
Naquela que foi a primeira viagem internacional de seu pontificado, papa Francisco fez um pedido um tanto inusitado ao prefeito carioca Eduardo Paes. A chuva n�o dava tr�guas h� quatro dias e causava transtornos aos participantes da Jornada Mundial da Juventude, ocorrido no Rio em julho de 2013.
Francisco apegou-se a uma antiga tradi��o cat�lica popular. Orientou Paes que mandasse uma cesta de ovos a uma freira, para que esta colocasse aos p�s de Santa Clara.
"Isso realmente foi feito, a informa��o foi confirmada pelas [religiosas] clarissas. Um assessor da prefeitura levou a cesta e fez a oferta � Santa Clara", diz o jornalista Victor Hugo Barros, membro da Academia Brasileira de Hagiologia.
"E ao que tudo indica, deu certo, j� nos dias finais [do evento] o sol clareou. Pelo jeito Santa Clara deu um jeito com S�o Pedro l� no c�u…", comenta Barros. "Mas a gente pode ver que at� o papa Francisco � adepto dessa tradi��o popular de ofertar ovos para a santa."Coincid�ncia ou n�o, realmente no dia seguinte ao epis�dio, o tempo limpou no Rio. Mas o fato ilustra como a fama dessa jovem em uma pequena cidade da pen�nsula it�lica no s�culo 13 segue sendo grande, seja nos altares cat�licos, seja nas simpatias populares.
Autor do livro 'Os Santos de Cada Dia', o escritor e pesquisador J. Alves explica a origem da tradi��o de se oferecer ovos para a santa. "A vers�o mais difundida hoje � aquela em que as galinhas poedeiras do convento [onde vivia Clara] foram dizimadas por uma peste", narra ele.
Ocorre que os ovos eram especialmente �teis porque com eles as freiras preparavam doces para vender — com o dinheiro arrecadado, faziam suas obras sociais. Clara ent�o implorou ajuda a Deus. "Chegou ent�o no mosteiro uma caravana de moradores de uma vila devastada por uma tempestade. Santa Clara os acolheu e os abrigou", conta Alves.
"Em forma de gratid�o, eles ofereceram suas galinhas e ovos. Feliz e agradecida, Santa Clara pediu a Deus que parasse a chuva naquela regi�o, o que lhe foi concedido", prossegue o escritor. "Assim nasceu a tradi��o de levar ovos caseiros para um convento de Clarissas, a fim de obter um bom tempo."
Barros acrescenta que, segundo essa antiga hist�ria, Clara teria avisado os viajantes que o sol faria a enchente de seu povoado "desaparecer em 15 dias". "E se voltasse a ocorrer, bastava jogarem ovos no telhado e fazerem uma ora��o a Deus, pensando no convento [das clarissas]", pontua ele. "Isso deu origem a essa lenda de que Santa Clara seria uma grande protetora contra chuvas."
O costume disseminou-se principalmente entre noivas preocupadas em ter um tempo bom no dia do casamento. "As que n�o querem chuva no grande dia levam ovos para um convento regido pelas irm�s clarissas. Mas a entrega tem de ser feita por uma pessoa do sexo feminino e os ovos deixados no altar de Santa Clara um dia antes da cerim�nia. Isso garantiria que o sol esteja brilhando na festa", conta Barros.
Ao longo da hist�ria, h� registros de que ela era invocada por navegadores, principalmente os portugueses, para acalmar tempestades.
Na MPB, Jorge Ben Jor rendeu-se � tradi��o. Em 1981, lan�ou 'Santa Clara Clareou', justamente apoiado por essa ideia. "Santa Clara, clareou/ E aqui quando chegar vai clarear/ Os meus caminhos", diz trecho da can��o.

Antes, o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) tamb�m havia citado essa caracter�stica de Clara em seu poema 'Ora��o para Aviadores'. "Santa Clara, clareai/ Estes ares./ Dai-nos ventos regulares,/ de fei��o./ Estes mares, estes ares/ Clareai. // Santa Clara, dai-nos sol.", diz trecho.
Oficialmente, Santa Clara � reconhecida pela Igreja como a padroeira da televis�o — reconhecimento concedido pelo papa Pio 12 (1876-1958) em 1958. E essa curiosa propriedade, mesmo ela tendo vivido sete s�culos antes do advento de tal tecnologia, tamb�m encontra lastro em uma narrativa popularizada na �poca.
"No final da vida, ela desejava muito participar da missa de Natal na igreja, mas por causa da sa�de [ela estava acamada], n�o poderia estar presente", relata frei Francisco Lopes Neto, da Ordem dos Frades Menores. "Pediu para estar presente espiritualmente."
E ent�o teria a cerim�nia teria aparecido a ela, como uma proje��o miraculosa, em uma das paredes de seu quarto. "Foi uma esp�cie de televis�o espiritual, s�culos antes da inven��o da televis�o", comenta Barros. "Quando as demais irm�s retornaram ao convento, a pr�pria Santa Clara teria feito quest�o de narrar tudo o que havia ocorrido na missa, com os pormenores que s� quem estivesse no templo seria capaz de faz�-los."
Caetano Veloso, em 1991, inspirou-se na hist�ria para sua m�sica 'Santa Clara, Padroeira da Televis�o'. "Santa Clara, padroeira da televis�o/ Que a televis�o n�o seja o inferno interno, ermo/ Um ver no excesso o eterno quase nada (quase nada)/ Que a televis�o n�o seja sempre vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada pelo que ela �/ De poesia.", diz uma das estrofes.
A seguidora de Francisco
Clara de Assis (1194-1253) foi uma mulher de fam�lia nobre que, encantada com o radicalismo de Francisco (1181 ou 1182-1226), decidiu seguir seu exemplo: abandonar a vida de posses e entregar-se ao cuidado com os pobres.
Segundo relatos antigos, era um mo�a muito bonita e vinha sendo preparada, por sua fam�lia, para arranjar um bom casamento — que garantiria a ela uma vida de riqueza e, aos seus parentes, o pagamento de um dote excelente.

