
S�o muitos nomes, muitas "nossas senhoras". Mas elas todas se referem a uma mesma pessoa, uma mesma santa cat�lica?
A resposta � sim. O que significa que Nossa Senhora Aparecida, cuja data se comemora em 12 de outubro � uma representa��o diferente da mesma santa que tamb�m pode ser chamada de Nossa Senhora de F�tima, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Lourdes e tantas outras.
Trata-se de Maria, uma jovem judia nascida em Nazar� h� pouco mais de 2 mil anos, quando essas terras ao sul de Israel eram parte do Imp�rio Romano. Para o cristianismo, ela tem papel fundamental: tornou-se a m�e de Jesus Cristo.
Chamada de virgem por dois dos evangelistas, Mateus e Lucas, acredita-se que ela tinha cerca de 15 anos quando ficou gr�vida — pela doutrina crist�, por obra do Esp�rito Santo, ou seja, sem ter tido rela��es sexuais com homem algum. Na �poca, Maria j� estava prometida em casamento a Jos�, um carpinteiro da mesma cidade, mais velho, j� na casa dos 30 anos.
Fato � que desta gravidez nasceria Jesus, o pilar fundador do cristianismo. Mas por que a tradi��o cat�lica n�o rende a essa mulher apenas o t�tulo de Santa Maria, e s�o tantas as representa��es dela pelo mundo?
"Os nomes dedicados a Nossa Senhora dependem muito da forma como ela apareceu. Normalmente s�o dados pelo nome do lugar onde ela apareceu ou pelas condi��es em que se deram o aparecimento", esclarece o padre Arnaldo Rodrigues, assessor da Arquidiocese do Rio de Janeiro.

Conforme explica a cientista da religi�o Wilma Steagall De Tommaso, coordenadora do grupo de pesquisa Arte Sacra Contempor�nea - Religi�o e Hist�ria da Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo (PUC-SP) e membro do Conselho da Academia Marial de Aparecida, essas nomenclaturas acabam variando a "cada povo, cada regi�o, cada cultura", por conta de "t�tulos que correspondem aos eventos decorrentes de in�meras situa��es".
Ela lembra que muitos desses t�tulos s�o os chamados dogm�ticos. � de onde vem, por exemplo, a nomenclatura de Nossa Senhora da Imaculada Concei��o — bula assinada pelo papa Pio IX "declara Maria imune da mancha do pecado original", ressalta a pesquisadora — ou mesmo a ideia de cham�-la de Virgem Maria, j� que "o Conc�lio de Latr�o, em 649, preconiza como verdade a virgindade perp�tua", da m�e de Cristo.
"H� ainda as denomina��es decorrentes dos lugares onde houve uma manifesta��o que deu origem � devo��o local, muitas vezes ampliada a outros povos e locais, como Aparecida, Guadalupe, Lourdes, F�tima, Loreto, Montserrat, etc.", complementa ela.
"Nomes diferentes s�o atribu�dos � Virgem Maria pois est�o ligados ao lugar onde ela apareceu", acrescenta a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de hist�ria do catolicismo na Pontif�cia Universidade Gregoriana de Roma. "N�o existe algo que determine que ela precise, necessariamente, 'ser batizada' com o nome do territ�rio da vis�o, mas como inicialmente as apari��es s�o uma manifesta��o de religiosidade popular, antes mesmo de passar por toda a an�lise can�nica de praxe, � o povo que acaba difundindo, num primeiro momento, esses t�tulos."
"Os tantos t�tulos que lhe d�o todos t�m uma raz�o. � Nossa Senhora de F�tima, porque apareceu l�. � Nossa Senhora do Bom-Parto porque auxilia espiritualmente as parturientes. � Nossa Senhora do Bom-Conselho porque tem sempre uma orienta��o a dar aos seus filhos", afirma o pesquisador Jos� Lu�s Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Araca�, do Cear�. "E todos esses t�tulos s�o de uma s� m�e, porque � m�e de toda a humanidade e em todos os lugares, os povos a chamam e representam conforme seus costumes, suas tradi��es. � claro que para uma venera��o p�blica � necess�ria a aprova��o da Igreja."

