
Em mar�o de 2023, uma greve paralisou o metr� de S�o Paulo. Em meio �s negocia��es, os metrovi�rios propuseram uma forma de protesto diferente: eles voltariam ao trabalho, mas o metr� operaria sem cobran�a de tarifa da popula��o at� as partes chegarem a um acordo.
A ideia acabou barrada pela Justi�a, impedindo o que teria sido o segundo maior experimento de tarifa zero no pa�s em menos de um ano.
A tarifa zero ou passe livre � uma pol�tica p�blica que prev� o uso do transporte p�blico sem cobran�a de tarifa do usu�rio final. Nesse modelo, o sistema � financiado pelo or�amento do munic�pio, com fontes de recursos que variam, a partir do desenho adotado por cada cidade.
O primeiro teste em grande escala da proposta no pa�s aconteceu no segundo turno das elei��es presidenciais, em outubro de 2022. Naquele dia, centenas de cidades brasileiras deixaram de cobrar passagem nos �nibus e trens, para facilitar o acesso dos eleitores �s urnas.
Os n�meros revelam a imensa demanda reprimida pelo transporte urbano e o fato de que, atualmente, milh�es de brasileiros n�o usam �nibus, metr�s e trens por falta de dinheiro.
Mas essa realidade est� mudando em um n�mero crescente de cidades e projetos em discuss�o na C�mara dos Deputados querem tornar a tarifa zero uma pol�tica nacional – embora financi�-la em grandes centros urbanos ainda seja um imenso desafio.
67 cidades brasileiras com tarifa zero
Ao menos 67 cidades brasileiras j� adotam a tarifa zero em todo o seu sistema de transporte, durante todos os dias da semana, conforme levantamento da NTU (Associa��o Nacional das Empresas de Transportes Urbanos), atualizado em mar�o de 2023.
S�o cidades pequenas e m�dias, com popula��es que variam de 3 mil a mais de 300 mil habitantes.
Outros sete munic�pios adotam a pol�tica de forma parcial: em dias espec�ficos da semana, em parte do sistema ou apenas para um grupo limitado de usu�rios, segundo os dados da NTU.
E ao menos quatro capitais estudam neste momento a possibilidade de adotar a tarifa zero em seus sistemas de transporte: S�o Paulo, Cuiab�, Fortaleza e Palmas, de acordo com levantamento da �rea de mobilidade urbana do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
No Brasil, a tarifa zero foi proposta pela primeira vez durante o mandato da ent�o petista Luiza Erundina � frente da Prefeitura de S�o Paulo (1989-1992). Mas, naquela ocasi�o, a proposta n�o avan�ou.
A pol�tica voltou ao debate p�blico nos anos 2000, com o surgimento do Movimento Passe Livre (MPL).
O movimento social ganhou notoriedade em junho de 2013, ao liderar a maior onda de protestos da hist�ria recente, deflagrada por um aumento das tarifas de �nibus em S�o Paulo.

Os n�meros da NTU mostram que junho de 2013 teve efeitos concretos: das 67 cidades com tarifa zero no pa�s, 51 adotaram a pol�tica ap�s aquele ano.
A pandemia deu impulso adicional ao avan�o do modelo no Brasil: desde 2021, foram 37 cidades a adotar a tarifa zero – 13 em 2021, 16 em 2022 e outras oito s� neste in�cio de 2023.
O tema foi discutido pela equipe de transi��o do governo Luiz In�cio Lula da Silva (PT) e est� no centro de um projeto de lei e uma PEC (Proposta de Emenda � Constitui��o) na C�mara, o primeiro da autoria de Jilmar Tatto (PT-SP) e a segunda, de Luiza Erundina (Psol-SP).
A PEC de Erundina pretende criar um Sistema �nico de Mobilidade (SUM), a exemplo do Sistema �nico de Sa�de (SUS). O objetivo � garantir a gratuidade nos transportes, por meio de um modelo de responsabilidade compartilhada entre governo federal, Estados e munic�pios.
A seguir, conhe�a a experi�ncia de cidades que j� adotam a tarifa zero e os desafios para implementa��o da pol�tica em munic�pios de grande porte, como S�o Paulo.
Maric� (RJ): demanda aumentou mais de 6 vezes
Maric�, no Rio de Janeiro, iniciou seu projeto de tarifa zero ainda em 2014, durante o mandato de Washington Quaqu� (PT) na prefeitura do munic�pio.
Com uma popula��o de 167 mil habitantes, a cidade da Regi�o Metropolitana do Rio de Janeiro, conta com um or�amento turbinado por royalties do petr�leo – uma esp�cie de compensa��o recebida por munic�pios pela explora��o do �leo em suas �guas.
Foi com esse dinheiro em caixa que Maric� viabilizou uma pol�tica de renda b�sica que atualmente beneficia 42,5 mil moradores e tamb�m os �nibus gratuitos para a popula��o.

