(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas LEVANTAMENTO

Pris�o em liberdade: ex-presos s�o obrigados a pagar multas

N�mero de egressos com penas de multa em aberto passa de 6 para mais de 208 mil em SP em 2 anos


04/05/2023 17:31 - atualizado 04/05/2023 18:31
438

Por Jos� C�cero | Ag�ncia P�blica

Arte mostra um senhor, de barba de cabelos brancos, acorrentado por várias partes do corpo. A imagem é composta por um fundo vermelho.
(foto: Arte - Douglas Lopes/Ag�ncia P�blica )
Uma jovem gr�vida de oito meses dirige-se a um supermercado e, quando vai efetuar o pagamento na fun��o d�bito, tem o cart�o recusado. Sem entender o motivo, ela consulta o saldo e se surpreende com a observa��o “bloqueio judicial” ao lado do �nico valor dispon�vel na conta -- R%uFF04 375; um homem fica perplexo ao saber que a sua motocicleta, utilizada para gerar a principal fonte de renda da fam�lia, corre risco de ser penhorada; um idoso passa a ter uma s�rie de problemas econ�micos e chega a viver na rua. O �nico aspecto em comum entre os tr�s � o fato de serem egressos do sistema prisional e terem adquirido uma d�vida com o Estado depois de terem cumprido pena.
 
As d�vidas impostas a essas pessoas s�o oriundas de uma multa aplicada no momento em que a senten�a � estabelecida, a chamada pena de multa. Excluindo-se os casos de crimes contra a vida ou sexuais, todos est�o sujeitos a multa, prevista no artigo 51 do C�digo Penal. Desde 2019, o n�o pagamento impede a extin��o da pena -- mesmo que todo o tempo de pris�o tenha sido cumprido. A pessoa tamb�m fica com os direitos pol�ticos suspensos, sendo proibida de votar, al�m de estar sujeita ao bloqueio de valores ou penhora de bens.
Em S�o Paulo, estado com a maior popula��o carcer�ria do pa�s (197 mil), os casos de execu��o de multas t�m aumentado vertiginosamente. At� o dia 31 de mar�o, 208 mil estavam em andamento. Eram 6 em janeiro de 2020, segundo dados fornecidos pelo Tribunal de Justi�a do Estado � Ag�ncia P�blica. Apenas na capital s�o 50.050 a��es referentes a multas n�o pagas. 

Março de 2022 foi o mês com a maior quantidade de processo abertos
Mar�o de 2022 foi o m�s com a maior quantidade de processo abertos (foto: Arte - Bianca Muniz/Ag�ncia P�blica )
A aplica��o da pena de multa est� prevista no C�digo Penal desde 1940, mas at� recentemente era assunto de natureza fiscal, n�o criminal. Ap�s definir a pena, o magistrado apenas informava � Fazenda P�blica, respons�vel pela cobran�a, que a multa havia sido aplicada. A Fazenda deixava de executar a grande maioria das cobran�as por considerar que o custo do ajuizamento das a��es era maior que a quantia que deveria ser paga. Na capital paulista, por exemplo, cerca de 22 mil dos 50 mil casos de multas em aberto tratam de multas entre R%uFF04 200,01 e R%uFF04 500.

Foi o julgamento do Mensal�o e a Lava Jato que levaram a uma mudan�a de entendimento que hoje se reflete no grande crescimento de egressos do sistema ainda com penas em aberto, ou “presos em liberdade”.

Ao julgar a A��o Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.150 no fim de 2018, o ministro do Supremo Tribunal Federal Lu�s Roberto Barroso decidiu que a multa � de natureza penal e que a sua execu��o seria atribui��o priorit�ria do Minist�rio P�blico. A nova compreens�o foi seguida pelo Superior Tribunal de Justi�a e consolidada pelo chamado Pacote Anticrime, projeto legislativo de autoria do ent�o ministro da Justi�a e atual senador Sergio Moro (Uni�o Brasil), que se converteu na Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019.
O professor e pesquisador Luigi Giuseppe Barbieri Ferrarini explica que a decis�o do STF foi pensada para “atingir patrim�nios gigantescos” de condenados em casos como Mensal�o e Lava Jato e grandes traficantes de drogas. “O Supremo fez isso porque queria tirar o dinheiro deles. N�o iam extinguir a pena enquanto n�o pagassem a multa. S� que por outro lado eles n�o viram que isso ia atingir todo sistema e gerar um impacto sobre as pessoas pobres”, diz.

