
Para o representante da Organiza��o das Na��es Unidas para a Alimenta��o e a Agricultura (FAO/ONU) no Brasil, Rafael Zavala, o pa�s deixou de priorizar o combate � fome em n�vel nacional nos �ltimos anos, levando a uma "cifra assustadora" de inseguran�a alimentar em todo seu territ�rio.
Segundo o Inqu�rito Nacional sobre Inseguran�a Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede PENSSAN e divulgado no in�cio de junho, 33,1 milh�es de brasileiros vivem em situa��o de fome no pa�s. No fim de 2020, eram 19,1 milh�es.
Em outra pesquisa, do Datafolha, feita na pen�ltima semana de junho, 1 em cada 4 entrevistados disse que a quantidade de comida dispon�vel em casa era inferior ao necess�rio para alimentar sua fam�lia.
"N�o se priorizou o combate � fome em n�vel nacional", disse Rafael Zavala em entrevista � BBC News Brasil.
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Segundo o mexicano, que ocupa o posto m�ximo da FAO/ONU no Brasil desde o final de 2018, o problema do Brasil n�o � de escassez de alimentos como outras partes do mundo, mas sim de desigualdade.
Zavala afirma que o pa�s foi protagonista de uma das campanhas mais bem-sucedidas contra a inseguran�a alimentar do mundo, quando, em 2014, reduziu a propor��o de cidad�os que passam fome para 1,7% da popula��o, ou 3,4 milh�es de habitantes, e superou o problema da pobreza extrema.No entanto, abandonou nos �ltimos anos pr�ticas importantes que contribu�ram para esse cen�rio, como investimentos no sal�rio m�nimo e na gera��o de empregos.
"O pa�s sabe como fazer para mudar essa situa��o", diz o mexicano.

Zavala concedeu entrevista � BBC News Brasil por ocasi�o de sua participa��o nesta quinta-feira (30/06) na Confer�ncia de Seguran�a Internacional do Forte de Copacabana, evento da �rea de seguran�a internacional idealizado pela Funda��o Konrad Adenaur, Delega��o da Uni�o Europeia e Centro Brasileiro de Rela��es Internacionais.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - Diversas pesquisas recentes revelaram uma piora significativa na condi��o da fome no Brasil. Uma delas fala em 33,1 milh�es de brasileiros em inseguran�a alimentar, ou 15,5% da popula��o. Como o senhor avalia a atual situa��o?
Rafael Zavala - O estudo citado mediu o n�mero de pessoas entrevistadas que disseram que, em sua percep��o, passaram fome em algum momento. Isso quer dizer que n�o existem atualmente 33 milh�es de pessoas passando fome ao mesmo tempo. Mas, de qualquer maneira, � uma cifra assustadora.
Podemos dizer que existem atualmente dois bols�es de pobreza no Brasil: as cidades grandes e as zonas rurais mais afastadas e incomunic�veis, em que uma interrup��o do fluxo de abastecimento pode gerar condi��es de inseguran�a alimentar grave.
Por outro lado, fica muito claro que o Brasil teve uma das experi�ncias mais bem-sucedidas, n�o s� na Am�rica Latina mas no mundo, de combate � fome h� cerca de 15 ou 20 anos. Ou seja, o pa�s sabe como fazer para mudar essa situa��o.
BBC News Brasil - Qual foi a f�rmula utilizada que contribuiu para essa experi�ncia bem-sucedida? Como ela deve ser adaptada para o momento atual?
Zavala - Foram seguidas cinco grandes prioridades. A primeira delas foi de combate � fome em todo o pa�s. A segunda e terceira foram o aumento do sal�rio m�nimo e o investimento na gera��o de empregos. Em seguida, se fortaleceu os programas de merenda escolar, cozinhas e restaurantes comunit�rios.
A quinta e �ltima prioridade foi de promo��o e inclus�o da agricultura familiar nas compras p�blicas, que implicou em estabilidade para muitas fam�lias que de outra maneira teriam migrado para os centros urbanos.
Desses cinco pontos, somente os dois �ltimos continuam est�veis atualmente. N�o se priorizou o combate � fome em n�vel nacional nos �ltimos anos. Manteve-se o investimento em programas de alimenta��o e promo��o de agricultura familiar, mas isso n�o foi suficiente, como ficou muito claro.
A estrat�gia para o pr�ximo governo, seja ele qual for, precisa ser na dire��o de priorizar o combate � fome em todo o pa�s, al�m de continuar com o maior investimento para gera��o de empregos e fortalecimento de programas de inclus�o social.
O problema no Brasil e na Am�rica Latina n�o � de disponibilidade de alimentos, mas sim de desigualdade, pobreza e falta de renda.