Para dar in�cio � pol�tica de tarifa zero, a prefeitura de Maric� criou uma autarquia, a EPT.
Com frota e motoristas pr�prios, a empresa operava a princ�pio um n�mero reduzido de �nibus gratuitos, que circulavam ao mesmo tempo que linhas pagas, operadas por duas empresas privadas que tinham o direito de concess�o no munic�pio. Essa opera��o concomitante levou a embates na Justi�a, encerrados apenas com o fim das concess�es.
Foi apenas em mar�o de 2021 que a EPT passou a operar todas as linhas do munic�pio com tarifa zero, por meio de �nibus pr�prios e outros alugados de empresas privadas atrav�s de processos de licita��o.
Atualmente com 120 �nibus e 3,5 milh�es de passageiros por m�s, o custo mensal do sistema varia de R$ 10 milh�es a R$ 12 milh�es.
"Em 2022, foram R$ 160 milh�es que as fam�lias deixaram de gastar com transporte, o que � injetado diretamente na economia da cidade", diz Celso Haddad, presidente da EPT de Maric�.
O munic�pio enfrentou, no entanto, um desafio comum a todas as cidades que implantam a tarifa zero: explos�o de demanda e, consequentemente, dos custos de opera��o.
"Aqui em Maric�, [a demanda] cresceu mais de seis vezes. T�nhamos em torno de 15 mil a 20 mil pessoas transportadas diariamente e hoje transportamos mais de 120 mil. A tarifa zero � um propulsor do direito de ir e vir, � muito avassaladora a diferen�a", afirma o gestor.
Vargem Grande Paulista (SP): taxa paga por empresas locais
O avan�o da tarifa zero no per�odo recente deixou de ser identificado com um espectro pol�tico espec�fico. Prefeitos de esquerda e direita t�m implementado o modelo em seus munic�pios.
Josu� Ramos, prefeito de Vargem Grande Paulista, por exemplo, � filiado ao PL do ex-presidente Jair Bolsonaro.

O prefeito conta que a motiva��o que o levou a implementar em 2019 a tarifa zero no munic�pio foi a necessidade crescente de subs�dios – a remunera��o do servi�o de transporte p�blico � geralmente composta por uma parcela financiada via tarifa e outra via subs�dio, com recursos que v�m do or�amento da prefeitura, a partir da arrecada��o de impostos.
"Assim que eu assumi, em 2017, a empresa de �nibus veio pressionar para aumentar a tarifa ou ampliar o subs�dio ao transporte da cidade, e eu n�o tinha previs�o or�ament�ria para isso", diz Ramos.
"Eles, do dia para a noite, retiraram todos os �nibus das linhas e eu tive que, em 12 horas, buscar um transporte alternativo, e coloquei vans operando de forma gratuita. Isso me despertou o interesse em estudar melhor o caso [da tarifa zero]."
Ramos conta que estudou exemplos europeus, como Luxemburgo – pa�s que adota a gratuidade em todo seu sistema de transporte, incluindo �nibus, trens e metr�s –, e brasileiros, como os de Maric� e Agudos, no interior de S�o Paulo.
Assim, a prefeitura chegou a um modelo em que a gratuidade � financiada atrav�s de um fundo de transporte, cujas principais receitas s�o uma taxa paga pelas empresas locais no lugar do vale-transporte (de R$ 39,20 mensais por funcion�rio), al�m de publicidade nos �nibus, loca��o de lojas nos terminais e 30% do valor das multas de tr�nsito.
Empresas locais chegaram a ir � Justi�a contra a cobran�a da taxa, mas Ramos afirma que algumas desistiram ap�s entenderem melhor a proposta, restando uma a��o pendente.
Com a tarifa zero, a demanda aumentou de 40 mil para 110 mil usu�rios mensais, exigindo a amplia��o da frota de �nibus. Atualmente, s�o 15 �nibus, em sete linhas, e o custo do sistema � de R$ 600 mil mensais.
"� uma quest�o muito maior do que a de mobilidade. Existe a quest�o social, a de gera��o de recursos, porque na hora que eu implantei a tarifa zero, aumentou o gasto no com�rcio, a arrecada��o de ICMS, de ISS", relata Ramos.
"Existe tamb�m a quest�o da sa�de: t�nhamos 30% de pessoas que faltavam � consulta m�dica e esse �ndice reduziu, porque as pessoas n�o tinham dinheiro para ir � consulta. Ent�o ajudou em todas as �reas. A tarifa zero, ao ser debatida, precisa levar em conta tudo isso."
Caucaia (CE): tarifa zero no segundo maior munic�pio do Cear�
Caucaia, segundo munic�pio mais populoso do Cear�, com 369 mil habitantes, � um exemplo do avan�o da tarifa zero nos munic�pios ap�s a pandemia.
Com a crise sanit�ria, os sistemas de transportes p�blicos perderam passageiros e os custos aumentaram com a alta do diesel e da m�o de obra.
Isso fez crescer a press�o por subs�dios, num momento em que as fam�lias, com a renda pressionada, teriam dificuldade para arcar com um aumento da tarifa.
"T�nhamos que fazer alguma coisa para diminuir a perda [de renda] das fam�lias, elas precisavam ser socorridas de alguma forma na esfera municipal, para al�m do aux�lio emergencial", diz Vitor Valim, prefeito de Caucaia, eleito pelo PROS e atualmente sem partido.
Diferentemente de Maric�, que conta com royalties do petr�leo, e de Vargem Grande Paulista, que criou uma taxa sobre as empresas locais, Caucaia decidiu arcar com a tarifa zero com recursos do or�amento regular da prefeitura.

