
Numa primeira an�lise, o especialista identificou a v�tima do acidente de tr�nsito como uma esp�cie silvestre.
Ela foi encaminhada para o hospital veterin�rio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que possui uma equipe especializada em lidar com casos como esse.
E foi a� que essa hist�ria ganhou uma primeira reviravolta. Ao retirar o bicho ferido da caixa de transporte, a pesquisadora Fl�via Ferrari observou que ele era muito diferente do graxaim-do-campo.
Essa esp�cie, similar a uma raposa, tem pelagem bege e cinza e � end�mica da Am�rica do Sul, especialmente em �reas da Argentina, do Uruguai, do Paraguai, da Bol�via e da regi�o sul do Brasil.
Vale destacar que, apesar de ser chamada popularmente de raposa, trata-se de uma esp�cie diferente.
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O animal foi ent�o transferido para o canil, que trata de esp�cies dom�sticas.
Foi a� que veio a segunda surpresa. O comportamento desse indiv�duo n�o era nada semelhante ao de um cachorro.

Com a descoberta, a v�tima de atropelamento foi enviada mais uma vez para o setor de animais silvestres.
A d�vida se manteve mesmo quando o geneticista Thales Renato Ochotorena de Freitas, do Instituto de Bioci�ncias da UFRGS, foi convocado a dar um parecer.
"A primeira coisa que me chamou a aten��o foi a cor da pelagem, que era bastante escura. Ele tamb�m latia igual a um cachorro", lembra o cientista.
Sabe-se que os graxains-do-capo emitem um ganido breve e agudo.
Resumindo: o bicho comia como um graxaim-do-campo silvestre, mas latia feito c�o dom�stico. Afinal, a qual esp�cie ele pertencia?
Para responder a essa pergunta de forma definitiva, Freitas escalou outros dois especialistas. O primeiro deles, o citogeneticista Rafael Kretschmer, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), foi incubido de vasculhar os cromossomos do animal.
Vale lembrar aqui que os cromossomos s�o as estruturas que abrigam todo o material gen�tico de um ser vivo. Eles s�o herdados diretamente dos genitores — metade da m�e, metade do pai.
Se o bicho atropelado fosse um cachorro dom�stico (Canis lupus familiaris), ele teria 78 cromossomos. Agora, caso fosse um graxaim-do-campo (Lycalopex gymnocercus), contaria com 74 unidades dessa estrutura.
"Fizemos uma bi�psia da pele e uma cultura celular [cultivo de c�lulas em laborat�rio]. Ao fazer a an�lise, descobrimos que o animal tinha 76 cromossomos", relata Kretschmer.
O �nico can�deo que aparece no Rio Grande do Sul com esse n�mero de cromossomos � o lobo-guar� (Chrysocyon brachyurus), mas os cientistas logo descartaram a ideia de o indiv�duo pertencer a esta esp�cie pelas pr�prias caracter�sticas f�sicas dele.
A partir desse trabalho, eles chegaram a uma outra conclus�o: o animal n�o era um cachorro ou um graxaim-do-campo, mas, sim, uma mistura das duas coisas.
O n�mero inusitado de cromossomos poderia ser explicado pelo cruzamento entre representantes dessas duas esp�cies. Do cachorro, vieram 39 cromossomos (metade do total). Do graxaim-do-campo, 37.
A combina��o dos dois chega exatamente aos 76 cromossomos encontrados pelo laborat�rio ga�cho.

Para confirmar o achado, a bi�loga Bruna Elenara Szynwelski, da UFRGS, fez uma an�lise dos genes do h�brido. "A primeira coisa que olhamos foi o DNA mitocondrial, que � herdado exclusivamente da m�e" aponta a especialista.
O DNA mitocondrial fica fora do n�cleo da c�lula, separado do restante do DNA, numa estrutura respons�vel pela gera��o de energia — a mitoc�ndria.
"E foi a� que observamos que a linhagem materna desse indiv�duo era de graxaim-do-campo", informa Szynwelski.
Ao analisar o DNA completo, os pesquisadores descobriram trechos de genes exclusivos dos cachorros, e outros que s� aparecem nos graxains-do-campo.
A partir disso, eles puderam concluir definitivamente que a v�tima do atropelamento era um h�brido.
Essa foi a primeira vez que esse fen�meno foi descrito em detalhes na Am�rica do Sul — h� casos semelhantes registrados com outros can�deos na �frica, na Europa e na Am�rica do Norte.
Os achados, publicados no peri�dico cient�fico Animals no in�cio de agosto, foram classificados como "raros" e "surpreendentes" pelos envolvidos no trabalho. Afinal, apesar de pertencerem � mesma fam�lia — os can�deos — cachorro e graxaim-do-campo s�o parentes relativamente distantes na �rvore evolutiva.
Ap�s a recupera��o das les�es do atropelamento, o can�deo foi castrado e enviado ao Mantenedouro S�o Braz, um santu�rio e zool�gico sediado em Santa Maria, tamb�m em terras ga�chas.

Novas reviravoltas e futuros aprendizados
Os envolvidos na investiga��o suspeitam que esse mesmo animal fora flagrado em outras ocasi�es no passado.
Em 2019, Hasse Junior — o mesmo bi�logo que realizou o resgate em 2021 — avistou um can�deo de apar�ncia estranha na regi�o de Vacaria.
� �poca, ele gravou um v�deo, e a equipe acredita que se trata do mesmo animal. Isso porque, nos registros obtidos em 2019 e 2021, � poss�vel ver uma mancha branca no t�rax de ambos os animais. Mas a hist�ria reservou uma terceira surpresa a todos os envolvidos.
Um dia depois da entrevista � BBC News Brasil, realizada em 29 de agosto, os pesquisadores da UFRGS enviaram um email com uma not�cia inesperada.
"Assim que terminamos a reuni�o, ligamos para o santu�rio [o Mantenedouro S�o Braz] para solicitar fotos atuais do h�brido", escreveram os autores do estudo.
"Quem atendeu nos informou que o animal morreu h� cerca de meio ano."
Os cientistas confirmaram a informa��o numa segunda intera��o via WhatsApp com o mantenedouro, mas ainda est�o tentando entender o que causou a morte do animal.
A BBC News Brasil tamb�m tentou contato com o Mantenedouro S�o Braz por meio de mensagens de texto, mas n�o foram enviadas respostas at� a publica��o desta reportagem.

Enquanto ainda tentam descobrir o que est� por tr�s da morte do h�brido, os especialistas envolvidos com a hist�ria avaliam os poss�veis impactos que os cruzamentos entre esp�cies de can�deos podem ter.
"Esse fen�meno pode ser bastante prejudicial, por diferentes aspectos", diz Szynwelski.
"Um deles � a adapta��o desse animal na natureza. O graxaim-do-campo tem uma colora��o bem pr�xima do habitat, o que permite uma camuflagem para ca�ar e se esconder dos predadores. J� o h�brido, que nasceu com pelagem escura, n�o tem esse mesmo atributo", exemplifica ela.
"E h� uma poss�vel troca de doen�as entre esp�cies. Os cachorros dom�sticos podem passar certas condi��es para animais selvagens e isso virar um problema s�rio", antev� Freitas.
"Quando a gente pensa na conserva��o de esp�cies, precisamos fazer proje��es a longo prazo. E agora vamos explorar e estudar todas essas quest�es daqui em diante", conclui Szynwelski.