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Estado de Minas SEM CONSENTIMENTO

'Retirou a camisinha e confessou, mas Justi�a n�o puniu': o caso da brasileira v�tima de stealthing

Sem legisla��o espec�fica e jurisprud�ncia, mulheres abusadas permanecem em "limbo jur�dico"; para mudar realidade, mais den�ncias s�o necess�rias


15/04/2022 07:46 - atualizado 15/04/2022 10:50


Camisinha sendo aberta
Sem legisla��o espec�fica e jurisprud�ncia, mulheres abusadas permanecem em "limbo jur�dico" (foto: Getty Images)

A brasileira Leila (nome fict�cio) � uma mulher com sede de justi�a.

Ela foi v�tima no Brasil do chamado "stealthing", termo em ingl�s para quando um dos parceiros remove propositalmente o preservativo sem o consentimento do outro.

Apesar de ter juntado as evid�ncias que considera necess�rias para comprovar a viola��o, incluindo uma confiss�o do abusador, sua busca por uma repara��o legal vem sendo, at� o momento, em v�o — ap�s idas e vindas, o caso foi recentemente arquivado pelo promotor que o analisou, quase um ano ap�s o crime.

No Brasil, diferentemente de alguns outros pa�ses, como o Reino Unido, o "stealthing" n�o � considerado estupro — uma vez que, para que esse tipo de crime ocorra, o ato sexual deve ter ocorrido "mediante grave amea�a ou viol�ncia".

Contudo, existem alternativas legais para as v�timas buscarem justi�a, como o artigo 215 do C�digo Penal (viol�ncia sexual mediante fraude), embora o desfecho nem sempre seja positivo, a exemplo do que aconteceu com Leila at� agora (veja a opini�o de especialistas ao fim desta reportagem).

Mas ela n�o pensa em desistir. "Vou lutar at� o fim por justi�a. Espero que meu caso possa ser o indutor de uma mudan�a na legisla��o", diz ela.

Leila entrou em contato com a BBC News Brasil ap�s ler uma reportagem sobre o assunto, publicada em 2017.

A reportagem teve acesso ao processo de Leila, sob segredo de Justi�a, que inclui as supostas evid�ncias do crime, a c�pia do inqu�rito policial e a decis�o da promotoria por seu arquivamento.

Em depoimento � pol�cia, o acusado confirmou o relato de Leila de que n�o usou o preservativo, mesmo tendo concordado que o sexo seria protegido, mas que tudo aconteceu "no calor do momento". Segundo ele, "achei que estava sendo consensual, que ela tinha percep��o de que eu estava sem preservativo, n�o agi de m� f� em momento algum".

Leia abaixo o relato de Leila e sua busca implac�vel por justi�a:

No fim de abril de 2021, conheci um menino no Tinder e, eventualmente, transamos. Foram tr�s rela��es e t�nhamos tr�s preservativos. Em todas as vezes, parei e falei: "a camisinha". Em uma das vezes, ele disse: "a minha acabou". Levantei, fui em outro quarto e peguei a que eu tinha. Amanheceu e ele foi embora.

No dia seguinte, n�o sei muito bem por qu�, me veio uma sensa��o rara e fui checar os preservativos no lixo. Quando abri a lixeira, fiquei em estado de choque total. Um dos preservativos estava aberto, fora da embalagem, mas n�o havia sido usado.

Tirei uma foto e imediatamente enviei uma mensagem para ele, pedindo uma explica��o. Ele se fez de desentendido. Insisti por uma resposta.

"Eu abri (a camisinha) e deixei do lado, mas acabamos usando outra depois. N�o tem nada para se preocupar", foi o que ele me disse. Segundo ele, "acontece que foi tudo muito r�pido e no calor do momento acabou sendo assim".

Ora, "no calor do momento", eu parei todas as vezes para colocar a camisinha. Inclusive em uma das vezes levantei para busc�-la em outro local. E ele simplesmente resolveu n�o usar o preservativo e n�o me falou nada.

A partir do momento que descobri que ele fez isso comigo, foram horas de muito estresse. Uma indigna��o que n�o cabe no peito at� hoje. Entrei em p�nico. Fui � farm�cia, comprei a medica��o para evitar gravidez indesejada e mais tarde procurei atendimento m�dico para medica��o contra Infec��es Sexualmente Transmiss�veis (IST). Chorava de solu�ar como uma crian�a. Um n� na cabe�a tentando entender por que isso aconteceu. Por que algu�m faria uma coisa dessas?

At� hoje, n�o encontrei justificativa plaus�vel.

