
"Vai com Deus."
"Gra�as a Deus!"
"Deus me livre."
"S� Deus sabe…"
Deus est� sempre na boca do brasileiro, um povo que vive em um pa�s de maioria crist� onde cultura e f� est�o intimamente ligadas - das altas esferas de poder ao cotidiano do cidad�o comum - e no qual a vida religiosa muitas vezes preenche lacunas deixadas pelo Estado.
Esses s�o alguns dos fatores que explicam porque o Brasil se destaca quando o assunto � espiritualidade.
Quase nove em cada dez brasileiros dizem, por exemplo, acreditar em Deus, segundo a pesquisa Global Religion 2023, produzida pelo instituto Ipsos.
O �ndice de 89% de cren�a em um poder superior coloca o Brasil no topo do ranking de 26 pa�ses elaborado pelo Ipsos, com base em uma plataforma online de monitoramento que coleta informa��es sobre o comportamento destas popula��es.
O Brasil aparece empatado com �frica do Sul, que teve os mesmos 89%, e Col�mbia, com 86% - um empate t�cnico dada a margem de erro de 3,5 pontos percentuais da pesquisa.
Holanda (40%), Coreia do Sul (33%) e Jap�o (19%) foram os pa�ses onde a popula��o menos cr� em Deus ou em um poder superior, de acordo com a pesquisa.
A Global Religion 2023 � baseada em dados coletados entre 20 de janeiro e 3 de fevereiro, com 19.731 entrevistados, aproximadamente mil deles no Brasil.
Na amostra, h� apenas um pa�s de maioria isl�mica, a Turquia, embora pessoas que seguem o islamismo tenham sido consultadas em outros pa�ses.
Entre os pa�ses pesquisados, o Brasil ficou 28 pontos percentuais acima da m�dia na cren�a em Deus, que foi de 61%.
"No cotidiano brasileiro, as pessoas falam em Deus o tempo todo, � algo comum e normal, e � estranho se algu�m reage de forma negativa a isso", diz Ricardo Mariano, soci�logo da Religi�o e professor da Universidade de S�o Paulo.
Mariano ressalta que o Brasil costuma se destacar em pesquisas internacionais sobre religiosidade e f� porque a cren�a em Deus e a espiritualidade est�o profundamente intricadas na nossa cultura, mesmo entre quem n�o tem compromisso com nenhuma religi�o espec�fica.
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Cerca de 5% dos brasileiros disseram n�o acreditar em Deus ou em um poder maior, 4% afirmaram que n�o sabem e cerca de 2% preferiram n�o responder.
"S�o dados que est�o de acordo com nosso hist�rico de um pa�s onde a religi�o e a religiosidade t�m uma predomin�ncia tanto na cultura e na vida cotidiana quanto nas esferas de poder", diz Helio Gastaldi, diretor de opini�o p�blica da Ipsos no Brasil.

Vida religiosa
Mas acreditar em Deus n�o significa necessariamente ser religioso - e o caso brasileiro demonstra bem isso.
Equanto 89% dos entrevistados no pa�s disseram crer em Deus ou um poder superior, s� 76% afirmaram seguir uma religi�o.
O �ndice nacional ficou novamente acima da m�dia global, que foi de 67% neste caso, mas bem abaixo dos primeiros colocados: �ndia (99%), Tail�ndia (98%) e Turquia (86%).
Entre os brasileiros religiosos, 70% disseram ser crist�os (cat�licos, evang�licos e outras denomina��es) e 5% s�o filiados a outras religi�es, enquanto 20% disseram n�o ter uma religi�o e 5% das pessoas preferiram n�o responder.
Os dados da Ipsos mostram que a diferen�a na ades�o dos jovens da gera��o Z (de at� 23 anos) e do resto da popula��o adulta a uma religi�o � bem maior entre os cat�licos do que entre os evang�licos.
Enquanto 38% dos adultos se declararam cat�licos, somente 23% dos jovens da gera��o Z dizem aderir � religi�o - uma diferen�a de 15 pontos.
J� entre os evang�licos e outros crist�os, o �ndice geral entre adultos � de 29% e entre os jovens � 26% - ou seja, al�m de existir uma diferen�a geracional menor, j� h� mais jovens evang�licos do que cat�licos no Brasil hoje, aponta o estudo.
O �ndice dos sem religi�o na medi��o da Ipsos ficou bem acima dos 8% registrados pelo Censo de 2010, que, por sua vez, detectou um aumento de 0,7 pontos percentuais em rela��o ao levantamento anterior (7,3%).
"Apesar de sabermos que a propor��o de pessoas sem religi�o no Brasil tem aumentado - dados do Datafolha de 2022 indicam 14% sem religi�o, dentre popula��o em geral, e 34% sem religi�o entre os jovens -, o fato da pesquisa da Ipsos ser com painel online pode inflar um pouco este n�mero, supondo que entre os mais pobres esta propor��o dos sem religi�o seja um pouco menor", diz Gastaldi.

