
"Uma experi�ncia muito ruim e dolorosa". � assim que o coronel reformado da PM, Celso Novaes, descreve a opera��o de busca e captura dos irm�os Ibraim e Pedro Henrique de Oliveira, de 19 e 21 anos, respectivamente.
A ca�ada policial teve in�cio no dia 27 de fevereiro de 1995, quando o casal Jo�o Carlos Maria da Rocha, de 30 anos, e Elizete Ferreira Lima, de 39, foi atacado enquanto tomava banho em uma cachoeira de Janela das Andorinhas, na zona rural de Nova Friburgo, e chegou ao fim em 16 de dezembro daquele ano, quando Ibraim foi morto a tiros por um capit�o do Batalh�o de Opera��es Policiais Especiais (Bope).
Por manterem rela��es sexuais com os cad�veres de suas v�timas, ficaram conhecidos como os "Irm�os Necr�filos" - a necrofilia caracteriza-se pela excita��o sexual decorrente da vis�o ou de um contato com um cad�ver.
"Por v�rias noites, fiquei acordado, sem conseguir dormir. Ficava debru�ado na janela, pensando no que eu tinha que fazer para prender aqueles dois. A gente n�o via luz no fim do t�nel. S� desespero!", recorda Novaes, ent�o comandante do 11º Batalh�o de Pol�cia Militar (BPM) de Nova Friburgo, na regi�o serrana do Rio.Filhos de um casal de lavradores, Br�s e Maria Luiza Soares de Oliveira, Ibraim e Henrique nasceram e cresceram na �rea rural da serra fluminense. Tinham mais dois irm�os: Ja�lton, de 17 anos, e M�rcia, a ca�ula, de 16. Nenhum dos quatro aprendeu a ler ou a escrever.
"O pai era alco�latra e, quando bebia, espancava os filhos", diz Paulo Storiani, ex-capit�o do Bope (Batalh�o de Opera��es Policiais Especiais) e consultor do filme Macabro (2019), inspirado na hist�ria real dos irm�os.
"Em outras ocasi�es, expulsava os meninos de casa e os obrigava a dormir na mata. A m�e, com pena, jogava comida pela janela".
Viol�ncia sexual post-mortem
Os primeiros crimes foram cometidos em 1991: Eliana Macedo Xavier, de 21 anos, no dia 15 de fevereiro, e Norma Cl�udia de Ara�jo, de 11, no dia 11 de setembro. As duas foram estranguladas por fios de arame em Riograndina, em Nova Friburgo. Os peritos que analisaram os corpos detectaram sinais de necrofilia.
Em depoimento � pol�cia, o irm�o mais novo, Ibraim, ent�o com 16 anos, assumiu a autoria do assassinato de Norma, mas negou a participa��o de Henrique. Preso, foi mandado para o Instituto Padre Severino (IPS), na Ilha do Governador, zona norte do Rio, onde ficou at� completar 18 anos.
Destinado � interna��o provis�ria de jovens infratores, o Instituto Padre Severino foi criado em 1954 e extinto em 2012.
"Dizem que, l� dentro, Ibraim sofreu abuso sexual e maus-tratos. Quando foi solto, saiu pior do que entrou", lamenta Novaes.
Como dois animais
Em 1995, a onda de crimes recome�ou em Nova Friburgo. O primeiro deles foi registrado no dia 27 de fevereiro, uma segunda-feira de Carnaval: Jo�o Carlos foi morto a pedradas e sua mulher, apesar de ferida, conseguiu escapar, se jogando de um barranco.
No hospital, a descri��o feita por Elizete dos assassinos de seu marido coincidiu com a dos "irm�os necr�filos". Revoltados, alguns moradores da regi�o incendiaram o casebre da fam�lia Oliveira. Com medo de serem linchados, o pai, a m�e e os filhos mais novos teriam fugido da cidade e, segundo relatos, procurado abrigo em Itabora�, a 84 quil�metros de dist�ncia.
