
Em contato com pesquisadores do mundo inteiro, a pesquisadora da Escola Nacional de Sa�de P�blica (ENSP) da Funda��o Oswaldo Cruz (Fiocruz) avalia que o Brasil viveu dois extremos nos momentos de enfrentamento ao v�rus SARS-CoV-2. “Eu acho que o Brasil teve imagens boas e ruins. Vivemos essa dualidade o tempo todo. N�s enfrentamos a contradi��o de termos feito estudos extraordin�rios de fase tr�s de vacinas contra covid-19 e n�o termos feito as encomendas no tempo certo, por exemplo”, afirma.
Em Bras�lia para lan�ar o livro Um tempo para n�o esquecer — A vis�o da ci�ncia no enfrentamento da pandemia do coronav�rus e o futuro da sa�de, que re�ne artigos da pesquisadora que documentam o transcorrer da pandemia, Dalcolmo conversou com o Correio sobre as flexibiliza��es feitas atualmente no pa�s e sobre o futuro da pandemia no Brasil e criticou a falta de incorpora��o de um rem�dio para tratamento da covid-19 no Sistema �nico de Sa�de (SUS).
Para ela, o Brasil precisa pensar em nacionalizar os medicamentos j� aprovados e recomendados para o tratamento da doen�a para impedir que os pre�os das medica��es se tornem proibitivos para o pa�s. Al�m disso, a pesquisadora acredita que a quarta dose da vacina, hoje recomendada somente para grupos espec�ficos, deve ser estendida � popula��o em geral nos pr�ximos meses, mas acha pouco prov�vel ser necess�rio fazer campanhas de vacina��o anuais como se faz para o v�rus influenza, por exemplo.
Confira a entrevista:
Como a senhora avalia o momento atual da pandemia no Brasil?
A pandemia da covid-19 guarda uma din�mica muito pr�pria. Ela tem as caracter�sticas de uma virose aguda de transmiss�o respirat�ria com pat�geno novo, com uma cepa original muito transmiss�vel, com alta letalidade e alta morbidade. Outras variantes seguiram causando grande poder de dissemina��o at� a presente situa��o, que � um momento em que se somam fatores como uma variante nova, menos agressiva, de maior taxa de transmissibilidade, contra uma taxa de vacina��o, no Brasil, razoavelmente alcan�ada. Hoje, n�s temos situa��o com 80% praticamente da popula��o vacinada, ainda faltando alguns milh�es de pessoas a serem resgatadas para a terceira dose e at� para a segunda dose. A nossa expectativa � de que, como todas as viroses de transmiss�o respirat�ria aguda, neste momento, somados esses fatores, a covid-19 comece a ir diminuindo. Mas n�s ainda n�o temos uma situa��o que, a meu ju�zo, permita, por exemplo, as medidas tomadas recentemente, como a libera��o de m�scaras nos ambientes fechados.
Mas essa flexibiliza��o do uso de m�scaras em ambientes abertos � uma quest�o pacificada na comunidade cient�fica?
Sim, n�s j� estamos dizendo isso desde o fim de novembro. Desde antes do aparecimento da cepa �micron. N�s j� estamos falando que poder�amos, dada � taxa de vacina��o alta alcan�ada, dispensar o uso de m�scaras em atividades isoladas. Voc� precisa ter um certo bom senso. Uma festa ou um luau com 2 mil pessoas, com tudo agarradinho, n�o � exatamente estar ao ar livre. Agora, caminhar, ir em parques, praias, tudo isso pode ser sem m�scaras.
A senhora acredita que desobrigar o uso de m�scaras em ambientes fechados � precoce?
Eu, particularmente, acho que � precoce, sim. Acho que n�s n�o podemos ainda falar em controle total porque n�s ainda temos um n�mero de mortes atribu�das � doen�a bastante consider�vel. Embora a taxa de hospitaliza��o tenha realmente diminu�do, ela n�o � zero.
E qual �, agora, a prioridade no combate � pandemia no Brasil?
