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Estado de Minas (IN)JUSTI�A BRASILEIRA

'Achei que nunca ia sair da cadeia', diz preso por 62 reconhecimentos fotogr�ficos

Porteiro chegou a ser chamado para integrar uma fac��o criminosa na cadeia, mas rejeitou. "Se eu entrasse, n�o teria como provar que era inocente"


25/06/2023 12:22 - atualizado 25/06/2023 12:59
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Imagem meramente ilustrativa de cadeado em porta de cadeia
Imagem meramente ilustrativa de cadeado em porta de cadeia (foto: Pixabay)
Na mem�ria de Paulo Alberto da Silva Costa, 36, os piores momentos dos tr�s anos de pris�o, agora considerada ilegal pela Justi�a, eram justamente aqueles em que sa�a da cadeia.

"Voc� sai naquele carro. � um terror total. Todo lacrado. S� cabe umas 10 pessoas, e eles colocam 20. Um em cima do outro, algemado, dois numa algema s�. Aquele terror. Eles [policiais] falam que v�o tacar spray de pimenta, que vai meter a porrada. � assim que eles tratam os presos. Igual bicho", disse � reportagem, um m�s ap�s ser solto.

A movimenta��o tinha como destino o F�rum para as audi�ncias de seus processos. Seria o momento em que Paulo poderia se defender das acusa��es por roubo (59), homic�dio, latroc�nio e recepta��o, cujas den�ncias, segundo sua defesa, se basearam apenas no reconhecimento fotogr�fico na delegacia, pr�tica considerada irregular pela Justi�a.

Paulo, por�m, sa�a em desvantagem.

"Sempre sai um dia antes [da cadeia]. A gente ia dormir no 'porquinho', que s� tem um buraco para fazer as necessidades e o ch�o para se jogar e dormir. Quando vai para o F�rum, vai sujo, fedendo, do jeito que sai dali."

Era, segundo ele, "sujo e fedendo" que o porteiro prestava depoimento. Mas ele conta que pouco falava.

 

"O defensor [p�blico] j� vinha falando para permanecer calado que era melhor. 'Mas como eu tenho que permanecer calado? N�o fui eu que cometi'. Me incomodava, mas como ele estava ali para me ajudar, permanecia calado."

Ap�s tr�s anos, dezenas de interrogat�rios, 20 absolvi��es e 11 condena��es, das quais 4 n�o caberiam mais recurso, o STJ (Superior Tribunal de Justi�a) determinou em maio a soltura de Paulo e a reavalia��o dos processos.

"Estamos diante de um caso que me envergonha de integrar um sistema de Justi�a de moer gente", afirmou o ministro Ricardo Schietti.

Paulo � um homem negro nascido em Paudalho (PE), a 45 km de Recife. Chegou a Belford Roxo (RJ) em 1998 com a m�e, Maria Jos�, e a irm� mais nova, Amanda. Estudou at� a 8ª s�rie.

Em 2015, se mudou com a ent�o mulher para um condom�nio do Minha Casa, Minha Vida. Trabalhou na instala��o do g�s encanado, no plantio do jardim e, desde 2018, era porteiro do local, complementando a renda com um lava jato.

O drama de Paulo come�ou dias antes de 6 de mar�o de 2020, data de sua pris�o, quando Amanda viu que uma foto do irm�o estava no "mural dos suspeitos" da delegacia da cidade. "Era a foto do Facebook dele. Quase chorei ali na delegacia."

A suspeita do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), que atuou no caso, � de que isso ocorreu porque o condom�nio em que ele vivia e trabalhava era controlado por uma fac��o criminosa.

Dias ap�s a fam�lia questionar o uso da imagem de Paulo no mural, a pol�cia prendeu o porteiro. Naquele momento, ele j� tinha 40 mandados de pris�o contra si.

Paulo disse que come�ou a ter no��o do volume de acusa��es ao chegar na cadeia. "Foi o tanto de cita��o que assinei. De dez vezes que o oficial de Justi�a ia na cadeia, dez eu tinha que assinar algo."

O volume de mandados para Paulo come�ou a chamar a aten��o de outros presos.

"Eu dizia que era erro da Justi�a. Muitos [detentos] no come�o n�o acreditavam. Me achavam at� perigoso, com o tanto de processo que eu assinava. 'Esse cara deve ser sinistro mesmo'", conta ele.

O porteiro chegou a ser chamado para integrar uma fac��o criminosa na cadeia, mas rejeitou. "Se eu entrasse, n�o teria como provar que era inocente."