No dia seguinte, procurei uma psiquiatra para me dar uma guia para acompanhamento psicol�gico, porque comecei a ter pensamentos do tipo: "nunca mais vou sair com ningu�m". "N�o posso confiar em ningu�m". Mas racionalmente sei que n�o � esse o caminho e por isso, resolvi buscar ajuda o quanto antes.

Era tanto conflito e indigna��o, que eu queria puni-lo de alguma maneira, ent�o, comecei a fazer buscas no Google para saber o que eu poderia fazer para buscar Justi�a.

Descobri que havia sido v�tima de stealthing, quando o parceiro retira o preservativo sem o consentimento da outra parte. Li v�rias reportagens, incluindo a da BBC News Brasil.

Munida de informa��o e sabendo que o que aconteceu � crime (segundo especialistas, o stealthing pode ser enquadrado como crime pelo artigo 215 do C�digo Penal, "viol�ncia sexual mediante fraude"), na mesma semana resolvi ir � delegacia fazer o registro de ocorr�ncia policial.

Depois de tr�s dias chorando, pensei que j� estava forte o suficiente e fui sozinha � delegacia.


Mulher segura preservativo
'Stealthing' pode ser considerado crime pelo artigo 215 do C�digo Penal - viol�ncia sexual mediante fraude (foto: Getty Images)

'Pior momento da vida'

Na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), passei por um dos piores momentos da minha vida. Em vez de acolhimento e respeito, fui v�tima novamente, dessa vez, do descaso.

Por conta da pandemia, havia uma faixa de bloqueio para entrar no local. Na frente de todos, a atendente gritava: "O que voc� quer?" E eu lhe respondi: "fazer um B.O" (boletim de ocorr�ncia).

"Contra quem?", gritou ela mais uma vez. "Contra um homem", disse eu.

Foi muito ofensivo e humilhante a forma como eu e outras mulheres ali presentes fomos tratadas.

Quando fui chamada para relatar o caso, praticamente n�o me deixaram falar e sempre agiam de forma muito r�spida. Come�aram a me perguntar: "Qual � o CPF do acusado? Qual � nome da m�e dele?"

Perguntas incab�veis. Onde j� se viu, uma pessoa � v�tima de um assalto, atropelamento, viol�ncia sexual e tem que saber o CPF do acusado e o nome da m�e dele para registrar o B. O.?

Tinha em m�os dois ou tr�s poss�veis endere�os, registro de um CNPJ, endere�o do trabalho e nome dele completo. Era como se n�o quisessem registrar minha queixa.

A atendente me tratava t�o mal, que desabei e voltei � estaca zero de abalo emocional.

Quando ela viu que fiquei descontrolada emocionalmente, amenizou o tom e me disse: "Voc� j� est� tomando rem�dio, n�o vai ficar gr�vida e nem ficar doente". Entretanto, n�o estava chorando pelo crime em si. E sim pelo atendimento horr�vel e traumatizante pelo qual estava passando.

N�o sei como eu tive for�as para ir no IML (Instituto M�dico Legal) fazer os exames. Mas fui. O atendimento foi bem feito e me encaminharam para o servi�o social/psicologia do hospital.

Todas as vezes que fui � delegacia, o atendimento foi sempre um "lixo". E n�o era s� comigo. Era abomin�vel com todas que chegavam para ser atendidas. As pessoas eram tratadas com desd�m.

� simplesmente traumatizante. N�o sei dizer o que me doeu mais at� agora. Se foi o atendimento da pol�cia ou o crime cometido contra mim.

Sem not�cia sobre qualquer evolu��o do caso (a n�o ser em julho de 2021, quando meu abusador me procurou achando ruim que fiz uma den�ncia contra ele), voltei � DDM para saber como estava o processo em novembro.

A policial que me atendeu me perguntou se eu queria process�-lo. Eu fiquei muito surpresa com essa pergunta e respondi que sim. Ela retrucou: "Mas n�o deu nada no exame do IML e voc� n�o est� gr�vida".

Conclus�o: o processo estava "engavetado". N�o haviam feito nada at� ent�o.

Em seguida, perguntei se iriam precisar dos preservativos que ainda estavam comigo e ela respondeu que n�o, porque meu abusador j� havia confessado o crime.

Mas o maior choque ainda estava por vir.

No fim de fevereiro de 2022, voltei � delegacia para acompanhar o processo. Tive a not�cia que ele havia sido arquivado e avaliado por um delegado e uma delegada.

O processo havia sido avaliado em julho de 2021. Estive l� em novembro e n�o me falaram nada. Tentei tirar foto do meu processo para ler com calma em casa, mas ambas oficiais que estavam l� n�o me deixaram fotograf�-lo.

