
A m�dica K�tia Paulino, 28 anos, sabe bem o que � uma decis�o dr�stica como a de m�dicos residentes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que anunciaram atrav�s de uma carta aberta, no in�cio de maio, a demiss�o coletiva do programa de resid�ncia em ortopedia e traumatologia da Faculdade de Ci�ncias M�dicas (FCM), por denunciarem sobrecarga de trabalho e condi��es inadequadas de aprendizagem.
Paulino, que come�ou uma resid�ncia em ginecologia e obstetr�cia em um hospital p�blico na cidade de S�o Paulo (que ela pediu para n�o ser identificado) no in�cio de 2020, largou o programa quatro meses depois por motivos semelhantes aos relatados pelos residentes da Unicamp, segundo contou � BBC News Brasil por telefone.
"Foram muitos os momentos que eu percebi que n�o deveria estar ali. Quando voc� percebe que n�o � aquela m�dica que falou que seria na qualidade, no tempo de atendimento", relata Paulino, que se formou em medicina em 2018."Como a gente pode pensar que uma pessoa adoecida vai poder cuidar de outra pessoa? Ainda mais em uma resid�ncia de ginecologia e obstetr�cia, em que a paciente est� recebendo um filho."
A m�dica parabenizou a manifesta��o dos residentes da Unicamp, afirmando que eles "colocaram uma lupa em uma situa��o" que j� deveria ter sido revelada "muito antes".
"Espero que n�o seja algo passageiro, que seja algo para mudar a resid�ncia m�dica no Brasil."
A resid�ncia m�dica � uma p�s-gradua��o que forma m�dicos especialistas, como cl�nicos e pediatras — que s�o, de acordo com o estudo "Demografia M�dica no Brasil 2020", as especialidades com maior n�mero de residentes no pa�s. Oferecidas por institui��es de sa�de como hospitais, as resid�ncias devem oferecer forma��o te�rica e pr�tica, onde os residentes atendem pacientes sob supervis�o de m�dicos mais experientes. O ingresso costuma ser por meio de processo seletivo — alguns altamente concorridos —, e a dura��o varia de dois a cinco anos.

Segundo a assessoria de imprensa da Unicamp, o desligamento dos m�dicos do primeiro ano de resid�ncia em ortopedia e traumatologia acabou n�o ocorrendo, ap�s reuni�es e acordos entre a faculdade e os residentes. A universidade relata ter recebido a carta em 11 de maio.
"Conjuntamente, o Departamento de Ortopedia e Traumatologia e a Comiss�o de Resid�ncia M�dica da FCM, juntamente com a Superintend�ncia do Hospital de Cl�nicas, est�o adotando medidas para atenuar os problemas colocados, destacando posi��o madura e sensata dos residentes", escreveu a assessoria em nota.
A reportagem tentou contato com os residentes autores da carta e com a Associa��o de P�s-Graduandas e Graduandos da Unicamp, mas n�o recebeu resposta.
No texto, os residentes afirmaram: "As condi��es de trabalho as quais estamos sendo submetidos e a carga hor�ria semanal associada ao n�mero de plant�es e a quantidade reduzida de residentes tornou nosso trabalho humanamente imposs�vel de ser realizado."
"O foco da universidade que se baseia no trip� ensino, pesquisa e extens�o n�o condiz com a realidade a qual estamos expostos e n�o ser� poss�vel de ser realizado na quantidade atual de residentes."
Ainda que, segundo a universidade, a demiss�o coletiva n�o tenha ido � frente, nas redes sociais, dezenas de m�dicos apoiaram a manifesta��o dos residentes da Unicamp. Dias depois, circulou a imagem de outra den�ncia, que teria sido recebida pela Coordena��o-Geral de Resid�ncias em Sa�de (CGRS), do Minist�rio da Educa��o (MEC), sobre a resid�ncia em cirurgia geral e ortopedia no Instituto de Assist�ncia M�dica ao Servidor P�blico Estadual (IAMSPE) em S�o Paulo (SP).
No texto, o autor da den�ncia afirma que residentes chegam a dar mais de 40h seguidas de plant�o, chegando � exaust�o; e que a carga hor�ria da resid�ncia ultrapassa em muito as 60h semanais estabelecidas por lei, chegando �s vezes a 110h, segundo o texto. De acordo com a lei da resid�ncia m�dica, dentro do limite das 60h semanais, s� � permitido um m�ximo de 24h de plant�o.
"Tal rotina tem colocado a sa�de de m�dicos em risco, assim como a dos pacientes que poder�o ter um mau atendimento. S� queremos que se cumpra a lei e que prevale�a o que est� escrito no edital da contrata��o", diz a den�ncia sobre a resid�ncia do IAMSPE.