Nove meses ap�s a pris�o, Paulo participou de seu primeiro interrogat�rio. Uma das perguntas do juiz foi: "Como ser confundido em mais de 60 anota��es criminais?"

"� dif�cil, mas eu nunca roubei ningu�m", respondeu.

Ele viu sua chance de liberdade diminuir quando foi colocado ao lado de dois homens brancos numa audi�ncia para reconhecimento.

"Os policiais pediram para eu escolher os rapazes [que deveriam ir] para o reconhecimento. Quando chegou l� em cima, o juiz mandou descer com os dois rapazes que eu escolhi e subiram com dois branquinhos. Se a v�tima foi lesada por uma pessoa escura, ela nunca vai apontar para uma pessoa clara. Achava que eu n�o ia sair nunca da cadeia", disse ele.

Paulo disse que come�ou a ter esperan�as ao ver uma reportagem na TV sobre falhas em acusa��es baseadas em reconhecimento fotogr�fico. Um novo sinal veio quando foi absolvido de quatro processos ap�s encontrar a m�e no F�rum.

"Eu abracei meu filho e pedi para que ele acreditasse em Deus e na Justi�a. Fui l� e falei com o juiz: 'Olha bem esses pap�is, porque eu conhe�o meu filho e ele � inocente'", contou Maria Jos�.

A m�e de Paulo batia de porta em porta em busca de ajuda, quando recebeu um cart�o do IDDD. A irm� enviou uma mensagem pelo Instagram da institui��o em abril de 2021. A entidade atua em tribunais na discuss�o de teses que fortale�am o direito de defesa, mas n�o em casos espec�ficos.

"O relato da irm� apontava para um cen�rio t�o grave que se tornou representativo das viola��es sistem�ticas com que trabalhamos", disse o presidente do IDDD, Guilherme Carnel�s.

Foram necess�rios cerca de dois anos para que o IDDD e a Defensoria P�blica do Rio de Janeiro reunissem todos os processos contra Paulo. Um relat�rio de 152 p�ginas foi elaborado detalhando as inconsist�ncias as acusa��es.

A estrat�gia foi acionar o STJ, que j� havia considerado ilegal o uso exclusivo do reconhecimento por foto para basear den�ncias. Em maio, a relatora Laurita Vaz votou pela absolvi��o, mas Schietti sugeriu a revoga��o de todos os 12 mandados de pris�o ainda em vigor e suspendesse as quatro execu��es de pena em curso.

"Quando eu vi que come�ou uma vota��o se ele podia sair ou n�o, eu fiquei desesperada. Ser� que ele vai sair? Comecei a chorar, mas nem sabia se era isso", disse Amanda.

"A cadeia tremeu. Os presos ficaram todos felizes", disse Paulo.

Foram necess�rios mais dois dias para que ele deixasse a pris�o.

"Foram os dias que mais me massacraram naquele lugar. Toda hora que a galeria estalava pensava que vinham me tirar. J� era para eu ter sa�do e estava ali ainda. Eu pensava: 'Ser� que estou sonhando?'"

Paulo disse que a filha de 5 anos teve dificuldades de reconhec�-lo ao sair da cadeia. Ele encontra problemas para manter contato com a menina porque a m�e rompeu o relacionamento ap�s a primeira condena��o. Ele tem tamb�m um filho de 10 anos, com quem convive.

Atualmente trabalha auxiliando o corte de grama no condom�nio onde mora, enquanto espera retomar a vaga de porteiro. Mas at� para recuperar o emprego ele teve medo. "N�o sabia se voltar a trabalhar l� poderia atrapalhar. Para eles [pol�cia], quem trabalha l� � associado ao tr�fico."

A ficha criminal de Paulo segue com dezenas de anota��es. A coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria, L�cia Helena, afirma que a solu��o poder� levar at� um ano.

"A situa��o � muito complexa por conta do volume de processos, todos em fases diferentes", disse ela.

Al�m das a��es penais, Paulo ainda era alvo de outros seis inqu�ritos. L�cia Helena diz que um deles foi enviado para a delegacia especializada em crime organizado. Ainda n�o se sabe a raz�o da movimenta��o, o que gera nova preocupa��o para a defensora.

Paulo diz sentir uma mistura de al�vio e revolta. Diz n�o acreditar na Justi�a.

"A revolta � de n�o ter mais minhas coisas, meu trabalho. Fam�lia eu vou recuperar. Papai do c�u vai me dar outra at� melhor que a que eu perdi. Quero s� trabalhar e reconquistar o que perdi", disse Paulo.


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