Mas, ainda adolescente, ela teria ouvido algumas prega��es de Francisco e seus companheiros pelas ruas de Assis. �s escondidas, passou a apoiar o grupo, doando alimentos e ajudando-os naquela miss�o.
A partir de 1211, ela passou a se encontrar assiduamente com Francisco, enxergando nele um pai espiritual, um mentor. Aos 18 anos, ela decidiu sair de casa. "Tinha 18 anos quando fugiu e foi ao encontro de Francisco", narra J. Alves.
"Tornaram-se amigos. Naquele mesmo dia, Clara deixou que Francisco raspasse sua cabe�a e se consagrou totalmente a Deus, para uma vida de absoluta pobreza. Al�m de amigo fraterno, Francisco tornou-se seu mestre e guia espiritual, seu inspirador."
O ato de raspar a cabe�a significava o despojamento na mudan�a para a nova vida. "Clara escolheu Francisco como mestre de caminhada, um diretor espiritual", salienta Barros. "Ele disse para ela se entregar a Deus completamente."
A fuga da casa da fam�lia ocorreu, segundo os relatos antigos, pela "porta dos mortos". Trata-se de uma sa�da dos fundos, comuns em casar�es de nobres daquele tempo, que s� era utilizada para a retirada de defuntos. "Isso indica que ela tomou uma posi��o radical, de deixar para tr�s a seguran�a que ela tinha na vida abastada", interpreta Barros.
Seus familiares n�o aceitaram tranquilamente a decis�o No dia seguinte tentaram resgat�-la junto aos religiosos, mas ela, abrigada dentro de uma igreja, teria se agarrado �s toalhas do altar para que n�o fosse dali retirada.
Uma ordem feminina, com regras femininas
Acabou vivendo em diversos conventos femininos at� criar a sua pr�pria institui��o. "Seguindo os passos de Francisco, ela abandonou a vida confort�vel e abra�ou a pobreza evang�lica absoluta, fundando a chamada inicialmente Ordem das Damas Pobres", pontua J. Alves. "Como Francisco de Assis, Clara arrastou atr�s de si, n�o apenas familiares, como irm�, m�e e prima, mas tamb�m muitas jovens das fam�lias mais importantes de Assis, desejosas de um novo sentido para suas vidas."
"Ela e suas companheiras passaram a viver do trabalho de suas m�os e das esmolas que recebiam e distribu�am aos pobres e indigentes", afirma Alves.
Frei Lopes Neto ressalta a personalidade forte de Clara. "Em um per�odo em que a mulher era t�o colocada de lado, desprezada, ela precisa ser reconhecida", ressalta o religioso.
Ela acabou sendo a fundadora do ramo feminino da ordem franciscana, a Ordem de Santa Clara ou Ordem das Clarissas. Que se expandiu rapidamente. "Em 1228, j� eram 24 os mosteiros que seguiam o carisma de Santa Clara, segundo levantamento da �poca", cita Barros. No ano da morte de clara, em 1253, o n�mero havia saltado para 111.

"Depois da morte de Francisco [em 1226], Clara continuou a obra fransciscana", afirma Barros. Lopes Neto compara a import�ncia de Clara para o fransciscanismo ao papel que teve S�o Paulo para a difus�o do cristianismo. "Foi ela quem deu carne, sustento, brigou, batalhou e deu testemunho de vida para que a Igreja, a hierarquia e o movimento eclesial, n�o se esquecesse do legado de Francisco", diz.
"Sua insist�ncia e sua for�a �s vezes destoam da imagem feminina que �s vezes o cinema nos faz ver [ao retrat�-la]. Ela era uma mulher muito forte, de fibra, que sabia dizer n�o, sabia dizer sim. E, por isso mesmo, foi uma grande m�e, a grande sustentadora do carisma franciscano", completa Lopes Neto.
Em um gesto que parecia muito � frente de seu tempo, ela tomou para si a tarefa de escrever a "forma de vida" da ordem que havia fundado. Ou seja: o conjunto de regras que deveria nortear o dia a dia de todas aquelas que escolhessem aderir a um convento das clarissas.
"Ela entrou para a hist�ria por ter sido a primeira mulher na hist�ria da Igreja a escrever uma regra de vida, esse conjunto de diretrizes e ensinamentos para a comunidade religiosa", frisa Barros. "Foi um gesto bastante ousado, porque o primeiro esbo�o havia sido escrito pelo papa Greg�rio 9º [(1145-1241)]. Ela assumiu o trabalho e lutou at� o fim da vida para que a regra fosse aprovada pela Igreja."
Isso teria ocorrido apenas em 9 de agosto de 1253. Dois dias antes de sua morte.
"Seu funeral teve a presen�a do papa [Inoc�ncio 4º (1195-1254)] e de cardeais, algo pouco usual naquela �poca", comenta Barros.
- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-62434627
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