Pedido de m�e � uma ordem
A devo��o a Nossa Senhora, contudo, remonta ao princ�pio do cristianismo. Por princ�pio, a ideia � que ela funcione como um canal direto ao pr�prio Cristo — dentro da premissa que pedido de m�e ningu�m nega.
Uma passagem importante do pr�prio evangelho refor�a essa ideia. Trata-se da narra��o do milagre das bodas de Can�, que aparece exclusivamente no texto de Jo�o, no qual Jesus faria aquele que � considerado seu primeiro milagre.
Na festa de casamento, onde ele estava junto a sua m�e como convidado, os anfitri�es notam que havia acabado a bebida. Maria chama Jesus de lado e explica o drama. Ele, ent�o, transforma �gua em vinho e garante a continua��o da celebra��o.
"Seria um esc�ndalo para o casal se acabasse a bebida antes de a festa terminar. Quando Maria pede a Jesus que tome uma provid�ncia, fica importante o papel dela como intercessora", analisa padre Rodrigues.
A devo��o mariana tamb�m se baseia em outro momento dos textos b�blicos. Quando Jesus est� agonizando na cruz, segundo o relato, ele teria dito algumas palavras para sua m�e e tamb�m para seu ap�stolo Jo�o. Ali, teria utilizado o seguidor como representante toda a humanidade, considerando Maria a m�e dele — e, por extens�o, a m�e de todos.
"Nesta a��o, Jo�o representa toda a humanidade. Maria se tornou a m�e nossa. A nova Eva, uma Eva livre do pecado, como a Igreja nos ensina. Assim, Maria Sant�ssima cuida da humanidade como m�e e m�e zelosa", analisa o hagi�logo Lira.

Antiguidade
Segundo estudos do padre Valdivino Guimar�es, mariologista e ex-prefeito de Igreja do Santu�rio Nacional de Aparecida, os registros mais antigos dessa cren�a no poder da m�e de Cristo remontam ao s�culo 2. "Ind�cios arqueol�gicos demonstram a venera��o dos primeiros crist�os. Nas catacumbas de Priscila, se v� pinturas marianas do segundo s�culo, em local onde os primeiros crist�os se reuniam", afirma ele.
"Nas catacumbas, encontramos o afresco considerado, at� agora, a mais antiga imagem da Virgem Maria com o Menino Jesus", comenta De Tommaso. "Esse afresco deixa evidente que os primeiros crist�os entendiam que a vinda de Jesus fora prenunciada nos livros sagrados do povo hebreu. E Maria, a mulher que disse o sim e que tece em seu ventre o corpo do Salvador. H� um �cone muito antigo conhecido como Maria, a tecel�."
A mais remota das apari��es remontam ao ano 40 e seria um epis�dio de biloca��o, na verdade, pois Maria ainda era viva. Segundo a tradi��o crist�, ela teria aparecido ao ap�stolo Tiago na atual cidade de Zaragoza, hoje Espanha, onde ele estava pregando. Fato � que h� registros da constru��o de uma pequena capela ali, desde os prim�rdios do cristianismo.

Outro relato sempre citado por pesquisadores � o de Nossa Senhora das Neves, uma apari��o de agosto de 352, em Roma. Foi por conta desse epis�dio que foi erguida a Bas�lica de Santa Maria Maior.
"Maria � venerada desde os prim�rdios do cristianismo. Em muitos escritos, e inclusive na pr�pria iconografia primitiva, ela recebe um lugar de destaque. A mais antiga ant�fona mariana que se tem not�cia � do s�culo 2, que � chamada, em latim, de Sub tuum presidium, ou Sob tua prote��o. O Conc�lio de �feso, em 431 d.C, analisa e aprova a tese teol�gica de que Maria tamb�m era m�e de Deus, entre outras atribui��es que ocorreram mais � frente", pontua Medeiros.
"O tema de Maria est� presente em todos os per�odos da hist�ria do cristianismo. H� uma tradi��o que aponta que a primeira apari��o de Maria teria acontecido na Espanha, em 40 d.C, cujo vidente teria sido S�o Tiago, ap�stolo de Jesus, considerado o evangelizador do territ�rio", prossegue a especialista. "O t�tulo adotado foi o de Nossa Senhora do Pilar, j� que, segundo o relato, Maria teria mostrado ao ap�stolo uma coluna, pedindo que ele constru�sse um santu�rio naquele lugar."
Ao longo dos s�culos, contudo, esses relatos passariam a ser constantes. De acordo com padre Rodrigues, estima-se que hoje sejam cerca de 1,1 mil nomes pelos quais a santa � conhecida.
"Bom, falando do ponto de vista hist�rico, as apari��es acontecem em per�odos muito particulares", diz Medeiros. "N�o cabe a n�s, enquanto historiadores, julgarmos se elas s�o ver�dicas ou n�o, mas o fato est� que muitas acontecem em meio a um determinado contexto pol�tico-social. � o caso de F�tima, cuja mensagem � muito interessante, e condiz com a postura da que a Igreja vai adotar, frente ao comunismo, nos anos posteriores. Temos o caso de Aparecida, por exemplo, cuja imagem � achada em meio ao debate em torno da aboli��o da escravatura. Temos o caso de Guadalupe, onde a virgem Maria, com tra�os ind�genas, � um s�mbolo da luta contra a desigualdade. E por a� vai."
Mas nem sempre a Igreja aprova essas manifesta��es. "Nem todas as apari��es que ocorrem hoje foram oficialmente reconhecidas pelo catolicismo. H� um protocolo a ser seguido. Sem contar que algumas s�o reconhecidas totalmente e diante de outras, ainda em fase de an�lise, foi permitida somente a liberdade de culto", lembra ela. "O que a suposta Virgem Maria diz, no caso, precisa condizer totalmente com os princ�pios da Igreja Cat�lica e at� a idoneidade moral e psicol�gica dos videntes � analisada."

