
Nesta ter�a-feira (12/10), o monumento mais conhecido do Brasil, um cart�o-postal que reverbera em todo o mundo, completa 90 anos . Trata-se do Cristo Redentor, sem o qual fica dif�cil inclusive imaginar a paisagem do Rio de Janeiro.
Mas o que poucos sabem � que, muito antes da concep��o da est�tua tal e qual foi erguida — projeto do engenheiro Heitor da Silva Costa (1873-1947) —, a ideia de um monumento no alto do Corcovado teve a princesa Isabel (1846-1921) como apoiadora e, em dado momento, seu nome foi apresentado como a pr�pria figura a ser homenageada.
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A nobre, vale ressaltar, nunca aprovou nenhuma ideia do tipo.
Procurada pela reportagem da BBC News Brasil, a Arquidiocese do Rio de Janeiro, que mant�m e administra o Cristo Redentor, confirmou a hist�ria.
Em nota, a institui��o diz que "ap�s a aboli��o da escravatura, a Princesa Isabel rejeitou a proposta de constru��o em sua homenagem no monte Corcovado, e ordenou a constru��o de uma imagem ao Sagrado Cora��o de Jesus que, para ela, era o verdadeiro redentor dos homens".
Esse projeto, contudo, foi cancelado com a Proclama��o da Rep�blica, em 1889, conforme ressalta a Arquidiocese.
"No contexto do movimento abolicionista foram propostas muitas iniciativas para homenagear a princesa Isabel como forma de celebrar a mem�ria da Lei da Aboli��o", acrescenta o historiador Paulo Knauss de Mendon�a, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Instituto Hist�rico e Geogr�fico Brasileiro (IHGB).
"J� na �poca da aprova��o da Lei do Ventre Livre, em 1871, houve tamb�m proposta de erguer monumento p�blico � mem�ria dessa conquista social. O fato � que nenhuma dessas iniciativas prosperaram. A princesa s� foi homenageada com uma est�tua na cidade do Rio de Janeiro em 2003."
Autora do livro O Castelo de Papel: Uma hist�ria de Isabel de Bragan�a, princesa imperial do Brasil, e Gast�o de Orl�ans, conde d'Eu (Editora Rocco), a historiadora Mary Del Priore explica que essa ideia de valorizar a princesa foi capitaneada pelo IHGB, principalmente em decorr�ncia do envolvimento de Isabel na promulga��o de leis para a extin��o da escravid�o, como a Lei do Ventre Livre, de 1871 e a Lei �urea, de 1888.
"A ideia de valorizar a princesa come�ou quando o IHGB, para firmar o projeto de um poss�vel Terceiro Reinado, sugeriu que se fizesse uma est�tua louvando 'a Redentora'", pontua a historiadora.
Isabel era a sucessora natural do trono de dom Pedro II (1825-1891), n�o fosse a Rep�blica proclamada. Redentora seria o cognome justamente por ter sido ela, segundo a historiografia, a mulher que "libertou" os escravos.
"Ela recusou veementemente a dita homenagem", prossegue Del Priore.
"Aos amigos, disse que n�o era redentora de coisa alguma e que somente o Sagrado Cora��o de Jesus era o redentor da humanidade. A princesa era muito cat�lica, como se sabe."
Tal hist�ria, contudo, permite uma outra ila��o, sem provas conclusivas — como frisa a historiadora. A da ideia de apresentar no monumento uma imagem do Cristo como redentor.
Isto porque, em paralelo a esse movimento de valoriza��o da Princesa Isabel havia outro: a ideia de um monumento crist�o no alto do Corcovado.
O Corcovado como altar
Tudo come�ou com o padre lazarista franc�s Pierre-Marie Boss, que desembarcou no Rio em 1859 para atuar na Igreja e Col�gio da Imaculada Concei��o.
Logo depois passou a contar que havia tido um sonho em que o famoso morro era transformado em um altar para Jesus Cristo.
Mas n�o seria o Cristo Redentor, e sim uma imagem do Sagrado Cora��o de Jesus.
"Cabe registrar que o morro do Corcovado sempre foi um s�mbolo da paisagem natural da terra do Rio de Janeiro. A ideia da constru��o de uma est�tua do Cristo no morro � tribut�ria da tradi��o religiosa de instalar cruzeiros na paisagem, o que n�o � exclusividade do mundo cat�lico do Brasil", contextualiza o historiador Knauss de Mendon�a.
H� um poema em que o padre menciona a ideia da est�tua.
"A igreja [onde ele trabalhava] localizada at� hoje na Praia de Botafogo, marcou a paisagem local, em primeiro lugar, pela sua escala. Ao lado disso, a situa��o do edif�cio situado ao p� do morro, estabelece uma rela��o entre a igreja e o morro, o que � acentuado pela solu��o da arquitetura neog�tica com torre �nica e pontiaguda. A solu��o formal na paisagem relaciona o edif�cio religioso ao morro e confere um sentido simb�lico ao la�o que une os dois elementos, pois tudo aponta para o c�u. Um cruzeiro no alto seria uma forma de complementar a arquitetura da igreja pela sua rela��o com a paisagem local", conta o historiador.