No dia 1º de abril, Ibraim e Henrique fizeram mais uma v�tima: a pr�pria tia, Vera L�cia Damasceno, de 35 anos, morta a facadas. O crime ocorreu em Riograndina. Entre um assassinato e outro, os dois se embrenhavam na mata e ningu�m conseguia localiz�-los. "As matas eram muito densas, fechadas. Tr�s metros para dentro e voc� j� n�o conseguia enxergar mais nada", garante Storiano.
Em fuga, os irm�os invadiam s�tios e ch�caras para roubar comida, saqueavam as roupas penduradas no varal das casas, percorriam rios e c�rregos para n�o deixar rastros e, � noitinha, dormiam em grutas e cavernas ou improvisavam acampamentos no meio da mata. "Comiam animais crus", relata o cineasta Marcos Prado, diretor de Macabro (2019). "N�o cozinhavam para n�o fazer fuma�a".
Em 17 de maio, a v�tima foi Odete de Carvalho Silva, de 56 anos, morta a golpes de foice, tamb�m em Riograndina. O secret�rio de Seguran�a P�blica do Rio, o general da reserva Nilton Cerqueira, do ent�o governador do Estado, Marcello Alencar (1925-2014), decidiu acionar o Bope para ajudar a pol�cia local a capturar os assassinos.

Justi�a com as pr�prias m�os
Diante da demora das autoridades em prender Ibraim e Henrique, os habitantes da regi�o, em sua maioria camponeses e agricultores, resolveram trocar as enxadas por espingardas.
Mulheres e crian�as evitavam sair � noite. E, quando sa�am, andavam em grupos, armados de rev�lveres e fac�es. Muitas fam�lias abandonaram suas casas e se mudaram para outros munic�pios.
Houve morador que, por medida de seguran�a, preferia passar a noite em frente � delegacia de pol�cia. "O p�nico tomou conta da cidade. A popula��o come�ou a dizer que tinha visto o Ibraim em v�rios lugares ao mesmo tempo", relembra Storiano.
Vinte e seis anos depois, Novaes atribui a demora na captura dos "irm�os necr�filos" a dois fatores: a grande extens�o da �rea - s� o povoado de Janela das Andorinhas, na zona rural de Nova Friburgo, tem algo em torno de 120 mil metros quadrados de Mata Atl�ntica - e a falta de preparo da tropa.
"Fomos treinados para combater bandido em favela e n�o na floresta. N�o recebemos treinamento em guerrilha rural", reclama. A situa��o s� come�ou a mudar depois que Novaes passou a trabalhar com mateiros e c�es da ro�a. "Para despistar os c�es da pol�cia, Ibraim e Henrique espalhavam o sangue das v�timas pelo corpo", explica o ex-comandante da PM.
No dia 27 de julho, mais um assassinato: �ria Moraes Ornelas, de 67 anos, no distrito de Banquete, em Bom Jardim. Dessa vez, a v�tima foi enforcada com a pr�pria saia na cozinha de casa. Os peritos do Instituto M�dico Legal (IML) atestaram a pr�tica de viol�ncia sexual post-mortem em todos os crimes.
A dois passos do inferno
A opera��o do Bope foi dividida em quatro fases. A primeira contou com 12 homens. A �ltima, com todo o efetivo do batalh�o. Quem conta � Paulo Storiano, o subcomandante da terceira fase, que passou cerca de um m�s e meio na serra fluminense.
Entre outras medidas, o Bope mapeou todas as trilhas da regi�o, entrevistou parentes e familiares dos "irm�os necr�filos" e, com a orienta��o de uma psic�loga da PM, tra�ou o perfil de Ibraim e Henrique.
"Sab�amos que, mais cedo ou mais tarde, n�s �amos peg�-los. Era s� uma quest�o de tempo", recorda Storiano.
O pr�ximo passo, explica, foi distribuir patrulhas fixas e m�veis pelas trilhas da regi�o. As patrulhas fixas eram formadas por dois agentes cada, que permaneciam camuflados no meio do mato, praticamente em sil�ncio, em turnos de 32 horas.
