandemia que tenham alcan�ado alto grau de viraliza��o nas redes sociais, como o v�deo verificado aqui, que foi visualizado mais de 5.860 vezes no perfil do m�dico no Instagram.
Conte�dos suspeitos sobre medicamentos sem efic�cia comprovada colocam a popula��o em risco, pois podem dar a entender que basta tomar o rem�dio para estar imune ao coronav�rus, o que � mentira. � importante que todos saibam que � preciso seguir as medidas realmente eficazes na redu��o dos casos de covid-19, como a vacina��o, o uso de m�scaras e �lcool em gel, a lavagem das m�os e o distanciamento social.
Materiais como esse j� foram alvo de v�rias checagens do Comprova. O projeto mostrou, por exemplo, que � falso que 52 munic�pios tenham zerado o n�mero de mortes ao supostamente adotarem o “tratamento precoce” e que um protocolo italiano de atendimento domiciliar n�o tem rela��o com o conjunto de rem�dios sem efic�cia comprovada.
Enganoso, para o Comprova, � qualquer conte�do que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpreta��o diferente da inten��o de seu autor; e o conte�do que confunde, com ou sem a inten��o deliberada de causar dano.