Mas n�o havia nada detalhado, claro.
"Ainda que o padre fale em est�tua, nada garante que ele tivesse um projeto concreto para ser desenvolvido. Por outro lado, no s�culo 19, o pico do morro do Corcovado era cultivado como mirante da cidade, o que justificou a constru��o da Estrada de Ferro, inaugurada em 1884 e que existe at� hoje", complementa o professor.
Nesse contexto, a princesa Isabel ascendia na sociedade brasileira, seja por seu papel nas lei abolicionistas, seja pela proje��o natural como potencial sucessora do trono. Isabel, cat�lica fervorosa, vale frisar.
"Os estudos correntes sobre a hist�ria da est�tua do Cristo do Corcovado comentam a associa��o da princesa Isabel ao projeto do padre Pierre-Marie Boss, ora como apoiadora e ora como homenageada", acrescenta Knauss de Mendon�a.
"De todo modo, � importante lembrar da associa��o da Igreja e do Estado que havia no tempo do Imp�rio do Brasil. Portanto, uma iniciativa eclesi�stica precisaria ter aprova��o do estado representando pelo imperador e sua fam�lia."
Recusas de Isabel

Conforme est� relatado no livro Alegrias e Tristezas: Estudos Sobre a Autobiografia de D. Isabel do Brasil (Linotipo Digital Editora) — escrito pelo historiador e advogado Bruno da Silva Antunes de Cerqueira, fundador do Instituto Cultural D. Isabel A Redentora, e pela historiadora e arquivista Maria de F�tima Moraes Argon, pesquisadora aposentada do Museu Imperial — h� pelo menos dois momentos em que Isabel recusa ser homenageada com uma est�tua.
Em 13 de fevereiro de 1872, seu marido Gast�o de Orl�ans (1842-1922), o Conde d'Eu, enviou uma carta a Jos� Maria da Silva Paranhos (1819-1880), o Visconde do Rio Branco, ent�o presidente do Conselho de Ministros.
No texto, conforme relata o livro, o conde esclareceu "que a esposa tomou conhecimento de que a C�mara Municipal da Corte desejava erguer est�tua 'em mem�ria da Reg�ncia da Augusta Princesa Imperial' e que ela recusava veementemente a homenagem, solicitando que fundos eventualmente angariados, por subscri��o, ou destinados ao er�rio fossem empregados na instru��o p�blica".
Dezesseis anos mais tarde, logo ap�s a Lei �urea, h� um novo registro. Desta vez, Conde d'Eu escreveu para o fil�logo e music�logo Joaquim Norberto de Souza e Silva (1820-1891), que era membro do IHGB.
O texto dizia que Isabel "n�o permite que se lhe erija est�tua como signat�ria da Lei �urea, por diversos motivos, o principal dos quais o exemplo paterno".
Essa refer�ncia a dom Pedro II n�o foi aleat�ria. Ap�s a Guerra do Paraguai, ocorrida em 1864 e 1870, aventou-se a ideia de que houvesse uma homenagem imperial ao triunfo brasileiro. O monarca jamais permitiu.
"Essa postura � t�pica dos Bragan�as", explica o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti, autor de diversos livros sobre a fam�lia imperial brasileira.
"Tanto dom Pedro II quanto a princesa Isabel n�o quiseram chamar a aten��o para si por meio de monumentos. O que ela fez em rela��o ao Cristo Redentor foi a mesma coisa que o pai havia feito depois da Guerra do Paraguai."
A quest�o parecia encerrada com o fim da monarquia. Oficialmente desvinculado da Igreja, o Estado republicano n�o parecia preocupado em bancar obra de tal vulto valorizando a figura de Cristo. Ao mesmo tempo, defensores de um governo de Isabel foram obrigados a se calar.
Aos p�s do Cristo
No in�cio do s�culo 20, contudo, um grupo de eminentes cat�licas da sociedade carioca decide retomar o plano do monumento. E, de alguma forma, trazendo novamente � tona a presen�a de Isabel, ent�o exilada na Fran�a.
Em carta de novembro de 1908, a princesa foi informada da cria��o de um grupo, denominado Comiss�o Executiva Isabel A Redentora, para que fossem captados fundos para a cria��o de um monumento a Cristo Redentor.
Com um detalhe: uma est�tua de Isabel estaria presente, aos p�s do principal homenageado.
"Uma carta da filha do Almirante Tamandar� comprova uma poss�vel conex�o", conta Del Priore.
"� frente de certa Comiss�o Executiva Isabel A Redentora, dona Maria Euphrasia Lisboa sugere a ere��o de um monumento � 'imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo'."
A carta diz que "o povo brasileiro n�o � um povo ingrato, estou certa de que Vossa Majestade nos h� de permitir faz�-lo. Ao passar � posteridade aos p�s de Nosso Senhor, Nosso Redentor, Vossa Majestade que foi aclamada Redentora."
A missiva enfatiza que no mundo todo n�o haveria possibilidade de monumento "superior ao da Comiss�o Executiva Isabel A Redentora".