A padroeira do Brasil
Autora do livro 21 Nossas Senhoras que inspiram o Brasil , a jornalista Bell Kranz conta que a devo��o mariana foi trazida ao Brasil j� pelas esquadras de Pedro �lvares Cabral — em um dos barcos foi trazida uma imagem da santa. "[A tradi��o] chegou essencialmente pelos portugueses, pelos colonizadores", explica. "O Tom� de Sousa [primeiro governador-geral do Brasil] chegou � Bahia j� com uma imagem da santa na bagagem… Nossa Senhora da Concei��o! E logo erigiu uma capelinha em Salvador, que hoje � a grande catedral Concei��o da Praia [Bas�lica Nossa Senhora da Concei��o da Praia]."
"Eu diria que o Brasil foi escolhido por Nossa Senhora, n�o � fanatismo dizer isso", comenta Lira. Para ele, h� uma "predile��o especial de Nossa Senhora para com esta terra".
"Nossa Senhora da Concei��o, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora das Candeias (a mesma da Candel�ria e da Purifica��o), Nossa Senhora Aparecida (que � a mesma Concei��o), penso que s�o as mais importantes para o Brasil pela venera��o que o povo lhes atribui", acrescenta o hagi�logo.
"� claro que cada Estado brasileiro tem sua devo��o. Por exemplo, na Bahia h� uma forte devo��o � Nossa Senhora da Boa-Morte. Em Minas Gerais, Nossa Senhora da Piedade que � a mesma Nossa Senhora das Dores e por a� vai. No Par�, em Bel�m, temos a linda manifesta��o � Nossa Senhora de Nazar� que anualmente leva milh�es ao C�rio de Nazar�. Aqui no Cear� � interessant�ssima a devo��o a Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, por exemplo. E qual a raz�o? N�o d� para explicar concretamente. � algo meio que filial mesmo. Amor de filho � sua m�e e uma m�e que � m�e de todas as m�es, pais e filhos."
Kranz atenta para o fato de que, dada a religiosidade cat�lica inerente � pr�pria constru��o da na��o brasileira, "desde a coloniza��o, Nossa Senhora est� presente em todos os momentos de nossa hist�ria".
E a liga��o brasileira com a santa � umbilical. Isto porque, como bem lembra a jornalista, em 1646 o ent�o rei portugu�s dom Jo�o 4º"consagrou todo o reino, incluindo a� as col�nias, a Nossa Senhora". "A�, 217 anos depois do descobrimento do Brasil, ela apareceu l� para os pescadores [Nossa Senhora Aparecida]", acrescenta Kranz.
Nossa Senhora
Maria se tornou "Nossa Senhora", assim chamada, somente no fim do per�odo medieval. Mas, historicamente, a Igreja j� a reconhecia como "M�e de Deus" muito antes — mais precisamente a partir do s�culo 5, depois do Conc�lio de �feso, em 431. "[� quando] Maria recebe o t�tulo de Thot�kos, a M�e de Deus, dogma que define explicitamente a maternidade divina de Maria. Da� em diante, ela passa a ocupar, por exemplo, o posto principal, o conte�do da imagem do pres�pio se amplia e praticamente esse �cone resume a hist�ria da salva��o", esclarece De Tommaso.
De acordo com o mariologista Guimar�es, Maria "ganha destaque sociol�gico, cultural e religioso" no per�odo medieval. � quando ela adquire "car�ter de poder", tornando-se "aquela que destr�i o mal". Assume caracter�sticas fortes, "ganha rosto de rainha". Assim, passa a ser invocada como "guerreira", "a mulher que combate o mal e, com poder militar, destr�i as heresias".
"Maria passa da dimens�o cultural para a pol�tica", compara ele. "No per�odo feudal, diante da opress�o, Maria se torna a padroeira para os que nela buscam aux�lio, e em troca de prote��o, o fiel a louva com ora��o e atos de caridade."
A santa passa a ser invocada "como a m�e que protege diante da ira de Deus, por algum pecado cometido, n�o s� de forma individual mas tamb�m comunit�ria".
"Com o surgimento das ordens mendicantes, Maria se aproxima das pessoas, ela � tirada do trono de realeza, onde fora colocada pela teologia mon�stica, e se faz irm�, pobre e vizinha das pessoas", diz Guimar�es.
Ao fim do per�odo medieval, Maria j� era um �cone consolidado dentro do catolicismo, tema constante das prega��es e protagonista de tradi��es como medalhinhas, prociss�es, novenas e outras manifesta��es.
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