Em nota, a assessoria de imprensa do instituto afirmou que "recebeu den�ncia an�nima de sobrecarga de trabalho no programa de resid�ncia m�dica e est� apurando para que, caso haja irregularidades sejam tomadas as devidas provid�ncias". Entretanto, o instituto acrescentou que em reuni�o recente com diretores do hospital, "os residentes n�o apresentaram nenhuma queixa".
Sobrecarga e plant�es extras
K�tia Paulino, que conta ter abandonado a especializa��o em um hospital da capital paulista, lembra que em uma semana t�pica da resid�ncia, a demanda passava de 80h semanais. Como em muitas resid�ncias, ela diz que n�o havia qualquer tipo de controle de horas. Segundo decis�es recentes da Comiss�o Nacional de Resid�ncia M�dica (CNRM), cabe a cada institui��o definir a "modalidade de verifica��o/comprova��o do cumprimento da carga hor�ria", como folha de ponto, ponto eletr�nico ou biometria.
Uma resolu��o da CNRM tamb�m determinou que, ap�s plant�es noturnos de no m�nimo 12h, � obrigat�rio que os residentes tenham descanso imediato, p�s-plant�o, com dura��o de de 6h.
Paulino diz que se planejou financeiramente para se dedicar exclusivamente � resid�ncia durante o per�odo de forma��o, mas � comum que m�dicos residentes trabalhem, al�m das 60h, em outros servi�os — como em plant�es em ambul�ncias e prontos-socorros, o que aprofunda o cansa�o.
"Me planejei para ficar s� com o sal�rio da resid�ncia, pra n�o precisar plant�o. Mas sei que n�o � a realidade da grande maioria das pessoas", diz a m�dica.
Desde janeiro deste ano, o valor m�nimo da bolsa para m�dicos residentes � de R$ 4,1 mil mensais. De acordo com o estudo "Demografia M�dica no Brasil 2020", a principal fonte de bolsas no pa�s � o Minist�rio da Sa�de, enquanto o Minist�rio da Educa��o financia bolsas especificamente em hospitais universit�rios federais. H� tamb�m bolsas pagas por governos estaduais, prefeituras, hospitais filantr�picos e privados.
Presidente da Associa��o Nacional dos M�dicos Residentes (ANMR), Maikon Madeira, atualmente residente em cirurgia card�aca, avalia ser desej�vel a melhora no controle da carga hor�ria dos programas de resid�ncia pelo pa�s. Ainda segundo ele, algumas resid�ncias permitem e outras pro�bem que os m�dicos em forma��o trabalhem fora — al�m das 60h semanais da resid�ncia.
"Quem consegue se manter com sal�rio de resid�ncia numa cidade grande?", questiona Madeira, justificando a busca de residentes por trabalhos externos.
Den�ncias de ass�dio moral e at� f�sico
Embora reclame da sobrecarga pela qual passou na resid�ncia, K�tia Paulino diz que este n�o foi a �nica raz�o para o abandono.
"O motivo que eu quis sair de l� n�o foi s� pela carga hor�ria, assim como eu acredito que na Unicamp, n�o foi s� pela carga hor�ria. Foi o ass�dio moral, tamb�m, por parte de todos — do sistema, da chefia, da equipe, da institui��o. Justamente por normalizarem a situa��o do residente exausto", denuncia a m�dica, que iniciou e abandonou a resid�ncia no primeiro ano da pandemia de coronav�rus, 2020.
O hospital do qual ela era residente passou a ter uma maior demanda na maternidade, j� que outros hospitais estavam muito voltados � covid-19. Mas a m�dica acredita que, mesmo subtraindo o contexto de pandemia, sua resid�ncia teria sido problem�tica.
"Ficamos s� em regime de plant�o de obstetr�cia, ent�o n�o tinha outras atividades de ginecologia", lembra.
"Acho que a pandemia veio para colocar uma lupa nessa situa��o, mas n�o acredito que seria muito diferente n�o."
De acordo com Paulino, do seu grupo de oito amigos que entraram para a resid�ncia, apenas dois conclu�ram a forma��o.
"Com certeza eu tive um epis�dio depressivo importante, tive que tratar com medica��o, terapia… Se os todos residentes passassem por uma avalia��o psiqui�trica, metade ia sair com algum CID (Classifica��o Internacional de Doen�as)."

Ao dar entrevista, a m�dica disse que provavelmente a reportagem teria dificuldade em conversar com outros residentes, pois haveria um medo disseminado em fazer cr�ticas e den�ncias. De fato, a BBC News Brasil tentou contato com dez m�dicos encontrados por meio de indica��es ou de coment�rios nas redes sociais, mas nenhum concedeu entrevista — alguns simplesmente n�o responderam � reportagem, outros afirmaram que n�o tinham cr�ticas relevantes a compartilhar.