"Que pedestal o Corcovado! � noite ter� por c�pula o Cruzeiro do Sul na ab�boda do firmamento", diz o texto, enfatizando que Isabel poderia escolher a escultura que melhor a agradasse e que "a imagem ser� colossal para que debaixo pare�a ter a estatura natural" e que "o monumento ser� a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristos […] a seus p�s Vossa Majestade".
Segundo registros que constam do livro Alegrias e Tristezas , essa carta ecoa a uma promessa que Isabel teria feito a bordo do navio que a levou para o ex�lio, ap�s a Proclama��o da Rep�blica.

Ali, ela teria vislumbrado que "se ergueria no Corcovado o Cristo Redentor, j� que somente ele, em sua vis�o, redimia a humanidade inteira, o que evidentemente inclui o Brasil e sua escravid�o trissecular", pontua o livro.
Para muitos historiadores, a nega��o de Isabel em ser ela a homenageada como "a redentora" justifica a troca da figura a ser erguida, de Sagrado Cora��o de Jesus para Cristo Redentor.
Para a coautora do livro Alegrias e Tristezas , a historiadora e arquivista Argon, "� ainda preciso uma pesquisa mais minuciosa sobre o assunto".
Isabel respondeu � carta da Comiss�o Executiva criada, aprovando a ideia e o fato de ter sido aclamada como presidente de honra do grupo das senhoras cat�licas.
"Muito reconhecida a distin��o da assembleia encarregada da ere��o de um monumento a Cristo Redentor […] da nossa querida p�tria, a qual me aclamou. Mesmo Senhor pe�o de todo cora��o aben�oe todos os que se dedicarem a tal ato de amor a Deus", remeteu ela, via telegrama.
"A comiss�o saiu atr�s de patronos. Sublinho que tal imagem, em bronze, seria do Cristo com Isabel aos p�s", enfatiza Del Priore.
De acordo com a Arquidiocese do Rio, todavia, esse esfor�o n�o foi adiante.
A ideia da constru��o do monumento foi retomada apenas em 1921, quando um grupo chamado de C�rculo Cat�lico retomou o projeto, tendo em vista as celebra��es do primeiro centen�rio da Independ�ncia, no ano seguinte.
No mesmo ano, em reuni�o do grupo, foi "eleito o projeto do engenheiro carioca Heitor da Silva Costa", informa a arquidiocese.
Nada a ver com a imagem que acabaria sendo erguida. Era um "Jesus sobre um pedestal, segurando uma grande cruz com a m�o esquerda e um globo com a m�o direita", explica a nota.
Conforme relatado no document�rio Christo Redemptor , quando publicada a imagem n�o foi bem compreendida pelos cariocas, que passaram a enxergar no planeta Terra carregado por Cristo uma bola de futebol, como se o monumento homenageasse o esporte preferido do Brasil. Logo, o apelido para o projeto se tornou "o Cristo da Bola".
Nos anos seguintes, respondendo a cr�ticas, Costa alteraria o projeto para as fei��es que, enfim, seriam realizadas.
O Cristo Redentor s� seria erguido ap�s campanha, capitaneada pelo ent�o cardeal-arcebispo do Rio, Sebasti�o Leme da Silveira Cintra (1882-1942). Sem nada de Isabel.
"A hist�ria do monumento do Cristo Redentor � muito bonita e envolve o isabelismo e o abolicionismo, mas isto � ignorado", lamenta o historiador Antunes de Cerqueira. No seu livro ele frisa que "inexiste, em todo o Santu�rio do Cristo Redentor, […] um pequeno busto que seja em honra de dona Isabel".

"De outro lado, a hist�ria do monumento, que � bel�ssima, nunca foi escrita e publicada no Brasil, ao menos a hist�ria que envolve todos esses pormenores que associam o movimento abolicionista-isabelista ao erguimento da est�tua. Algo que definitivamente deve ser feito", afirma.
Antunes de Cerqueira ressalta que, de acordo com a pr�pria tradi��o oral mantida pelos sucessores da fam�lia imperial brasileira, Isabel "relativizava e desvalorizava o cognome dela como redentora".
"Ela era ultracat�lica", lembra ele.
Esse esquecimento da figura de Isabel na �poca da inaugura��o do Cristo Redentor pode ter explica��o no pr�prio momento sociopol�tico de ent�o.
"Considero importante lembrar que a iniciativa de constru��o da est�tua do Cristo Redentor se realizou na d�cada de 1920, numa �poca de grandes mudan�as sociais no Brasil", nota Knauss de Mendon�a.
"No contexto da cultura � a �poca da Semana de Arte Moderna, e na ordem da pol�tica � a �poca da funda��o do Partido Comunista Brasileiro e do movimento tenentista que emerge na cena social com o levante do forte de Copacabana, tamb�m de 1922. O monumento religioso, traduz uma grande mudan�a do movimento cat�lico no Brasil que confirma a separa��o da Igreja e do estado, e que dissemina o catolicismo no Brasil como movimento social, em que a institui��o eclesi�stica busca se afirmar como representante da sociedade, independente do Estado", contextualiza o historiador.
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