Arte mostra duas mãos em fundo azul marinho. As mãos estão com se estivessem algemadas pelo símbolo de cifrão.
(foto: Arte - Douglas Lopes/Ag�ncia P�blica)

Estado laborat�rio

Na tentativa de resolver o bloqueio de seu cart�o, J�ssica Santos, a gestante que abre esta reportagem, recorreu � Defensoria P�blica. Soube ent�o que o processo que motivou o bloqueio tinha rela��o com a senten�a de oito anos de priva��o de liberdade pelos crimes previsto na Lei de Drogas que j� tinha cumprido: R%uFF04 22.260 de pena de multa pela condena��o por tr�fico e R%uFF04 15.900 por associa��o ao tr�fico, totalizando R%uFF04 38.160.
 
Cada “dia-multa” equivale a 1/30 do sal�rio m�nimo vigente, o que atualmente corresponde a R%uFF04 44. O valor total da multa depende do delito e da an�lise do juiz. Por�m, alguns tipos de crimes j� t�m um m�nimo de dias-multa estipulado pela lei. No caso de pessoas condenadas por roubo, furto ou estelionato, o montante pode variar entre 10 e 360 dias-multa, ou R%uFF04 440 e R%uFF04 15.840. Em penas relacionadas ao tr�fico de drogas, como a de J�ssica, o m�nimo previsto � de 500 dias-multa, ou R%uFF04 22 mil, podendo chegar a 1.500 dias. H� ainda a possibilidade de o juiz multiplicar os dias multas por cinco vezes o valor do sal�rio-m�nimo.

Arte mostra mulher de camisa e blazer segurando um cesto. Ela escolhe produtos em uma prateleira de mercado.
(foto: Arte - Douglas Lopes/Ag�ncia P�blica )
J�ssica conta que quando deixou a pris�o em 2018, ap�s ter cumprido parte da pena, n�o foi informada de que deveria quitar o valor nem de que o n�o pagamento poderia gerar problemas. Desempregada e hoje com uma filha de 3 meses, ela mora com a m�e, que vive de bicos, e n�o tem condi��es de efetuar o pagamento. No dia 6 de mar�o de 2023, passados cinco anos da condena��o, a Justi�a julgou extinta a pena a pedido da Defensoria.

Para o advogado criminalista e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Guilherme Ziliani Carnel�s, a aprova��o da lei trouxe um impacto desmedido para a popula��o mais vulner�vel. “O m�nimo da pena de multa para um pequeno traficante � de R%uFF04 22 mil. A�, um rapaz de 19 anos, que � preso em flagrante com 50 gramas de coca�na e R%uFF04 60 no bolso, cumpre pena e sai com a multa m�nima. Qual � a chance dessa pessoa, que foi presa, que saiu com 22 anos do sistema carcer�rio, conseguir um emprego e, para al�m da pr�pria subsist�ncia, juntar R%uFF04 20 mil a ponto de pagar a pena de multa?”, questiona.

Os dados mostram que a aplica��o da pena de multa em S�o Paulo come�ou a crescer ap�s atribui��o da compet�ncia � 1ª Vara de Execu��es Criminais, em agosto de 2021. A vara tem nove servidores e um juiz dedicados ao tema. O Estado tem sido visto por especialistas ouvidos pela reportagem como um “laborat�rio” do novo entendimento.

A defensora p�blica Camila Tourinho tamb�m considera que a nova estrutura da vara contribuiu para o aumento. “Querendo ou n�o, agora eles precisam justificar a exist�ncia dessa vara. O que a gente v� � uma escalada no n�mero de processos e tamb�m muitas pessoas chegando cada vez mais no atendimento com demandas de cobran�a de multa”, relata. 