Entretanto, documentos encontrados no site do Minist�rio da Educa��o com as pautas de reuni�es da Comiss�o Nacional de Resid�ncia M�dica (CNRM) deste ano revelam que den�ncias contra programas de resid�ncia m�dica s�o frequentes. A comiss�o � formada por membros de diversas entidades, como a pr�pria Associa��o Nacional dos M�dicos Residentes (ANMR), al�m do Conselho Federal de Medicina (CFM), do Minist�rio da Sa�de, do Conselho Nacional de Secret�rios de Sa�de (CONASS), entre outras.
Eventuais den�ncias devem ser endere�adas primeiro para a Comiss�o de Resid�ncia M�dica (Coreme) de cada hospital; depois, para as Comiss�es Estaduais de Resid�ncia M�dica (Cerem); e em seguida, para a CNRM. Esta supervisiona as resid�ncias m�dicas no pa�s, mas segundo Madeira, a comiss�o enfrenta o desafio de fiscalizar um pa�s extenso como o Brasil.
Na pauta da reuni�o da CNRM de 27 e 28 de abril, estavam 17 den�ncias. Nem todas procediam, na avalia��o da comiss�o, como uma den�ncia sobre a resid�ncia de uma institui��o do Paran� que teve recomenda��o para arquivamento "devido � inconsist�ncia dos fatos apresentados na mesma, todos contestados e documentados pela Coreme". J� em outro caso, a comiss�o exigiu que um programa de resid�ncia do Mato Grosso do Sul comprovasse que os residentes receberiam treinamento para uma s�rie de exames de patologia.
No registro de uma reuni�o de janeiro, que teve 26 den�ncias na pauta, consta que a c�mara t�cnica da comiss�o exigiu que uma institui��o de S�o Paulo apresentasse os resultados de um processo administrativo sobre uma den�ncia de coa��o f�sica que dois preceptores (instrutores) de residentes exerceram sobre um residente em anestesiologia.
Em uma reuni�o de mar�o, a comiss�o exigiu que um hospital de Minas Gerais entregasse um "documento assinado pelos m�dicos residentes afirmando que n�o realizam plant�o de sobreaviso, que possuem descanso p�s-plant�o, que a carga hor�ria semanal � de 60 horas e que as atividades te�ricas est�o ocorrendo de forma regular". Na pauta desta reuni�o, havia 10 den�ncias a serem avaliadas.
A BBC News Brasil pediu o posicionamento e mais dados da CNRM, por meio da assessoria de imprensa do MEC, no dia 18 de maio, mas n�o recebeu resposta.
Conflitos geracionais
Nas redes sociais, al�m de coment�rios apoiando manifesta��es recentes sobre problemas das resid�ncias em medicina, h� outros classificando tais protestos como frescura, como se fossem express�o de m�dicos jovens que n�o sabem ser resilientes diante dos desafios da pr�tica m�dica.
M�dico e coordenador-geral da resid�ncia m�dica do Hospital de Cl�nicas de Itajub�, em Minas Gerais, Seleno Glauber afirma que diferen�as geracionais s�o hoje fonte de muitos conflitos nas resid�ncias.
"O perfil de residente mudou nos �ltimos 10 a 15 anos. Antes havia uma resili�ncia maior �s condi��es adversas, press�es e at� ass�dios por parte dos superiores. � comum hist�rias de cirurgi�es que jogavam pin�as cir�rgicas nos residentes que faziam algo de errado. Isso mudou. Hoje eles sabem seus direitos e brigam por isso", explica Glauber, especialista em cirurgia geral, cirurgia vascular e endovascular e radiologia intervencionista.
"Esses conflitos geracionais s�o comuns e desgastantes. O que sempre falo para os supervisores de programa de resid�ncia � que � preciso apenas seguir a lei e as resolu��es da Comiss�o Nacional de Resid�ncia M�dica, evitando dor de cabe�a e desgastes."
O coordenador da resid�ncia afirma que, mesmo que haja um limite em lei de 60h semanais na carga hor�ria, os servi�os de sa�de, supervisores e preceptores n�o conseguiram se ajustar a isso. Contribui — negativamente — para este quadro as dificuldades financeiras de hospitais p�blicos e filantr�picos para contratar especialistas, cujo trabalho acaba sendo conduzido na pr�tica por residentes; e a grande demanda por atendimento nessas institui��es, o que em alguns casos acaba impedindo que os residentes tenham acesso � forma��o te�rica.

H� ainda situa��es em que residentes desistem da forma��o, e os residentes que permanecem acabam precisando assumir todo o trabalho.