Questionei como ele p�de ter sido arquivado, sendo que meu abusador corroborou meu relato de abuso e eu tinha anexado no processo toda a conversa por WhatsApp, na qual est� claro o crime cometido.

Ent�o a oficial respondeu: "N�o somos n�s que avaliamos, � o delegado". Ela tentou justificar a decis�o dizendo que em seis meses tr�s delegados chefiaram a DDM e que agora iriam pedir a terceira delegada para reavaliar o caso.

Diante de tudo que aconteceu at� aquele momento, avisei que estava aguardando o final do processo para reclamar na ouvidoria/procuradoria do munic�pio (aguardei por medo de repres�lias e interfer�ncia negativa na avalia��o), sobre o atendimento as v�timas que procuravam aux�lio, mas que agora, iria tamb�m ao Minist�rio P�blico (MP) reclamar do processo arquivado, mesmo com as provas e confiss�o do crime.

'Abertura do inqu�rito'

Ap�s a visita � DDM, fui ao MP.

N�o era para menos e estava bem fragilizada por tudo o que me havia acontecido na delegacia.

Me esforcei para contar o que havia acontecido e a resposta inicial do promotor de Justi�a foi: "Entendo sua indigna��o, mas a delegacia encerrou porque realmente n�o � crime. O que voc� pode fazer � process�-lo no �mbito c�vel".

Respondi que meu interesse � que ele seja punido criminalmente, como a lei diz. Li ao promotor o artigo 215 do C�digo Penal. Ele citou os exemplos em que o artigo poderia ser utilizado, mas que acrescentou que ele n�o se aplicaria ao meu caso.

Insisti e perguntei sua opini�o pessoal sobre o que me aconteceu. Ele colocou a m�o sobre o C�digo Penal e disse que n�o era ele e sim a legisla��o. Mudei minha pergunta e questionei se no Brasil n�o havia possibilidade de puni��o. Segundo o promotor, somente se eu estivesse infectada com alguma IST (Infec��o Sexualmente Transmiss�vel), por exemplo.

Aos prantos, quase sem conseguir falar e sem ar, disse: "Olha, n�o quero ser grosseira e nem ofend�-lo, mas vou pedir-lhe uma gentileza: leia sobre 'stealthing'. D� uma estudada sobre o tema, para quando outra mulher procurar a Justi�a, ela n�o tenha que passar por tudo que estou passando at� agora".

Apesar da dura e dolorosa resposta que havia recebido, o atendimento foi bom.

Agradeci, levantei e fui ao banheiro para tentar me recuperar antes de ir embora.

Poucos minutos depois, uma mulher foi atr�s de mim no banheiro e disse: "o promotor quer falar com voc�".

Quando cheguei � sala dele, ele me disse que havia pensado melhor e que agora entendia porque o caso que relatei era crime. E que sim, que poderia enquadr�-lo como crime e abriria um inqu�rito.

Em todos esses meses de dor e n�os que recebi, esse foi o primeiro sim que tive. Uma esperan�a por Justi�a, enfim, surgiu.

'Tudo por �gua abaixo'

Estava realmente otimista com um desfecho, mas tudo foi por �gua abaixo, quando, nas �ltimas semanas, descobri que meu caso foi analisado por um segundo promotor e ele optou pelo arquivamento.

Em sua decis�o, ele disse que apesar de ser "reprov�vel, a conduta do acusado ao ter se aproveitado da confian�a nele depositada pela v�tima, n�o h� provas suficientes do emprego de meios utilizados para enganar ou iludir a ofendida".

O promotor entendeu que o modus operandi do investigado n�o caracterizaria fraude, j� que a v�tima n�o foi induzida em erro, mas sim surpreendida pela conduta dele, que em tese sem o seu consentimento, manteve rela��o sexual sem o uso de preservativo.

Segundo o promotor, esse seria o contexto probat�rio. Ele acrescentou que n�o h� maiores elementos de convic��o e que as dilig�ncias policiais tinham sido exauridas sem que tivessem sido apurados suficientes elementos que autorizassem afirmar que o autor teria agido com o elemento subjetivo intencional de ludibriar a v�tima que � nesses casos o fator exigido pelo tipo penal em tela.

Ou seja, ele me estuprou "sem querer"? "No calor do momento"? O que a Promotoria quer? Quer que meu abusador diga que teve a inten��o de estuprar?

Fiz uma reclama��o formal sobre o atendimento recebido na delegacia. Soube que minha queixa foi enviada � corregedoria e que uma apura��o preliminar foi instaurada. Tamb�m reclamei da decis�o do promotor junto � ouvidoria das mulheres do MP, mas a resposta deles foi que "n�o faz parte das atribui��es da Ouvidoria avaliar ou analisar quest�es judiciais".