BBC News Brasil - A pandemia de covid-19 piorou a situa��o?
Zavala - Sim, a pandemia deu uma grande sacudida em muitos setores. Quando se decretou o confinamento e as escolas foram fechadas, por exemplo, muitas crian�as ficaram sem seu alimento principal do dia.
O aux�lio emergencial foi um esfor�o not�vel, mas n�o foi suficiente e muitas pessoas passaram fome - calcula-se cerca de 20 milh�es no primeiro ano da pandemia. Mas a covid-19 tamb�m provocou infla��o, que significou pre�os mais altos de praticamente tudo.
Al�m disso, boa parte da popula��o brasileira se ocupa na economia informal e viu seus ingressos para alimenta��o diminu�rem na pandemia. Elas ent�o passaram a comprar
alimentos de menor qualidade, mais ultraprocessados e menos prote�na, frutas, e verduras, levando a uma m� nutri��o. E esse problema se traduz em obesidade.
Ent�o um segundo desafio, al�m da fome, � promover dietas mais saud�veis e ao mesmo tempo garantir que as fam�lias tenham renda suficiente para poder adquirir uma dieta saud�vel. Esse � um dos grandes desafios, n�o s� do Brasil, mas da Am�rica Latina como um todo.
BBC News Brasil - O governo brasileiro poderia ter agido de forma diferente para evitar ou minimizar os impactos da pandemia na inseguran�a alimentar?
Zavala - Posso imaginar que, h� cinco anos, o problema da fome estava mais concentrado no Norte e Nordeste do Brasil. Ent�o � poss�vel que tenha havido uma interpreta��o de que tratava-se apenas de um problema regional. Mas essa realidade mudou e esse tema precisa ser uma prioridade nacional agora.
Al�m disso, a fome n�o � uma tarefa somente do governo, mas tamb�m da sociedade civil, dos governos estaduais e das prefeituras, sobretudo no caso do Brasil, que � o pa�s mais descentralizado da Am�rica Latina.
O Rio de Janeiro, por exemplo, tem um plano municipal de seguran�a alimentar que gosto muito, com esquemas de cozinhas econ�micas e o Prato Feito, voltado para as popula��es mais vulner�veis. E esse exemplo n�o � �nico.
Sou testemunha de programas de restaurantes comunit�rios e outros esquemas similares em Belo Horizonte, no Distrito Federal e outras cidades que precisam ser melhor promovidos.
Mas a �nica cifra aceit�vel de fome no Brasil � zero.
BBC News Brasil - Ao que mais o senhor atribuiria a piora nos dados?
Zavala - H� um contexto global de crise. Dizemos que h� geralmente quatro grandes causas por tr�s da fome: conflitos armados, crise econ�mica, choque clim�tico e epidemias. As quatro est�o acontecendo simultaneamente no mundo hoje.
Nos �ltimos cinco anos, retrocedemos 10 anos em termos de dados de fome. Entre 2016 e 2021, o n�mero de pessoas em situa��o de inseguran�a alimentar cresceu 80%. Desses, 72% est�o em pa�ses com conflito armado e 16% em pa�ses com conflito econ�mico severo. Os demais 12% s�o causados pelo choque clim�tico, especialmente pelos grandes per�odos de secas registrados na �frica e �sia.
Tamb�m � importante mencionar a invas�o da Ucr�nia pela R�ssia, que gerou uma distor��o log�stica global, aumento de pre�os e infla��o. Neste exato momento, 350 navios cargueiros est�o atracados no porto de Odessa cheios de gr�os e fertilizantes, insumos estrat�gicos para produzir alimentos, que iriam para todo mundo, mas n�o est�o chegando.
O pr�prio secret�rio-geral da ONU, Ant�nio Guterres, admitiu que pa�ses como I�men, Som�lia e Sud�o do Sul, que dependem da produ��o de trigo da Ucr�nia, podem sofrer de "fome m�ltipla".

BBC News Brasil - Um estudo da Embrapa, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecu�ria, mostrou que o Brasil � respons�vel pela alimenta��o de cerca de 800 milh�es de pessoas em todo o mundo com o seu agroneg�cio. Ao mesmo tempo, a inseguran�a alimentar n�o para de crescer. Ao que o senhor atribui essa contradi��o?
Zavala - Ao fato de que o pa�s n�o tem um problema de disponibilidade de alimentos, mas sim de acesso econ�mico a eles.
O Brasil � conhecido como 'celeiro do mundo' ou 'cesta de p�es' do mundo por sua produ��o de alimentos, em especial de gr�os. Mas eu gosto de cham�-lo de 'locomotiva alimentar mundial'. Ou seja, os alimentos j� existem, est�o dispon�veis, mas n�o s�o acess�veis para fam�lias que t�m rendas m�nimas.
A Am�rica Latina tem 650 milh�es de habitantes e produz comida para alimentar o dobro da popula��o, mas o grande desafio � fazer com que esses alimentos cheguem aos lares. E � por isso que temos que trabalhar pela gera��o de renda.
BBC News Brasil - Em termos de produ��o agropecu�ria, quais s�o os desafios que o Brasil tem pela frente?
Zavala - S�o dois grandes desafios. O primeiro � que o Brasil � uma locomotiva alimentar mundial, mas que utiliza combust�vel produzido a 12 mil quil�metros de dist�ncia. A maior parte dos fertilizantes e dos insumos agr�colas utilizados no pa�s vem da Bielorr�ssia, Ucr�nia, R�ssia e norte da �frica � preciso diminuir essa depend�ncia e investir em um movimento regional, pois pa�ses como Argentina e Chile sofrem do mesmo mal.
O segundo grande desafio est� no fato de que, diferentemente de outras locomotivas alimentares como Estados Unidos, Canad�, Argentina, �ndia e China, o Brasil fica muito perto do cora��o da biodiversidade planet�ria. Ou seja, o obst�culo � gerar uma estrat�gia de agricultura verdadeiramente sustent�vel, com desmatamento zero, para alimentar uma popula��o com fome zero.
BBC News Brasil - Houve uma grande repercuss�o aqui no Brasil quando o pa�s saiu do Mapa Mundial da Fome da ONU em 2014. Onde o pa�s se encontra nesse momento?
Zavala - O Mapa da Fome da ONU n�o existe mais. Ele era baseado nos Objetivos de Desenvolvimento do Mil�nio (ODMs), estabelecidos em 2000, que foram substitu�dos pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustent�vel - e com a mudan�a mudamos a forma de comunicar os dados.
Mas vale destacar que, se o Mapa ainda existisse, o Brasil estaria dentro no momento atual. Eram listados os pa�ses com mais de 5% da popula��o em condi��o de inseguran�a alimentar - que � o caso do Brasil hoje.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62004074
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