"Ocorre que muitas vezes o servi�o da especialidade � estruturado para funcionar dependendo do residente, coisa que sempre ocorreu ao longo de d�cadas", diz Glauber. "Entendemos que a extrapola��o de carga hor�ria � muitas vezes requerida at� pelos pr�prios residentes como forma de complementar seu treinamento em servi�o. Essa extrapola��o acaba sendo aceit�vel pontualmente principalmente se for compensada posteriormente."
"Entretanto, o ponto crucial � o retorno que o residente tem. Se ele for apenas requerido para cumprir a assist�ncia, mas sem ganho de aprendizado, ou mesmo aus�ncia de preceptor que o oriente adequadamente em determinado est�gio, essa situa��o piora."
"N�s mesmos j� tivemos den�ncias devido extrapola��o de carga hor�ria, e isso aconteceu durante a pandemia, quando os servi�os foram congestionados e havia escassez de residentes, m�dicos especialistas e todo o tipo de profissional de sa�de para atender � demanda. Infelizmente foi uma situa��o de dif�cil corre��o em meio ao caos. Hoje conseguimos equalizar a situa��o."
Presidente da ANMR e residente, Maikon Madeira diz ter seus direitos respeitados em sua especializa��o em um hospital filantr�pico de Santa Catarina que atende ao Sistema �nico de Sa�de (SUS), mas inevitavelmente sente o impacto de estar trabalhando em um servi�o p�blico.
"Hoje eu me sinto sobrecarregado pelo sistema p�blico, pela demanda p�s-pandemia. O SUS � lotado, �s vezes a gente n�o tem como se separar disso."
Segundo Madeira, hoje, a principal bandeira da associa��o � pelo cumprimento da lei para que os residentes recebam alimenta��o e moradia de seus programas. Embora a ANMR receba relatos sobre sobrecarga e ass�dio moral, entre outros problemas, o presidente da entidade diz que a principal demanda que chega para a entidade � para aux�lio dos residentes em processos de transfer�ncia.
De acordo com o estudo "Demografia M�dica no Brasil 2020", em 2019, 53.776 m�dicos cursavam a resid�ncia m�dica no pa�s em 55 especialidades. A maior parte dos residentes (58,4%) tinha entre 25 e 29 anos, e 30%, de 30 a 34 anos.
O Sudeste concentrava 57,3% dos m�dicos residentes, e o Norte, o menor percentual deles (3,7%). Mesmo no indicador relativo � popula��o, de m�dicos por 100 mil habitantes, o Sudeste lidera. S�o Paulo � o Estado com o maior n�mero de residentes no pa�s, 33,9% do total.
Outro indicador importante, o que mostra o equil�brio entre formados em medicina e as vagas em resid�ncias, tem mostrado melhora nos �ltimos anos, sobretudo entre 2013 e 2017. Ou seja, a defasagem entre egressos de escolas m�dicas e residentes ingressantes tem diminu�do. Se mantida esta tend�ncia, esta defasagem poderia ser extinta no ano de 2025, segundo o estudo.
Sem adoecer
A m�dica K�tia Paulino faz parte de um grupo sobre o qual ainda carecem dados, o dos residentes que desistem desta forma��o. Hoje, a m�dica que um dia idealizou fazer a resid�ncia em ginecologia e obstetr�cia passou a valorizar mais a sa�de mental, tanto para os pacientes quanto para si — pessoal e profissionalmente. Ela trabalha atualmente em uma Unidade B�sica de Sa�de (UBS) e em um Centro de Aten��o Psicossocial (CAPS) �lcool e Drogas.
"Hoje eu entendi por que eu sa� da resid�ncia. Eu amo o que eu fa�o, eu me reencontrei na medicina. Trabalhar com sa�de mental d� uma nova perspectiva e ressignifica o entendimento de por que a gente � m�dico", conta Paulino.
"Acho que a resid�ncia � muito importante, mas o modo como � feito, que � como era h� 50 anos, n�o se sustenta mais. A ideia de atendimento humanizado � muito importante hoje. Como uma pessoa adoecida vai cuidar de algu�m de uma forma humanizada? Quem � chefe hoje, que fez resid�ncia h� 50 anos, n�o tem essa ideia de humaniza��o — e hoje isso � algo cobrado, com raz�o."
A m�dica diz que continua estudando e participando de cursos, independente da resid�ncia. Mas, no final do ano, ela pretende voltar a procurar processos seletivos para se tornar de novo residente — desta vez, priorizando um programa que tenha uma cultura mais humanizada.
"Quero fazer uma resid�ncia que n�o me adoe�a, mais do que qualquer especialidade", conta a m�dica.
- Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-61654909
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