
Uma pesquisa com servidores que trabalham com adolescentes infratores no Brasil revelou que a maioria desses profissionais frequentemente ouve relatos de jovens que dizem estar sob amea�a de morte ou sofrendo algum tipo de viol�ncia. Segundo o estudo, os menores de idade apontam como autores dessas amea�as principalmente membros de gangues e fac��es criminosas, mas tamb�m milicianos e policiais.
Entre 2019 e mar�o de 2020, foram entrevistados mais de 3 mil profissionais, entre ju�zes, promotores, defensores p�blicos e servidores que trabalham com medidas socioeducativas. Eles responderam sobre capacita��o profissional, estrutura de trabalho, financiamento e o contexto social dos menores envolvidos com a viol�ncia, entre outros temas.
O levantamento, que ser� lan�ado no dia 14 de dezembro, foi produzido pela ONG Vis�o Mundial e pelo Gabinete de Assessoria Jur�dica das Organiza��es Sociais (Gajop) em parceria com o Conselho Nacional dos Direitos da Crian�a e do Adolescente (Conanda).Segundo a pesquisa, 71% dos defensores p�blicos entrevistados afirmam serem frequentes os relatos de adolescentes que dizem estar sob amea�as de morte ou sofrendo outros tipos de viol�ncia — 61% dos promotores e 50% dos ju�zes tamb�m afirmam que esses relatos s�o constantes nas oitivas.
Os adolescentes apontam como autores das amea�as e agress�es principalmente membros de gangues e fac��es criminosas, mas tamb�m, em menor grau, milicianos e policiais civis e militares. Entre as formas de viol�ncia apontadas pelos jovens est�o principalmente agress�es f�sicas, verbais e torturas impostas por membros de gangues e fac��es criminosas, abordagens policiais violentas, agress�es em ambiente escolar e viol�ncia dom�stica.
De acordo com a pesquisa, 88% dos defensores p�blicos dizem ouvir relatos de viol�ncia policial contra os adolescentes infratores antes mesmo do ato infracional cometido por eles — 70% dos promotores e 65% dos ju�zes concordam.
Contexto de viol�ncia
O estudo ressalta o cen�rio de viol�ncia e criminalidade envolvendo uma parcela da juventude no pa�s. Entre 2000 e 2019, por volta de 444 mil pessoas entre 15 e 29 anos foram assassinadas com armas de fogo no Brasil, segundo dados do Sistema �nico de Sa�de (SUS) compilados pelo Atlas da Viol�ncia, publica��o anual do Instituto de Pesquisa Econ�mica Aplicada (Ipea) e do F�rum Brasileiro de Seguran�a P�blica.
Quando um adolescente � preso por algum ato infracional, como furto, tr�fico de drogas ou homic�dio, ele necessariamente passa por oitivas informais com um promotor e um defensor. Depois, � levado a uma audi�ncia com um juiz, que determinar� alguma medida a ser cumprida, como interna��o ou semiliberdade.
Nessas sess�es, o menor infrator normalmente conta sua hist�ria de vida, contexto familiar, escolaridade e por que cometeu o ato que causou sua pris�o.

J� 66% dos defensores, 81% dos promotores e 72% dos ju�zes afirmam que ouvem relatos de amea�as e viol�ncias envolvendo conflitos no territ�rio de origem dos adolescentes.
"A sociedade costuma enxergar o adolescente que pratica o il�cito como uma pessoa ruim, violenta, que nasceu para o crime. Mas, na verdade, esse adolescente j� estava inserido em um contexto de viol�ncia antes do ato infracional, e essa viol�ncia afeta a vida dele completamente", diz Cibelle Bueno, gerente de projetos da ONG Vis�o Mundial e uma das autoras do relat�rio.

