
Criados para prestar assist�ncia a sobreviventes, familiares e envolvidos semanas depois do epis�dio, dois servi�os especializados - um de aten��o psicossocial, e outro, multiprofissional - s�o hoje refer�ncia nacional em aten��o p�s-traum�tica.
No dia 10 de dezembro do ano passado, a condena��o dos quatro r�us no processo relacionado ao inc�ndio - Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, s�cios da boate, e Marcelo dos Santos e Luciano Bonilha, respectivamente vocalista e ex-produtor da banda que se apresentava no local - tornou-se um momento de consterna��o e reconhecimento para v�timas e familiares.
O julgamento, que se estendeu por 10 dias no Tribunal de Justi�a do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, distante 330 quil�metros do munic�pio, mobilizou a parcela da popula��o que via na responsabiliza��o criminal uma etapa necess�ria da dor e da perda. Grupos de volunt�rios envolveram-se na organiza��o de caravanas � capital e na acolhida dos que retornaram ap�s acompanhar o julgamento.
O psicanalista Volnei Dassoler, integrante do Santa Maria Acolhe, servi�o psicossocial implantado pela prefeitura ap�s a trag�dia, foi um dos que viajou a Porto Alegre. Para o doutor em Psicologia Social pela Universidade de Passo Fundo (UPF), o julgamento teve um importante papel simb�lico.
"N�o serviu para curar todas as feridas, porque existe a sensa��o de que faltavam pessoas no banco dos r�us. Mas funcionou como marcador simb�lico para que se fizesse a passagem de um momento para outro na elabora��o do que ocorreu", diz Dassoler, que coordenou o Santa Maria Acolhe at� dezembro.
Para o psicanalista, o servi�o de acolhimento psicossocial, implantado no m�s seguinte � trag�dia, � um marco n�o apenas para a popula��o local, mas tamb�m para a �rea de sa�de mental no Brasil. "Iniciativas como essa emergem em resposta a eventos disruptivos, mas com o tempo e a diminui��o da demanda, tendem a desaparecer. Percebemos, por�m, que havia uma parcela da popula��o desassistida em rela��o a situa��es traum�ticas de outras naturezas, como viol�ncia, perdas familiares, homic�dios e suic�dios", afirma.
Entre os 285 mil habitantes, � comum encontrar quem se recorda do dia e do momento em que soube do inc�ndio, na manh� do dia 27 de janeiro de 2013, um domingo abafado de ver�o.
O radialista e escritor M�rcio Gringgs estava apresentando um programa no est�dio de uma r�dio local e mergulhou em uma jornada de cobertura ininterrupta, sem intervalos comerciais. "Uma colega rep�rter estava em frente � boate e come�ou a informar o n�mero de mortos confirmados: 20, 30. No final da manh�, j� eram centenas", recorda-se Gringgs, casado com uma psic�loga que trabalhou no atendimento de emerg�ncia.

O professor Vitor Crestani Calegaro, do Departamento de Neuropsiquiatria do Hospital Universit�rio de Santa Maria (HUSM), vinculado � Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), viu nascer naquele dia o embri�o do que viria a ser o Centro Integrado de Aten��o �s V�timas de Acidentes (Ciava).
Na noite do inc�ndio, ele conclu�a o per�odo de resid�ncia na institui��o e engajou-se nas opera��es de socorro. "O atendimento de emerg�ncia durou uma semana. Depois, voltamo-nos para as pessoas internadas. Num terceiro momento, foi organizado o servi�o ambulatorial. Psiquiatras volunt�rios, ex-professores, ex-alunos dispuseram-se a ajudar", relembra.
O Ciava, segundo Calegaro, surgiu por iniciativa de professores da UFSM e servidores de diversas �reas do HUSM. "Desde o in�cio, pensamos que deveria haver atendimento de longo prazo e de car�ter multiprofissional, com especialidades m�dicas e n�o-m�dicas, como Fisioterapia, Fonoaudiologia e Enfermagem. Esse � um grande diferencial do nosso servi�o: atendemos em conjunto, com diversos especialistas. N�o existe um lugar no hospital chamado Ciava. Somos uma equipe muito unida, fazemos reuni�es e trabalhamos de forma coordenada", explica.
O aprendizado de Santa Maria na resposta a situa��es de dor e trauma � reconhecido nacionalmente e foi empregado em outras emerg�ncias. Dassoler, do Santa Maria Acolhe, esteve em Mariana, Minas Gerais, depois do rompimento da barragem do Fund�o, e em Chapec�, Santa Catarina, ap�s a queda do avi�o com jogadores da Chapecoense, em 2016.
"H� muitas semelhan�as entre os epis�dios, mas tamb�m diferen�as. S�o cidades menores, e no caso de Mariana o fator desencadeador foi uma grande empresa (a Vale S.A., propriet�ria da barragem) e n�o um pequeno neg�cio. Em todas, por�m, h� o impacto da urg�ncia, porque esses acontecimentos rompem a rotina n�o apenas das pessoas, mas da cidade", afirma. Do munic�pio de Chapec�, Dassoler recebeu uma medalha de agradecimento, que doou � Associa��o dos Familiares de V�timas e Sobreviventes da Trag�dia de Santa Maria (AAVTSM).
O secret�rio de Sa�de de Santa Maria, Guilherme Ribas, diz que a concep��o de atendimento em rede, fundamental no est�gio atual do Santa Maria Acolhe, � a principal li��o em termos de atendimento � sa�de mental ap�s o inc�ndio da Kiss.

"Sabemos que pacientes atendidos nessas situa��es chegar�o, em algum momento, � alta. Nesse momento, precisar�o ser acompanhados por meio de unidades e profissionais pr�ximos de seus locais de resid�ncia, sejam postos de sa�de, ambulat�rios, servi�os mantidos por institui��es de ensino", argumenta. No caso de Santa Maria, a prefeitura j� trabalha com a possibilidade de acionar essa rede para atender a uma eventual demanda reprimida na �rea de sa�de mental depois de dois anos de pandemia de Covid-2019.
No julgamento de dezembro, duas equipes de filmagem da TV Ovo, oficina audiovisual comunit�ria sem fins lucrativos criada h� 25 anos, gravaram o deslocamento de �nibus e as rea��es de sobreviventes e familiares ao andamento das sess�es. Um dos fundadores da produtora, o jornalista e cineclubista Marcos Borba participou das grava��es.
"Temos uma rela��o muito pr�xima com os familiares, especialmente nos �ltimos cinco ou seis anos, e nos sentimos na obriga��o de mostrar como reviveriam o trauma. Depois da perda dos filhos e parentes, o julgamento talvez tenha sido a maior dor enfrentada por essas pessoas", diz Borba. "A gente conseguiu captar momentos de muita raiva, ang�stia, explos�o emocional, sentimentos � flor da pele." No momento, a TV Ovo negocia com uma plataforma de streaming o lan�amento do document�rio em formato de s�rie ainda este ano.
J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!