Se a ouvidoria das mulheres do MP n�o trata a quest�o de g�nero levantada, onde mais posso buscar aux�lio?

Busquei assist�ncia jur�dica, mas os honor�rios dos advogados s�o alt�ssimos e eu n�o posso pagar. Nem acho justo com a realidade do pa�s. E as outras mulheres que realmente n�o tem de onde tirar dinheiro para pagar esses valores?

Ou eu fa�o terapia, ou pago advogado. Por isso, at� agora, estou sendo minha pr�pria advogada.

Ainda que a mulher queira seguir em frente com as den�ncias, s�o muitos os obst�culos. Muitos. Somos desestimuladas o tempo todo, com argumentos do tipo: n�o vai dar em nada, voc� vai se expor, etc.

Tenho todas as provas de que meu abusador n�o usou o preservativo de forma intencional e consciente, tenho a confiss�o dele no Whats App e no depoimento na delegacia e mesmo assim tenho que brigar com o mundo para fazer valer o que � meu por direito.

Espero que minha horr�vel experi�ncia sirva para ajudar outras mulheres que sofram qualquer tipo de viol�ncia.

Apesar da chance m�nima de sucesso, se essa causa for ao meu favor, vai ser um grande avan�o para conscientizar os homens sobre respeito ao corpo da mulher.

O relato de Leila termina aqui.

O que dizem os especialistas

A BBC News Brasil ouviu especialistas do Direito em rela��o ao "stealthing".

Elas disseram que, segundo a lei brasileira, a pr�tica n�o poderia ser considerada estupro.

Isso porque, segundo o artigo 213 do C�digo Penal, estupro consiste em "constranger algu�m, mediante viol�ncia ou grave amea�a, a ter conjun��o carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso".

No entanto, ressalvaram que existem alternativas legais �s mulheres que se sintam v�timas dessa situa��o.

Elas citaram os artigos 130 (perigo de contato ven�reo), 131 (perigo de cont�gio de mol�stia grave) e 215 (viol�ncia sexual mediante fraude) do C�digo Penal brasileiro, uma vez que o sexo foi de forma desprotegida e n�o consensual.

Outra possibilidade � entrar com uma a��o c�vel, e n�o criminal, contra o acusado, ou seja, uma a��o reparat�ria ao dano causado, como, por exemplo, uma gravidez indesejada ou transtorno psicol�gico.


Homem abre preservativo com parceira ao fundo
Para mudar realidade, mais den�ncias s�o necess�rias, defendem especialistas. (foto: Getty Images)

No entanto, h� numerosos obst�culos, entre os quais a falta de jurisprud�ncia e estat�sticas oficiais sobre o assunto.

Um dos principais entraves, segundo as especialistas, continua sendo "a falta de perspectiva de g�nero do operador do Direito".

"Como n�o h� um crime pr�prio para o stealthing, cabe muito da interpreta��o dos operadores do Direito. O debate � muito recente e ainda chegou em peso ao Judici�rio. Esses operadores do Direito ainda n�o se depararam com esse tipo de caso. Al�m disso, falta usualmente uma perspectiva de g�nero, ou seja, encarar situa��es como o stealthing como uma viol�ncia de g�nero", diz � BBC News Brasil Ana Paula Braga, s�cia da Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas e especialista na defesa dos direitos das mulheres.

Flavia Nascimento, defensora p�blica e coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria P�blica do Rio de Janeiro, concorda.

Ela lembra ser t�o recorrente esse tipo de vi�s por parte de promotores e ju�zes que Conselho Nacional de Justi�a (CNJ) recomendou recentemente aos tribunais de todo o pa�s a ado��o do protocolo de julgamento com perspectiva de g�nero.

"A palavra da mulher costuma ser desconsiderada. � para a gente refletir. As mulheres s�o o todo tempo estimuladas a denunciar seus agressores e as viol�ncias sofridas. E quando elas denunciam, qual resposta elas t�m?", questiona Nascimento.

"As mulheres v�timas de viol�ncia sexual demoram ter coragem para denunciar e, quando denunciam, acabam sendo v�timas de um julgamento moral e suas palavras, desqualificadas. � muito dif�cil a gente mudar (essa realidade). Costumo falar que os direitos das mulheres s�o relativizados pelo sistema de justi�a."

Para a advogada Braga, "para mudar essa cultura, � preciso ter den�ncia. Quanto mais mulheres denunciarem, mais isso vai se tornar um problema vis�vel. E tamb�m acho que o apoio midi�tico, de conscientiza��o, � muito importante nesse sentido", conclui.

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