Vacinar as crian�as, completar a vacina��o de quem ainda n�o o fez e fazer vigil�ncia epidemiol�gica. Porque se voc� me perguntar: ‘N�o vai ter outra variante?’ N�o sei dizer. N�s n�o sabemos. O n�mero de suscet�veis precisa diminuir mais, n�s ainda temos muitos circulando por a� que podem ajudar a disseminar o v�rus em um eventual aparecimento de uma nova cepa variante.
E a quarta dose da vacina? A senhora acredita que ela ser� estendida? Ou teremos uma vacina��o anual como acontece com a vacina da gripe?
Acho que a quarta dose dever� ser estendida a todo mundo a partir dos 18 anos de idade nos pr�ximos meses. Essa � a minha expectativa. Neste momento, n�s estamos vacinando vulner�veis, pessoas idosas ou com doen�as de imunossupress�o, mas a minha expectativa � de que n�s vacinemos todos, a partir dos 18 anos, com uma quarta dose, nos pr�ximos meses. Haver� seguramente uma segunda gera��o de vacinas, j� estabelecidas com cepas novas. H� estudos sendo feitos nesse sentido, mas eu n�o creio, n�o tenho a expectativa e acho pouco prov�vel que n�s precisemos fazer vacina��es anuais como se faz para o v�rus influenza.
Agora, com autonomia da produ��o do imunizante, o olhar se volta para os medicamentos contra a covid-19. J� existem alguns aprovados pela Anvisa, mas nenhum incorporado ao SUS. Qual � o impacto disso?
� uma pena. De novo, n�s estamos atrasados. N�s deixamos de utiliz�-los durante o aparecimento da cepa �micron, n�o pudemos, foi uma pena porque deixamos de tratar milhares de pessoas. Ent�o, n�s precisamos nacionalizar esses produtos para que, inclusive, os pre�os deles, que s�o proibitivos para o Brasil, baixem. N�s j� estamos em negocia��o para a fabrica��o do monulpiravir por Farmanguinhos, por meio da Fiocruz no Brasil.
O governo federal j� fala em uma poss�vel reclassifica��o da pandemia para endemia. Isso � poss�vel?
Isso n�o existe. Isso � uma ret�rica completamente equivocada. Quem vai dizer se a pandemia est� controlada � a Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS). N�o � um t�tulo honor�fico dizer que hoje n�o � mais pandemia porque eu quero que n�o seja. Para isso ser considerado de maneira correta do ponto de vista epidemiol�gico ser� necess�rio reduzir, para muito perto de zero, o n�mero de hospitaliza��o e de morte pela doen�a. Ent�o, eu consideraria isso um exerc�cio ret�rico.
Ainda falando sobre o Brasil, qual � a imagem que o pa�s passa no cen�rio internacional em meio � pandemia?
Eu acho que o Brasil teve imagens, digamos, boas e ruins. Tivemos tudo. Primeiro, n�o nos preparamos adequadamente para receber uma epidemia desse porte. Embora o SUS fosse desde o in�cio, sabidamente, a arma mais poderosa para enfrentar a pandemia, o SUS entrou em condi��es bastante desfavor�veis em um certo sentido. Ent�o, tem sempre uma coisa boa e uma coisa ruim, n�? A coisa boa � que o Brasil foi um belo local, um celeiro, de produ��o de grandes estudos de fase tr�s para vacina. Mas a�, o Brasil conseguiu n�o seguir o seu exemplo tradicional de ades�o � vacina��o, que � muito caracter�stico da popula��o brasileira. Infelizmente, o Programa Nacional de Imuniza��es (PNI) entrou sem uma coordena��o, como tinha sido em epidemias anteriores. Ent�o, tudo isso fez com que o Brasil, que vinha de uma tradi��o extremamente positiva, tenha entrado numa pandemia desta magnitude em condi��es desfavor�veis.
E quanto ao lado positivo?
