
Aten��o: o texto a seguir cont�m relatos que podem ser perturbadores para alguns leitores
A falta de assist�ncia aos povos ind�genas � a forma mais eficaz de matar sem deixar vest�gios. � o que destacava em 1967 o procurador Jader de Figueiredo Correia em um relat�rio que descrevia viol�ncias praticadas contra povos ind�genas no Brasil por militares, integrantes do Servi�o de Prote��o aos �ndios (SPI), funcion�rios p�blicos, fazendeiros, garimpeiros, grileiros, madeireiros e empres�rios.
"A falta de assist�ncia, por�m, � a mais eficiente maneira de praticar o assassinato. A fome, a peste e os maus tratos, est�o abatendo povos valentes e fortes. A Comiss�o viu cenas de fome, de mis�ria, de subnutri��o, de peste, de parasitoses externa e interna, quadros esses de revoltar o indiv�duo mais insens�vel", revelava o relat�rio escrito h� 56 anos, em plena ditadura militar, que ficou conhecido como Relat�rio Figueiredo.
Ele mostrava o genoc�dio de comunidades inteiras, torturas, sev�cias, roubo, viol�ncias e crueldades praticadas contra ind�genas no Brasil nas d�cadas de 1940, 1950 e 1960. "O Servi�o de Prote��o ao �ndio degenerou a ponto de persegui-los at� ao exterm�nio", apontou o relat�rio, que ficou desaparecido por mais de 40 anos.
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Muito do que se relata hoje sobre abandono, massacre, viol�ncia e falta de assist�ncias a comunidades ind�genas no Brasil, como os Yanomami, j� estava documentado naquele relat�rio composto por 26 volumes e 5.492 p�ginas.
A investiga��o foi resultante de uma expedi��o que percorreu mais de 16 mil quil�metros. Foram entrevistados dezenas de agentes do SPI, al�m da visita a mais de 130 postos ind�genas.
Foram denunciados 132 militares, outros servidores p�blicos, cidad�os comuns, homens e mulheres. Houve a recomenda��o de pris�es, demiss�es ou a suspens�o do trabalho, al�m de outras penalidades. O material foi entregue ao Poder Judici�rio.
Ocorreu apenas o afastamento do pessoal do SPI e a abertura de processos administrativos. Com a promulga��o do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, tudo foi esquecido. Parte dos afastados retomou seus postos na nova estrutura que substituiu o SPI, a Funai (Funda��o Nacional do �ndio, que passou depois a se chamar Funda��o Nacional dos Povos Ind�genas). Ningu�m foi preso.
'Estado � autor'

O relat�rio de 1967 identifica e reconhece as viol�ncias cometidas contra os povos ind�genas. O Estado brasileiro aparece como autor direto dos crimes, atrav�s de seus servidores, ou de forma indireta, por omiss�o diante dos ataques contra essas popula��es origin�rias efetuados por fazendeiros, garimpeiros, madeireiros, grileiros, seringueiros que contavam com a coniv�ncia de pol�ticos locais, estaduais e federais.
"H� repeti��o permanente desse problema. S�o 56 anos desde a den�ncia do Relat�rio Figueiredo, e o problema do desrespeito ao direito constitucional ind�gena �s suas terras e ao usufruto de seus territ�rios segue inalterado. Os povos s�o atacados em suas comunidades e aldeias, sem solu��o", reclama Marcelo Zelic, membro da Comiss�o Justi�a e Paz de S�o Paulo e coordenador do Armaz�m Mem�ria, respons�vel pelo resgate do Relat�rio Figueiredo nos arquivos do governo federal.
O procurador Jader de Figueiredo cita dificuldades para desenvolver o trabalho em campo e chama a situa��o de "o maior esc�ndalo administrativo do Brasil".
Na enorme lista de delitos cometidos, o documento cita crimes contra pessoa e a propriedade do ind�gena, assassinatos individuais e coletivos, prostitui��o de ind�genas, sev�cias, trabalho escravo, usurpa��o do trabalho, apropria��o e desvio de recursos oriundos do patrim�nio ind�gena, dilapida��o do patrim�nio ind�gena como a venda de gado, arrendamento de terras, venda de madeira, explora��o de min�rios, venda de castanha e de outros produtos de atividades extrativas e de colheita, venda de produtos de artesanato, doa��o criminosa de terras, venda de ve�culos.

Tudo isso, ainda segundo Jader de Figueiredo, alcan�ou cifras incalcul�veis. N�o sendo "poss�vel levantar com exatid�o os valores subtra�dos aos �ndios (sic) para exigir ressarcimento".
Nos crimes administrativos, os envolvidos praticaram a adultera��o de documentos oficiais, fraudaram processos de comprova��o de contas, desviaram verbas or�ament�rias, aplicaram irregularmente dinheiro p�blico. Eles acarretaram em omiss�es dolosas das autoridades e dos pr�prios servidores, admiss�es fraudulentas de funcion�rios e inc�ria administrativa.