"Esse adolescente, normalmente muito pobre, est� acostumado com a viol�ncia na comunidade de origem. Quando chega � Justi�a por algum ato il�cito recebe uma puni��o. De um lado ele � amea�ado; do outro, � uma amea�a � sociedade. Se isso j� � ruim na cabe�a de um adulto, imagina para um adolescente", diz Welinton Pereira, diretor de rela��es institucionais da Vis�o Mundial.
Desde 2007, o Brasil possui o Programa de Prote��o a Crian�as e Adolescentes Amea�ados de Morte (Ppcaam), que chega a transferir de Estado fam�lias de adolescentes sob amea�a. Para ingressar no programa, a fam�lia deve procurar o Conselho Tutelar, o Minist�rio P�blico local ou o Poder Judici�rio.
'Primeiro sinal do crime'
Menores de 18 anos podem ficar internados no m�ximo tr�s anos, ou cumprir medidas em liberdade ou semiliberdade. O tempo exato de cada puni��o � determinado pela gravidade do ato infracional, e tamb�m por uma an�lise psicol�gica e social feita por servidores, promotores e ju�zes.
Segundo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), 46 mil menores de idade em conflito com a lei foram atendidos pelo �rg�o no ano passado. Ao todo, 59% dos adolescentes eram negros e 22%, brancos — no geral, a popula��o brasileira se divide entre 53,% de negros e 45,4% de brancos.
Das 5 mil pessoas que cumpriam medidas socioeducativas no Estado de S�o Paulo no in�cio deste ano, por exemplo, 49% tinham cometido infra��es relacionadas ao tr�fico de drogas — roubos representavam 37%; furtos 3% e homic�dios, 2,6%. Os dados s�o da Funda��o Casa, �rg�o que aplica medidas socioeducativas em S�o Paulo.
"O abandono da escola � o primeiro sinal de que esse adolescente pode entrar na criminalidade. Muitas vezes, a escola n�o procura a fam�lia nem aciona qualquer servi�o de assist�ncia social", diz Cibele Bueno, da Vis�o Mundial, que por anos trabalhou com adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas.
"Ele come�a a se envolver com o crime na comunidade. Os motivos s�o v�rios: quer acesso a dinheiro, a bens de consumo, poder e at� pertencer a um grupo, ser reconhecido naquele espa�o. Come�a levando um pacotinho de um lado para o outro, ganha dinheiro, tem acesso a drogas e armas. Quando quer sair, n�o consegue porque a fac��o n�o permite mais, �s vezes � amea�ado", diz.
Essa trajet�ria de abandono escolar foi demonstrada em um recente estudo sobre o perfil dos adolescentes internados em Salvador, produzido pela Defensoria P�blica do Estado.
Segundo a pesquisa, 71,8% dos 159 menores internados em alas masculinas das Comunidades de Atendimento Socioeducativo (Cases) em outubro de 2019 n�o estavam matriculados na escola. J� 87,8% n�o tinham completado o ensino fundamental.
"Em Salvador, v�rios adolescentes param de ir � escola porque estudam em bairros controlados por uma quadrilha rival daquela que domina onde eles moram. S� de viver ali eles j� s�o estigmatizados como membros de um grupo, mesmo que n�o sejam. Para n�o serem v�timas, muitos param de estudar e entram para o crime", diz Bruno Moura, defensor p�blico da Bahia, que diariamente participa de audi�ncias em uma vara da inf�ncia de Salvador.
"Desde pequeno esse jovem conhece o signo e a linguagem da viol�ncia. Ele � v�tima em casa, no bairro, da pol�cia. Quando chega � vida adulta, existe grandes chances de ele reproduzir essa viol�ncia, pois ele foi criado nela", diz Moura.
Conflito de fac��es

O juiz Jos� Dantas, da 1ª vara da inf�ncia e juventude de Natal, tamb�m convive todos os dias com relatos de viol�ncia durante suas audi�ncias com jovens infratores do Rio Grande do Norte.
"� comum ouvir adolescentes dizendo que est�o sob amea�a, principalmente das fac��es. Onde h� aus�ncia do poder p�blico o poder paralelo assume. O crime d� o que o Estado n�o oferece: dinheiro, visibilidade, poder", diz Dantas � BBC News Brasil, por telefone.
"Tem rapaz que com 16 anos j� comanda territ�rio, administra o tr�fico. Nessa vida ele cria inimigos, rivais, se envolve em conflitos. Muitos s�o assassinados. Mas eles tamb�m s�o usados pelas fac��es, porque, tamb�m na criminalidade, existe a ideia de que menor de idade n�o fica preso. E isso n�o � verdade, muitos s�o internados", diz.
Nas �ltimas d�cadas, o Rio Grande do Norte se tornou um exemplo negativo quando o assunto � viol�ncia contra jovens.
Em 2016, os potiguares entre 15 e 29 anos eram os que mais morriam em crimes violentos no pa�s: a taxa chegou a 152 mortes para cada 100 mil habitantes, alta de 482% desde 2006, segundo o Atlas da Viol�ncia. J� em 2019, esse n�mero caiu para 85. O Amap� atualmente lidera o ranking com uma taxa de 101 assassinatos de jovens por grupo de 100 mil - S�o Paulo � o melhor nesse quesito, com 12,5.
Um dos fatores que explicam esse alto �ndice do Rio Grande do Norte � o crescimento do poder de duas fac��es criminosas que controlam e disputam o tr�fico de drogas na regi�o, o Sindicato do Crime e o Primeiro Comando da Capital (PCC). Em 2017, uma briga entre membros das duas quadrilhas terminou em um massacre de 26 detentos no pres�dio de Alca�uz, regi�o metropolitana de Natal.
"Adolescentes chegam �s audi�ncias dizendo pertencer a um grupo ou outro. Esses grupos se aproveitam da fragilidade social das comunidades. Muitos jovens n�o t�m pais, n�o estudam, moram em bairros com poucos recursos, em fam�lias desestruturadas. Eles s�o facilmente cooptados pelo crime", diz Dantas.
Sabia que a BBC est� tamb�m no Telegram? Inscreva-se no canal.
J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!