O programa, que recebeu o nome de Bora de Gra�a, foi implementado em setembro de 2021.
A iniciativa consome atualmente cerca de 3% do or�amento municipal e a remunera��o � empresa prestadora do servi�o � por quil�metro rodado, n�o por passagem.
"� t�o exequ�vel que o modelo de Caucaia ser� estendido para toda a regi�o metropolitana", diz Valim.
A gratuidade no transporte p�blico intermunicipal na Regi�o Metropolitana de Fortaleza foi promessa de campanha do governador Elmano de Freitas (PT) e um projeto sobre o tema tramita na Assembleia Legislativa do Cear�.
Al�m de Caucaia, j� adotam a tarifa zero na Regi�o Metropolitana de Fortaleza os munic�pios de Eus�bio, Aquiraz e Maracana�. A capital estuda adotar a gratuidade para estudantes.
A repercuss�o local � outra caracter�stica do avan�o recente da tarifa zero: a ado��o da pol�tica por um munic�pio influencia as cidades do entorno.
Em Caucaia, com a tarifa zero, a demanda passou de 505 mil passageiros por m�s para 2,2 milh�es.
"Tivemos um aumento de custo de mais 30% com refor�o da frota, o que era previs�vel", relata o prefeito. "Esse foi um desafio em termos de gest�o, mas a dificuldade maior foi vencer a descren�a da popula��o, que temia ser taxada. Teve uma desconfian�a muito grande do povo."
O desafio das grandes cidades
Com a tarifa zero avan�ando nas pequenas e m�dias cidades, diversas capitais do pa�s estudam caminhos para adotar a pol�tica.
Desde outubro de 2021, S�o Lu�s (MA) testa um projeto-piloto chamado Expresso do Trabalhador, oferecendo a gratuidade para uma regi�o espec�fica da cidade e para trabalhadores do com�rcio ap�s �s 21h.
Florian�polis (SC) tem �nibus de gra�a no �ltimo domingo de cada m�s – em dezembro e janeiro, a gratuidade foi estendida a todos os fins de semana.
Em S�o Paulo, uma subcomiss�o na C�mara Municipal estuda desde mar�o a viabilidade da tarifa zero na capital de mais de 12 milh�es de habitantes.
Atualmente, as 74 cidades brasileiras com tarifa zero total ou parcial somam juntas 3,8 milh�es de habitantes, segundo a NTU, o que d� uma ideia do tamanho do desafio paulistano.