Crueldade
Com rela��o � viol�ncia, o documento registra o genoc�dio dos Cinta-larga, no Mato Grosso, com lan�amento de explosivos de avi�o sobre as ocas. Os sobreviventes eram envenenados ou mortos a tiros de metralhadora. Entre as cenas mais cru�is relatadas est� a morte por fac�o, quando a pessoa era cortada ao meio.
"Mais recentemente, os Cintas-largas teriam sido exterminados a dinamite atirada de avi�o, e a estricnina (veneno) adicionada ao a��car enquanto os mateiros os ca�am a tiros de 'pi-ri-pi-pi' (metralhadora) e racham vivos, a fac�o, do p�bis para a cabe�a o sobrevivente", relatou Jader de Figueiredo. Esse povo vivia entre o noroeste do Mato Grosso e sudeste de Rond�nia.
O caso do exterm�nio dos Cintas-largas ficou conhecido como o Massacre do Paralelo 11, promovido no Mato Grosso por pistoleiros contratados pela empresa seringalista Arruda Junqueira & Cia, em 1963. Depoimento de Ramis Bucair, servidor p�blico, descreve a a��o de pistoleiros chefiados por Chico Luiz, que metralharam um grupo Cinta-larga. Durante a a��o, localizaram com vida uma ind�gena e seu filho de seis anos. O menino acabou morto com um tiro na cabe�a. A mulher foi pendurada pelos p�s, com as pernas abertas, e seu corpo partido ao meio com um golpe de fac�o.
A comiss�o chefiada por Jader de Figueiredo recebeu das m�os do pr�prio Ramos Bucair uma fita de �udio com a grava��o da confiss�o do crime, com a voz de Ata�de Pereira dos Santos.

Tamb�m h� registro sobre a extin��o de um povo localizado em Itabuna, na Bahia, na reserva Caramuru-Paragua�u dos Patax�-H�h�h�e, utilizando o envenenamento qu�mico de doen�a. "A serem verdadeiras as acusa��es, � grav�ssimo. Jamais foram apuradas a den�ncia de que foi inoculado o v�rus da var�ola nos infelizes ind�genas para que se pudessem distribuir suas terras entre figur�es do governo".
"� preciso desarmar os mecanismos de repeti��o da hist�ria que existem. A n�o-repeti��o de viola��es de direitos humanos pressup�e a cria��o de mecanismos que modifiquem procedimentos cristalizados na gest�o e a��o do Estado brasileiro. Estes procedimentos se constituem em pr�tica lesiva ao direito ind�gena, ocorrendo tanto no poder Executivo, como no Legislativo e Judici�rio que, quando n�o s�o protagonistas, d�o sustenta��o fundamental � repeti��o de graves viola��es de direitos humanos contra os povos ind�genas, como ocorre hoje e ao longo de todo o governo Bolsonaro, conforme den�ncias de genoc�dio e crimes de lesa-humanidade em an�lise no Tribunal Penal Internacional", afirma Marcelo Zelic.
Relat�rio da Comiss�o Nacional da Verdade
Mais recentemente, a Comiss�o Nacional da Verdade (CNV) investigou casos de viol�ncia envolvendo dez etnias ind�genas v�timas de graves viola��es de direitos humanos, ocorridos no Brasil durante o per�odo da ditadura militar, entre 1964 e 1985.
No relat�rio da CNV s�o apontadas as mortes de ao menos 8.350 ind�genas em massacres, esbulho de terras, remo��es for�adas de seus territ�rios, cont�gio por doen�as infectocontagiosas, pris�es, torturas e maus tratos.
No cap�tulo Viola��es de direitos humanos dos povos ind�genas consta que o maior n�mero de mortos est� entre os Cinta-larga, com 3.500 casos, seguidos pelos Waimiri-Atroari (AM) - 2.650 mortos; Tapayuna (MT) - 1.180; Yanomami (AM/RR) - 354; Xet� (PR) - 192; Panar� (MT) - 176; Parakan� (PA) - 118; Xavante Mar�iwats�d� (MT) - 85; Arawet� (PA) - 72 e Arara (PA) - 14 mortos.
Atualmente, a popula��o brasileira � composta por aproximadamente 900 mil ind�genas de 305 etnias diferentes, segundo a Funai.
Respons�vel pela sa�de ind�gena na d�cada de 1970, a Funai foi omissa e levou � morte muitos indiv�duos acometidos por diversas epidemias de alta letalidade, segundo o relat�rio. Eram casos de sarampo, gripe, mal�ria, caxumba, tuberculose, al�m da contamina��o por infec��es sexualmente transmiss�veis.