A comunidade cient�fica e acad�mica brasileira mostrou uma capacidade de trabalho extraordin�ria. O Brasil �, hoje, o d�cimo pa�s em publica��es cient�ficas sobre a covid-19, o que n�o � pouca coisa. � muito se compararmos com pa�ses onde o investimento em pesquisa � t�o maior do que no Brasil. E n�s estamos sofrendo cortes, um atr�s do outro. Depois, outra coisa positiva, � que a comunidade cient�fica brasileira, e vale dizer feminina, porque ela foi totalmente de mulheres, foi muito �gil e muito r�pida no sequenciamento do genoma. Em quatro dias no Brasil, foi identificado o genoma por um grupo de cientistas brasileiras, mulheres, como a Ester Sabino, a Jaqueline Goes. Soma-se ainda aos fatores positivos a capacidade de institui��es brasileiras p�blicas, como a Fiocruz e o Instituto Butantan, terem tido, no caso da Fiocruz, a iniciativa de fazer a encomenda tecnol�gica de nacionaliza��o de uma vacina. O resultado disso hoje, em uma fase de mais ou menos controle pand�mico, � de autonomia. O Brasil, hoje, assegurou a autonomia na produ��o de vacinas para covid-19.
� preciso falar tamb�m sobre a politiza��o da pandemia, certo?
Exceto essa enorme politiza��o da pandemia feita pelo discurso governamental, que, a meu ju�zo, foi profundamente nocivo ao pa�s, eu acho que nesse balan�o, de altos e baixos, o Brasil teve um comportamento bastante razo�vel no combate ao novo coronav�rus. Vivemos essa dualidade o tempo todo. N�o precis�vamos ter vivido trag�dias paralelas � epidemia. N�s n�o precis�vamos ter vivido a trag�dia de Manaus. Manaus foi o primeiro local que teve pico epid�mico em abril de 2020 e n�s sab�amos que a imunidade conferida pela doen�a era ef�mera. Ent�o, Manaus poderia ter se preparado para um eventual aparecimento de uma nova cepa. N�o precisar�amos ter vivido a trag�dia de oxig�nio no norte do pa�s. N�o precisar�amos ter vivido o esc�ndalo que foram os hospitais de campanha no Rio de Janeiro, o atraso no processo de vacina��o. N�s vivemos a contradi��o de termos feito estudos extraordin�rios de fase tr�s e n�o termos feito as encomendas no tempo certo.
Passados esses dois anos de pandemia, como a senhora avalia que o Brasil vai sair desse momento em termos cient�ficos?
Acho que dois produtos positivos sa�ram dessa trag�dia que se abateu sobre n�s. Primeiro, a grande capacidade de produ��o da comunidade cient�fica e o reconhecimento por parte da sociedade civil brasileira, que n�o nos conhecia, que n�o sabia que existia uma ci�ncia nacional. Muitos de n�s sa�mos dos nossos casulos, laborat�rios, consult�rios e viemos a p�blico. A sociedade quando nos reconhece, confia em n�s. Ent�o, a sociedade brasileira hoje sabe que existe uma ci�ncia genuinamente nacional, que trabalha e est� comprometida com ela. O segundo produto que eu considero extremamente positivo � que o Brasil � um pa�s que nos constrange tanto pela sua enorme desigualdade, e, na verdade, a iniciativa privada, pela primeira vez de maneira robusta, mostrou um comparecimento muito impressionante.
Como assim?
Na primeira entrevista p�blica que eu dei sobre a pandemia da covid-19, eu disse que a iniciativa privada teria que comparecer pesadamente ou a trag�dia seria maior. E n�s tivemos muitas doa��es. O que n�s precisamos agora � criar no Brasil uma cultura de um novo voluntariado ou o que eu chamo de um voluntariado de nova qualidade. Instituir isso e incorporar a nossa cultura. � preciso diminuir essa dist�ncia t�o grande entre quem tem e quem n�o tem. Lembrando que milhares de pessoas entraram na linha de pobreza durante esses dois anos de pandemia. E um terceiro produto, e n�o menos importante, obviamente, foi que, a despeito de todas as dificuldades, o SUS respondeu.