O impacto no cotidiano de trabalho dos juristas que atuam no direito criminal foi t�o repentino que algumas organiza��es da sociedade civil passaram a olhar com mais preocupa��o para o tema e estudar meios para atuar nos casos. Em 2022, o IDDD iniciou um mutir�o para ajudar egressos do sistema penitenci�rio com dificuldade para quitar a multa e elaborou um material de apoio com teses institucionais e argumentos jur�dicos sobre o tema.

Entre agosto e dezembro de 2022, a organiza��o atuou em 251 casos. A partir das informa��es extra�das pelos advogados durante os atendimentos, tra�ou o perfil socioecon�mico das pessoas atendidas: 80% se declararam negros; 72% afirmaram ter filhos ou dependentes, sendo que mais de um ter�o afirmou ter tr�s filhos ou mais; quase um quinto declarou estar em situa��o de rua; 72,1% disseram ganhar menos de um sal�rio-m�nimo por m�s; 36,3% n�o completaram o ensino fundamental, 72,5% n�o conclu�ram o ensino m�dio, e mais da metade est� desempregada. Entre os empregados, 82,4% n�o t�m carteira assinada.

Entre agosto e dezembro de 2022, a organização atuou em 251 casos.
Entre agosto e dezembro de 2022, a organiza��o atuou em 251 casos (foto: Bianca Muniz/Ag�ncia P�blica )

R%uFF04 13 mil de multa e dez dias para pagar

Condenado por tr�fico, *Osvaldo est� entre os 72% dos egressos do sistema com multas em aberto que t�m filhos ou dependentes. Ele conta que assim que deixou a pris�o, para cumprir o restante da pena em regime aberto, recebeu uma carta informando que tinha dez dias para pagar os R%uFF04 13.500 correspondentes � pena de multa.

“Como que uma pessoa que fica dez anos presa vai sair, vai ter R%uFF04 13.500 para pagar essa multa em dez dias?”, questiona. “Tentei parcelar, pra pagar uns R%uFF04 300 por m�s, que � o eu posso, mas n�o aceitaram.”

Sem condi��es de quitar a d�vida, Osvaldo seguiu a vida e passou a focar em conseguir um emprego formal para garantir o seu sustento, da filha e do neto de 4 anos. Por�m, quando foi a uma unidade do Poupatempo para tirar o atestado de antecedentes criminais, foi desaconselhado pelo pr�prio funcion�rio a seguir com o processo. “Quando chegou a minha vez, o cara me chamou e falou: ‘Vem c�. Voc� tem certeza que vai tirar o atestado [de antecedentes]? Vai sair que voc� tem pend�ncia com a Justi�a. Que firma vai te pegar sabendo que voc� � ex-presidi�rio?’”, lembra.

Mesmo diante da falta de incentivo, Osvaldo regularizou a sua documenta��o e continuou a busca por trabalho. Conseguiu um emprego como porteiro de um pr�dio em constru��o. Uma das condi��es era que ele deveria ir at� o local com a sua motocicleta, pois era em um bairro distante de sua casa e a empresa n�o lhe pagaria mais que duas condu��es.

Por�m, ap�s ter se estabilizado no trabalho descobriu um novo problema relacionado � pena de multa: o pedido de penhora da motocicleta. “Poxa, eu uso a moto pra trabalhar, que � o meu ganha-p�o. A� eles bloqueiam. Se eu perder a moto, n�o tem como eu trabalhar. A� eu vou fazer o qu�?”, questiona.

At� janeiro de 2023, outras 13.616 pessoas estavam na mesma situa��o de Osvaldo, com processo de bloqueio ou penhora no munic�pio de S�o Paulo.

Da pris�o para a rua

Era por volta de 10h30 da manh�, do dia 14 de fevereiro, quando Claudenir Jos� do Santos, 65 anos, saiu do posto da Receita Federal em Santo Amaro, zona sul de S�o Paulo, com o n�mero do CPF em m�os. Foram cinco anos tentando obter o documento. “Agora estou com uma nova esperan�a de vida para um novo recome�o. Eu era indigente, mas agora n�o, agora tenho os meus documentos”, conta.