"Em S�o Paulo, o custo hoje de opera��o [do sistema de �nibus municipais] passa de R$ 12 bilh�es e o munic�pio coloca mais de R$ 5 bilh�es em subs�dios", afirma o vereador Paulo Fringe (PTB), presidente da Subcomiss�o da Tarifa Zero da C�mara Municipal de S�o Paulo
"A tarifa na capital est� atualmente em R$ 4,40 – o valor real dela � de R$ 7,10, portanto o munic�pio est� subsidiando grande parte desse custo. [Na subcomiss�o da Tarifa Zero] temos 120 dias, renov�veis, para estabelecer um diagn�stico de quais s�o as eventuais fontes de receita, sem aumento de imposto, para que possamos subsidiar a parte que falta para ter a tarifa zero."
Rafael Calabria, coordenador de mobilidade urbana do Idec, afirma que o custo de financiamento n�o � o �nico desafio para a implanta��o da tarifa zero em grandes cidades.
Uma segunda dificuldade, segundo o especialista, � conseguir atender o esperado aumento de demanda, o que exige investimento n�o apenas no aumento de frota, mas em infraestrutura urbana – incluindo faixas exclusivas, elimina��o de vagas de estacionamento em vias onde passam �nibus, cria��o de sistemas de integra��o e transfer�ncia, e assim por diante.
Outro desafio � a integra��o com o sistema de transporte sobre trilhos, j� que metr�s e trens operam em muitas capitais no limite de sua capacidade, o que gera uma dificuldade para acomodar os novos fluxos que seriam gerados pela gratuidade.
Por fim, um �ltimo desafio nas grandes cidades � a quest�o metropolitana, pois eventuais disputas fiscais entre cidades com pol�ticas diferentes poderiam desequilibrar o sistema.
O que pensam as operadoras de �nibus
Francisco Christovam, presidente-executivo da NTU, associa��o que congrega as empresas de transporte por �nibus, acrescenta que h� tamb�m um desafio jur�dico-legal, que diz respeito aos contratos de concess�o ou permiss�o entre operadoras e prefeituras.
"Esses contratos precisar�o ser revistos, mas as prefeituras n�o podem ver essa mudan�a como uma oportunidade de rasgar contratos", diz Christovam.
As empresas avaliam, por�m, que a tarifa zero pode ser uma solu��o para voltar a atrair a popula��o para o transporte p�blico – at� fevereiro de 2023, a demanda nos �nibus urbanos do pa�s ainda era equivalente a 82,8% do per�odo anterior � pandemia.

Tamb�m pode ser uma alternativa para o reequil�brio financeiro dos sistemas, num momento em que crescem os subs�dios, em meio � alta de custos.
Segundo levantamento da NTU, antes da covid-19, apenas S�o Paulo, Curitiba e Bras�lia subsidiavam pesadamente seus sistemas de transporte. Atualmente, s�o mais de 200 cidades subsidiando seus sistemas de transporte.
"Para n�s operadores, o importante � a garantia da remunera��o justa e adequada pelo servi�o prestado. Se o dinheiro veio do passageiro ou do or�amento municipal, para n�s n�o tem import�ncia nenhuma, desde que o valor seja suficiente para pagar o custo do servi�o."
Sistema Unificado de Mobilidade
Na C�mara dos Deputados, ao menos dois projetos tentam fazer da tarifa zero um programa nacional.
O projeto de Jilmar Tatto (PL 1280/2023) prop�e a cria��o do Programa Tarifa Zero, com modelo de financiamento similar ao de Vargem Grande Paulista.
Pelo projeto, as cidades poderiam aderir ao programa de forma volunt�ria. Os empres�rios locais ent�o trocariam o pagamento do vale-transporte pela contribui��o a um fundo municipal para subsidiar a gratuidade no transporte – que seria, no entanto, limitada aos trabalhadores.
Mais abrangente, a PEC de Luiza Erundina prop�e a cria��o de um Sistema �nico de Mobilidade, universal e gratuito ao usu�rio, a exemplo do SUS, na sa�de.

A PEC est� em fase de coleta de assinaturas – s�o necess�rias 171 para que a proposta possa tramitar na C�mara e o mandato j� havia recolhido 32 at� o in�cio desta semana.
Pela proposta, o financiamento ao sistema seria viabilizado pela institui��o de uma contribui��o pelo uso do sistema vi�rio e por recursos da arrecada��o de impostos de Uni�o, Estados e munic�pios.
Erundina explica que o objetivo da proposta � concretizar a Emenda Constitucional 90 de 2015, que naquele ano garantiu o transporte como um direito social, inscrito no artigo 6º da Constitui��o.
Pioneira a propor a tarifa zero, ainda em 1989, a deputada v� com satisfa��o o avan�o da pol�tica p�blica nas cidades brasileiras e se diz otimista com as perspectivas para a PEC.
"Quando uma proposta tem coer�ncia, tem consist�ncia, � inteligente para resolver os problemas da coletividade, ela n�o morre na ideia do povo, ela segue viva. O Movimento Passe Livre sustentou a defesa dessa proposta e hoje j� s�o diversas institui��es defendendo essa ideia e v�rios munic�pios operando essa pol�tica na pr�tica, com grande sucesso", diz Erundina. "Vejo isso com muita esperan�a."