J� as patrulhas fixas eram compostas por quatro integrantes cada, que percorriam as trilhas da regi�o, com mateiros e c�es farejadores. Outra estrat�gia adotada pelo Bope foi trocar a indument�ria dos seus agentes. Em vez de fardas e uniformes, roupas � paisana. No lugar de viaturas, carros civis.
Em setembro, por pouco, muito pouco mesmo, M�rcia Cristina de Melo, de 18 anos, n�o entrou para a estat�stica dos crimes dos "irm�os necr�filos".
Na hora do ataque, ela estava em casa, em companhia da m�e, Raquel, e da irm�, Andr�a, quando Ibraim tentou invadir o s�tio da fam�lia. Com o 38 do pai, Joaquim Martins de Melo, M�rcia atirou contra a porta e afugentou o invasor.

Fake news
O �ltimo assassinato ocorreu em 18 de novembro de 1995. Por volta do meio-dia, Maria Dorcileia Faltz, de 39 anos, foi morta a golpes de fac�o e porrete, e seu filho, Adriano Faltz Gomes, de apenas nove, a pauladas. Detalhe: Maria Dorcileia estava gr�vida de sete meses. O crime aconteceu em Janela das Andorinhas.
O prefeito de Nova Friburgo, Her�doto Bento de Mello (1925-2018), chegou a oferecer uma recompensa de R$ 5 mil para quem ajudasse a pol�cia a localizar os assassinos.
"�s vezes, dar ouvidos � comunidade atrapalha um bocado. Acredita que, na �poca, o pessoal passava trote para a pol�cia? Pois �, diziam que tinham visto os irm�os passeando de carro pela cidade e os dois nem sabiam dirigir", queixa-se Novaes. "Com o L�zaro, em Goi�s, a mesma coisa. Disseram que ele foi visto em Foz do Igua�u, no Paran�, e at� no Paraguai".
Na madrugada de 24 de novembro, Ibraim e Henrique invadiram uma ch�cara em Mariana, em Sumidouro, que pertencia a Vera L�cia Matias, de 35 anos. Comeram tudo o que encontram na despensa: arroz, ovos, farinha, requeij�o, cebola...
Cortaram fios el�tricos e levaram pilhas para lanternas. "Certa vez, a tropa estava quase capturando os irm�os. Sabe o que eles fizeram? Derrubaram uma casa de marimbondo e mandaram quase 60 homens para o hospital", relata Novaes.
O dia do ca�ador
A ca�ada chegou ao fim no dia 16 de dezembro de 1995. A essa altura, pelos c�lculos de Novaes, cerca de 700 homens participavam da opera��o: 300 da PM, 300 do Bope e 100 volunt�rios.
Naquele s�bado, o lavrador C�sar Ara�jo Pinto, de 46 anos, avistou Ibraim em um povoado chamado S�tio do Coronel, na Fazenda do Barro Branco, e avisou a pol�cia. Como mateiro, Pinto ganhava R$ 10 por dia da prefeitura de Nova Friburgo.
Encurralado, Ibraim ainda tentou atacar a patrulha com um fac�o, mas foi atingido pelo subcomandante do Bope, o capit�o Fernando Pr�ncipe Martins, que efetuou cinco disparos. Mesmo ferido, Ibraim correu para o mato, onde foi encontrado, morto, duas horas depois.
"O comportamento do Ibraim era animalesco", define Storiano. "Fugia como se fosse um animal selvagem, correndo sobre os membros superiores e inferiores".
Quando soube da morte de Ibraim, a popula��o de Nova Friburgo, em um misto de al�vio e revolta, correu para o IML. Para evitar quebra-quebra, a pol�cia transferiu seu cad�ver para a vizinha Itabora�. O corpo de Ibraim foi enterrado, poucos dias depois, como indigente em um cemit�rio local.
Pacto com o Diabo
Com medo de ser morto pela pol�cia ou linchado pela popula��o, Henrique continuou foragido por alguns meses.
Segundo jornais da �poca, se apresentou � promotora respons�vel pelo caso, Elizabeth Carneiro de Lima, no dia 17 de junho de 1996, alegando inoc�ncia. Bastante debilitado, contou � promotora que sobreviveu na ro�a, comendo milho, banana e tomate, entre outros alimentos, que saqueava dos s�tios ou colhia nas lavouras.