O Brasil acompanha, mesmo que timidamente, uma tend�ncia global de aumento do n�mero de pessoas que n�o tem religi�o, diz Mariano.
"� preciso aguardar os dados do censo 2022, mas tudo aponta que esse n�mero vai ter aumentado", diz.
Enquanto no Brasil a cren�a em Deus supera a religiosidade, em pa�ses como �ndia e Tail�ndia, que lideram o ranking de religiosos, e tamb�m onde a filia��o a uma religi�o � minorit�ria, como Coreia do Sul (44%) e Jap�o (42%), a situa��o se inverte e h� mais pessoas religiosas do que aquelas que acreditam em um poder superior.
Isso acontece por causa das caracter�sticas particulares da f� nestes locais, segundo especialistas.
Religi�es como o budismo e o xinto�smo - que s�o predominantes em alguns deles - s�o n�o te�stas, ou seja, n�o t�m um conceito de Deus ou de um poder superior como nas chamadas religi�es abra�micas, como o cristianismo, islamismo e o juda�smo, explica Gastaldi.
O x�nto�smo � uma reuni�o de tradi��es espirituais japonesas centradas no culto � natureza e aos antepassados. J� o budismo trabalha com a ideia de ilumina��o espiritual individual
Ao mesmo tempo, explica Mariano, o conceito de Deus n�o consegue captar bem as cren�as de religi�es polite�stas (com m�ltiplas divindades) como o hindu�smo, que � majorit�rio na �ndia, e as religi�es afro-brasileiras.
O Brasil tem, por�m, um �ndice alto de cren�a em Deus e de religiosidade mesmo se comparado a outros pa�ses em desenvolvimento - e isso tem a ver com a hist�ria do pa�s.
"A religi�o � uma for�a fundamental no Brasil desde a �poca da coloniza��o dos portugueses. O catolicismo � a religi�o que nos foi imposta pelos portugueses e vai ter um papel central nas identidades nacionais", afirma a professora de sociologia da religi�o Nina Rosas, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Aus�ncia do Estado

Helio Gastaldi, do Ipsos, explica que os dados da pesquisa de 2023 s�o consistentes com um fen�meno muito estudado.
Entre os pa�ses laicos, onde a religi�o � separada do Estado e n�o h� uma religi�o oficial, a vida religiosa tende a ter maior import�ncia para a popula��o onde o PIB per capita (riqueza de um pa�s em rela��o � quantidade de habitantes) � menor ou onde h� grande �ndices de desigualdade, aponta Gastaldi.
"S�o locais onde a religi�o de certa forma supre a aus�ncia do Estado. Ela traz perspectiva, consolo, �s vezes at� assist�ncia material - mas tamb�m pode ser usada como forma de manipula��o e ferramenta do poder", diz Gastaldi.
Na pesquisa do Ipsos, por exemplo, 90% responderam que acreditar em Deus ou for�as superiores ajuda a superar crises, como doen�as, conflitos e desastres.
O catolicismo sempre operou no Brasil como uma esp�cie de extens�o do Estado, mesmo depois da proclama��o da Rep�blica, afirma Rosas.
Ao mesmo tempo, havia uma forte persegui��o a outras religi�es, explica a pesquisadora - o C�digo Penal de 1890, por exemplo, criminalizava magia, espiritismo e curandeirismo. Havia resqu�cios disso na legisla��o at� 1985, aponta Rosas.
"Ent�o as religi�es medi�nicas, tanto espiritismo quanto as de matriz africana, tiveram que se adaptar a essas press�es tentando se enquadrar em algo que era considerado leg�timo", diz Rosas.
Isso gerou o surgimento de um sincretismo religioso que ultrapassa as barreiras das religi�es individuais.
"Apesar da opress�o da coloniza��o ter vindo embutida com a religi�o para o Brasil, na forma da religi�o imposta, de certa forma o povo soube separar Deus do mission�rio e ficou com a figura de Deus", afirma Fernando Altemeyer, professor do departamento de Ci�ncia da Religi�o da Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo (PUC-SP).
Altemeyer avalia ainda que o alto �ndice de cren�a em Deus verificado pela pesquisa do Ipsos tamb�m � provavelmente influenciado pelo contexto imediato da vida p�s-pandemia no Brasil, que foi especialmente atingido pela covid-19 e onde o governo foi criticado pela falta de resposta adequada ao problema.
"Tivemos mais de 700 mil mortos, foram dois anos de depress�o e sofrimento. E sabemos que depois de uma grande crise, as religiosidades e espiritualidades aumentam, t�m uma explos�o", diz ele.
"Foi assim no Jap�o ap�s a Segunda Guerra Mundial, ap�s a bomba at�mica, por exemplo."
A for�a da f�
Ricardo Mariano, da USP, explica que, historicamente, os movimentos que foram oposi��o ao poder ou governo do per�odo nunca tiveram um car�ter de combater a religi�o ou espiritualidade.
"N�s n�o temos uma tradi��o iluminista, de movimentos pol�ticos ideol�gicos anticlericais e seculares", afirma ele.
A seculariza��o � o processo de afastamento de uma sociedade da religi�o.
"Mesmo a classe m�dia brasileira n�o � altamente secularizada", afirma o pesquisador.
Ele aponta que mesmo movimentos de esquerda n�o fizeram uma oposi��o � religi�o em si - o PT, o maior partido de esquerda do pa�s, por exemplo, tem em suas origens o catolicismo da Teologia da Liberta��o, corrente cat�lica que defende a atua��o da Igreja em prol do combate � desigualdade social como prioridade.
No Brasil, movimentos por direitos de grupos que historicamente sofreram opress�o religiosa - como mulheres e pessoas LGBT - n�o tendem a ser antirreligiosos, destaca Mariano.
Embora certos movimentos fa�am oposi��o � influ�ncia de grupos religiosos no Congresso, diz Mariano, raramente a oposi��o � em rela��o � ideia de religiosidade em si.
"Mesmo quando a democratiza��o do ensino superior avan�ou, isso n�o implicou na absor��o de uma cultura que fa�a oposi��o � cren�a religiosa, n�o houve esse embate", diz Mariano.