O mesmo relat�rio da CNV denuncia que a abertura do trecho da Perimetral Norte (BR-210), entre o munic�pio de Caracara� e o limite entre Roraima e Amazonas, tamb�m provocou as mortes de 354 Yanomami e impactou diretamente cerca de 250 pessoas das aldeias desta etnia no rio Ajarani e seus afluentes, al�m de 450 ind�genas abrigados em malocas no rio Catrimani na d�cada de 70.
'Ciclo de viol�ncia contra os povos ind�genas'
"O Relat�rio Figueiredo elencava entre 'os crimes contra a pessoa e a propriedade do �ndio' pr�ticas como, entre outras, 'sev�cias, apropria��o e desvio de recursos oriundos do patrim�nio ind�gena e dilapida��o do patrim�nio ind�gena'. Agora, 56 anos depois, acompanhamos o flagelo dos Yanomami em tempo real e vimos as mesmas pr�ticas, denunciando que o Estado brasileiro repete os mesmos erros, sem ter em considera��o o reconhecimento de sua diversidade cultural, conforme consagrado em nossa Constitui��o, e colocando o Brasil, novamente, no centro de uma crise humanit�ria", diz Edilene Coffaci, antrop�loga, professora da Universidade Federal do Paran� (UFPR).
E Marcelo Zelic diz: "Os governos agem sob press�o. O Estado age para tirar o problema da frente, mas � uma situa��o c�clica. Tudo vem acontecendo como sempre. O problema � grave, vai para a imprensa, h� uma a��o da sociedade. Daqui a pouco tudo some do notici�rio e as coisas voltam a ser como eram antes".
Esse ciclo de viol�ncia contra os povos ind�genas n�o termina porque corresponde a uma cultura de �ndole colonial com a qual o Brasil nunca rompeu, segundo Alfredo Atti�, presidente da Academia Paulista de Direito.
Atti� afirma que os ind�genas est�o sendo expropriados de seus territ�rios e violentados desde a chegada europeia, no s�culo 16. "Penso que essa expropria��o sempre se deu de modo il�cito - foram constru�das teorias jur�dicas especificamente para justificar esse processo, conferindo �queles que se apropriaram das terras ind�genas t�tulos falsos, validados pela pr�pria constitui��o do direito moderno, que subsiste at� hoje".
Para superar esse ciclo, h� necessidade de medidas que dizem respeito a pol�ticas p�blicas, sobretudo as de reconhecimento dos territ�rios e de sua prote��o efetiva contra invasores e exploradores, segundo especialistas.

"Igualmente, h� necessidade de impedir que os assassinatos contra l�deres ind�genas permane�am. A cria��o de um Minist�rio para os Povos Ind�genas significa al�ar as pol�ticas da Funai e da Secretaria Especial de Sa�de Ind�gena (Sesai) a um patamar mais seguro e eficiente", diz Atti�.
"Mas isso n�o basta, pois h� necessidade de enfrentar corajosamente a revis�o do que significa propriedade e restabelecer a propriedade ind�gena - s�o os verdadeiros donos do territ�rio brasileiro - e empreender uma pol�tica bastante radical na reatribui��o de terras, o que afetar� os donos do poder e os donos de extensas �reas, detentores ileg�timos do que n�o lhes pertence de direito", afirma Atti�, ao apontar que "talvez auxilie na compreens�o dessa pol�tica a consci�ncia de que defender ind�genas e o que lhes pertence signifique reconstituir o meio ambiente e proteger os biomas brasileiros, de que s�o guardi�es."
Fl�vio de Le�o Bastos Pereira, coordenador do N�cleo da Mem�ria da Comiss�o de Direitos Humanos da OAB/SP, diz que a Funai repetiu no governo Bolsonaro o que fazia durante a ditadura. Tamb�m aponta que "nunca se investigou o Reformat�rio Krenak, que era um campo de concentra��o, quantas terras ind�genas foram invadidas, quantas crian�as ind�genas foram levadas � for�a em avi�es da FAB para outras regi�es do pa�s, quantos Guaranis foram mortos na constru��o da Usina de Itaipu, entre outros fatos envolvendo os povos ind�genas".
Para garantir o direito e a vida dos povos ind�genas, reafirma o professor do Mackenzie, � preciso demarcar as terras desses povos, conforme manda o artigo 231 da Constitui��o brasileira.
"A terra ind�gena � ancestral, essencial para a exist�ncia dessas culturas. Os povos ind�genas n�o det�m a terra, eles s�o a pr�pria terra. Tamb�m � necess�rio dar maior protagonismo a esses povos, com a cria��o do Minist�rio dos Povos Ind�genas e a presid�ncia da nova Funai com uma ind�gena, como come�ou a ser feito agora", diz Bastos.
- Este texto foi publicado emhttps://www.bbc.com/portuguese/brasil-64384247