Foto frontal de Claudenir. Ele aparece em foto tirada de baixo para cima enquanto olha para o documento.
Claudenir demorou 5 anos para conseguir emitir documento pessoal (foto: Jos� C�cero/Ag�ncia P�blica )
O que o impedia de ter o documento era uma multa no valor de R%uFF04 6 mil aplicada pelo Tribunal de Justi�a de S�o Paulo em 2009, quando ele foi condenado a cinco anos de pris�o em regime fechado pelo crime de tr�fico de drogas. Claudenir cumpriu a pena at� dezembro de 2018. Ao sair, n�o conseguiu efetuar o pagamento da multa e, desde ent�o, buscava meios para regularizar sua situa��o.

Ele foi morar com a irm� e o cunhado no Jardim Robru, zona leste de S�o Paulo, e come�ou a buscar trabalho, mas, sem documentos, n�o conseguia emprego formal. Sem conseguir contribuir para as contas da fam�lia, permanecer na casa dos parentes n�o era mais vi�vel e Claudenir passou a viver sozinho em uma ocupa��o. Sobreviveu com o dinheiro de bicos que fez como servente de pedreiro e outros servi�os espor�dicos.
 
A sua condi��o piorou em 2020 com o in�cio da pandemia de covid-19. Sem trabalho e sem a documenta��o, Claudenir n�o conseguiu acesso ao Aux�lio Emergencial nem a qualquer outro direito disponibilizado pelo estado ou pelo munic�pio. Em condi��o de extrema pobreza, chegou a morar num carro abandonado e, sem demora, na rua.
 
As circunst�ncias come�aram a mudar quando ele foi acolhido pela ONG Tantos Dias de Deten��o, projeto encabe�ado pelo tamb�m egresso do sistema carcer�rio Vanderlei Fischer. Ele conta que ficou sabendo do caso de Claudenir por um conhecido e logo foi procur�-lo. “Falaram pra gente que o carro em que ele estava morando pegou fogo, que ele tinha sa�do todo queimado e foi pro hospital. Corremos todos os hospitais por l� atr�s dele e n�o o achamos”, relembra.
 
Vanderlei levou uma semana at� encontr�-lo. “[Ele] estava tudo sujo, todo zoado, cabeludo, barbudo. Falei: ‘P�, isso n�o � digno pra voc�, mano. Voc� � um cara que tamb�m merece uma oportunidade’. Ele estava largad�o na rua acho que h� uns seis meses”, lembra Vanderlei, que o levou para morar com ele no Jardim Monte Azul, zona sul da capital. Ap�s alguns meses, alguns moradores da comunidade se uniram para construir a casa com um c�modo e banheiro em que Claudenir vive atualmente.
 
Diante da condi��o vulner�vel em que Claudenir se encontrava, o advogado Roberto Aveline Chaves J�nior, que atuou de forma volunt�ria no caso a pedido da ONG, entrou com um pedido de extin��o da multa por hipossufici�ncia — argumento usado quando o egresso est� em situa��o de vulnerabilidade social, sem condi��es financeiras para quitar a multa. O processo correu por cerca de dois anos e, mesmo diante de uma prova em v�deo e de uma declara��o de Claudenir afirmando � justi�a a sua situa��o, o Minist�rio P�blico indeferiu o pedido.
 
Em uma das manifesta��es, em 22 de novembro de 2022, o promotor de justi�a Valdir Vieira Rezende alegou que “a prova de condi��es econ�micas ou hipossufici�ncia deve ser prioritariamente feita por documentos e n�o declara��o do pr�prio interessado ou eventual pessoa que fa�a a declara��o”. “Muitas vezes as apar�ncias n�o refletem a real situa��o financeira de algu�m”, afirmou.

A conquista da documenta��o s� foi poss�vel porque o Minist�rio P�blico de S�o Paulo n�o executou a multa no per�odo de cinco anos e a d�vida prescreveu. “Se dependesse do Estado, ele ia morrer e n�o ia conseguir o CPF”, afirma Chaves J�nior.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)