Foi condenado por j�ri popular, no dia 1º de setembro de 2000, a 34 anos de pris�o. "O Henrique foi solto h� uns seis anos, mas acabou se metendo com traficantes", conta Prado. "Quando saiu, tentou entrar no pres�dio com drogas e foi preso novamente. Condenado a sete anos, cumpre pena em Maric�".

A brutalidade dos crimes chamou a aten��o do cineasta que, em 2019, resolveu transformar a hist�ria dos "irm�os necr�filos" em thriller policial. No roteiro de Lucas Paraizo e Rita Gl�ria Curvo, Ibraim e Henrique de Oliveira foram "rebatizados" de In�cio e Matias Ferreira. A ideia de rodar Macabro surgiu em 2011 durante um bate-papo com o ex-capit�o do Bope, Rodrigo Pimentel.
"Os pr�prios agentes do Bope acreditavam que os garotos estavam possu�dos pelo dem�nio ou que o pai deles tinha pacto com o Diabo", conta Prado.
"Por essa raz�o, juravam que eles tinham superpoderes, que conseguiam ficar invis�veis, por exemplo. Num dia, eles apareciam em um lugar e, em menos de 24 horas, em outro, a uns 40 quil�metros de dist�ncia".
Culpado ou inocente?
Prado estava finalizando a edi��o de Macabro quando, por sugest�o do advogado de Henrique, resolveu visit�-lo na pris�o, em 2018. L�, gravou sua vers�o da hist�ria. At� pensou em usar o material no longa, mas o depoimento n�o rendeu.
"Me convenci de que apenas o Ibraim cometeu todos os crimes, mas n�o tenho como afirmar se o Henrique � inocente ou n�o", avalia o diretor. "Pessoalmente, parecia um sujeito normal. Fechado e t�mido", descreve.
H� dias, Prado recebeu o telefonema de um amigo: "Cara, se viu o que est� acontecendo em Goi�s? Uma hist�ria parecida com Macabro", observou. "Caramba!", exclamou o diretor. "Tem um paralelo a�: a psicopatia, a fuga, a persegui��o...".
Outro amigo, produtor de cinema, at� brincou: "Bora fazer Macabro 2?". "De jeito nenhum!", respondeu o diretor. "Minha cota j� se esgotou!".
Sobre L�zaro Barbosa de Souza, de 32 anos, acusado de matar quatro pessoas de uma mesma fam�lia em uma ch�cara em Ceil�ndia, no DF, no dia 9 de junho, e morto pela pol�cia nesta segunda-feira (28/6), o diretor diz que gostaria que ele fosse julgado por seus crimes. "Qual ser� a motiva��o dele? Acho que nunca saberemos. Provavelmente, ele n�o vai sair vivo dessa", especula.
Presidente da Associa��o Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), Marcos Camargo afirma que capturar um foragido hoje � bem mais f�cil do que era h� 30 anos.
"Em teoria, sim. Ou, pelo menos, deveria ser", ressalva. A come�ar pela tecnologia dispon�vel.
Em 1995, quando os "irm�os necr�filos" aterrorizaram a pacata Nova Friburgo, ainda n�o existiam ve�culos a�reos n�o tripulados, os chamados drones, equipados com sensores de calor, term�metros infravermelhos ou c�meras de longo alcance e de alt�ssima resolu��o, para rastrear os fugitivos. Na melhor das hip�teses, helic�pteros barulhentos que denunciavam sua presen�a a quil�metros de dist�ncia.
"Drones s�o importantes aliados das for�as policiais. Al�m de cobrir �reas extensas, de forma mais r�pida e segura do que se fosse a p�, ainda possibilitam varredura noturna, per�odo muito usado pelos fugitivos para seu deslocamento", explica Camargo.
E acrescenta: "An�lises de DNA tamb�m s�o fundamentais para comprovar a passagem do fugitivo por determinadas rotas".
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